A Autobiografia Lírica de M. António: uma estética e uma ética da crioulidade angolana

 

A autobiografia lírica de M. António:


uma estética e uma ética


da crioulização angolana

 

 


 

 

Francisco Soares


 

 


 

 

Nota:

 

Esta edição – a segunda – de A autobiografia lírica de «M. António»: uma estética e uma ética da crioulidade angolana resulta, como a primeira, da minha tese de doutoramento. Tenho ainda alguns exemplares comigo, da primeira, poucos e que não compensa já distribuir. Daí que, pensando no aproveitamento das novas tecnologias e dos novos circuitos de distribuição, venha propor uma segunda edição.

 

Alterei-a minimamente e, portanto, o leitor deve levar em conta que ela foi elaborada entre 1992 e 1996, ainda que haja alguma atualização a registar.

 

O Prefácio, do orientador, José Carlos Venâncio, ficou tal como foi escrito na altura da publicação (1997).

 

Para leitura das notas convém abrir a página respetiva, mantendo aberta a do capítulo que se esteja a ler. 

No índice abaixo as hiperligações remetem para páginas próprias. O Prefácio, Agradecimento e dedicação, Introdução, são lidos nesta mesma página. 




ÍNDICE
    Prefácio

Agradecimento e dedicação

Introdução

I

Subjetividade, lírica e expressão

A Subjetividade Poética

Subjetividade, Lírica e expressão

II

Lírica, subjetividade e autobiografia

Lírica e espécies narrativas afins

Distinção entre outras espécies subjetivas e a lírica de segundo tipo

A lírica autobiográfica e o organizador dos 100 poemas

Cronologia, autobiografia e  a apresentação dos 100 poemas

Uma cronologia relativa: uma autenticidade enganadora

III

O sujeito nos 100 poemas

Segunda hipótese de trabalho

A identificação do sujeito

A filiação próxima

A «Avó Negra»

Mãe e Pai

O berço social

IV

Cisão e saudade

A definição de crioulo africano e os 100 poemas

A cisão no sujeito lírico dos 100 poemas

A saudade

Tempos de poesia

As duas fases dos 100 poemas

V

Ancoragens e desembarques

O tempo da poesia

Situação técnica

Os livros de itinerância

Visão e saudade

Conclusão

Uma Estética da Crioulidade

Uma Ética da Crioulidade

   Notas

 

 

  

 

 

PREFÁCIO

 

 

Foi com uma sensação simultaneamente de prazer e angústia que recebi o convite do Francisco Soares para prefaciar o livro que iria publicitar a sua tese de doutoramento, por mim orientada e melhor defendida na Universidade de Évora, em Janeiro último. Prazer porque era a confirmação do êxito de um trabalho, para o qual havia contribuído, mesmo que desapercebidamente. Angústia porque é-me difícil, em poucas palavras, apresentar obra tão complexa e teoricamente tão estruturante, como a que ora se apresenta.

 

A autobiografia lírica de «M. António», para além de repor a verdade sobre a obra literária e, de certa forma, histórico-antropológica, de um grande poeta e de um grande intelectual de língua portuguesa, tem ainda o mérito de ter desenvolvido, na qualidade de trabalho interdisciplinar, uma perspetiva inédita no panorama dos estudos literários e das ciências sociais em Portugal. Refiro-me ao que designaria por Antropologia Literária, diferentemente da Antropologia da Literatura ou da Sociologia da Literatura, cujas abordagens assentam fundamentalmente na consideração do ato de escrita como uma ação humana sistematicamente integrada, i.e., culturalmente (no caso da Antropologia) e socialmente (no da Sociologia), a Antropologia Literária, com uma vertente mais literária que as anteriores abordagens, distingue-se por recorrer (em muitas das situações fortuitamente) à Antropologia ou à Sociologia para levar por diante a sua tarefa hermenêutica e consequentemente crítica e valorativa. E foi isto que o Francisco Soares precisamente fez. Analisou a lírica em verso de Mário António (Fernandes de Oliveira) à luz da anto-consideração do autor como intelectual “crioulo” e angolano. Procurou descortinar no poeta as ideias e o sentir do ensaísta e, quiçá, do político.

 

Esta apresentação ficaria, porém, incompleta, se não dedicasse algumas palavras ao sentido de crioiulidade na obra ensaística de Mário António, que tantos dissabores lhe causou após o 25 de Abril, não só na sua terra natal, Angola, mas também em Portugal, onde não deixou de ser igualmente relegado ao esquecimento.

 

Crioulidade, crioulização, sociedades crioulas ou simplesmente crioulos, são conceitos e processos sociais desprovidos de um sentido universalmente aceite, porque foram apropriados pelas Ciências Sociais, mormente pela Antropologia, sem o adequado tratamento teórico. Assim, consoante a história local, assim muda a realidade a que se referem. A da colonização portuguesa na costa ocidental africana, mormente em Angola, foi devida a Mário António, no seu célebre livro Luanda, «ilha» crioula (Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1968). Fê-lo imbuído do espírito luso-tropicalista de Gilberto Freyre, donde ter integrado a experiência dos “núcleos litorâneos” crioulos no que designou por “Arquipélago Sul-Atlântico Português”. Não obstante ter olhado para Luanda como uma “ilha” crioula, fazendo-o por comparação expressa com a situação social “das ilhas crioulas do Atlântico” (p. 16), não deixa de ser evidente, quanto mais não seja pela cidadania da teoria em que se inspirou, que a realidade central e sul-americana pesou muito mais na generalização efetuada do que a realidade africana. O sentido de crioulo que utiliza encontra-se, ainda hoje, no Perú, na Guiana Francesa, designando aqueles que, tendo uma vida citadina e europeizada, se distinguem da grande massa populacional, constituída por índios. Deste facto resulta que o conceito surja forçado quando aplicado aos contextos africanos. Forçado mas, de modo algum, despropositado. A história de Angola, desde a sua fundação como colónia no século XVI, tem-se pautado por um percurso sui generis em relação à restante África. Num livro que retoma, em grande medida, a tese de doutoramento defendida na Universidade de Mainz em 1984 (Venâncio, 1996) estudei e tentei demonstrar essa especificidade em relação a um período que se estende da segunda metade do século XVII à primeira metade do século XIX, um período que foi, desta forma, coberto pelo chamado mercantilismo, em termos de história europeia, e pelo II Império, no que se refere ao colonialismo português. É essa mesma especificidade visível em todas as dimensões sociais e humanas envolvidas na vivência, muitas vezes sobrevivência, da colónia, circunscrita na altura à cidade de Luanda e ao seu hinterland e à cidade de Benguela. Uma das conclusões a que então cheguei foi que a economia e a vida da colónia de Angola, da altura, tinham muito a ver com a realidade sul-americana e especificamente brasileira, espaço onde, em termos funcionais e estruturais, se integrava. Ajudam a essa integração o comércio esclavagista (o chamado comércio triangular) e, talvez mais importante ainda, a partilha da divisão de trabalho europeia, tida – no âmbito dos defensores da teoria do sistema-mundo – como o fator principal da unidade do que designam por economia-mundo europeia e que, na altura, contextualizava não só as economias e sociedades angolana e brasileira, como a própria política colonial portuguesa.

 

Verifica-se assim que em termos hitóricos e sociológicos se torna pertinente falar de crioulidade, núcleo crioulizante ou mesmo sociedade crioula em Angola, mesmo que a referência contextual a que nos remete um tal uso tenha menos a ver com a realidade subsariana do que com a central e sul-americana. É assim a história.

 

O objetivo de Francisco Soares não foi, contudo, averiguar a pertinência de uma tal designação em Angola. Limitou-se a procurar no sujeito lírico Mário António a dimensão crioula, presente, enquanto instância de enunciação, no sujeito ensaísta. Tarefa académica que cumpriu cabalmente.

 

 

                                                                                                                 José Carlos Venâncio

Covilhã, Maio de 1996

 

 

 

 

 


 

Agradecimento e dedicação

 

Neste, como em outros caminhos, houve sempre escolhos e ajudas. Para rimar: ervas e espinhos. Sobre as ervas nos deitamos a retomar forças, à sombra acolhedora de árvores fertéis; os espinhos fazem-nos andar mais depressa de cada vez que os pisamos. Umas como retemperadores, outros como sustos, ambos acabaram, afinal, por nos ajudar.

 

Teria por isso a tentação de agradecer aqui aos que me ajudaram e aos que talvez o tenham feito sem querer, ou por não o quererem fazer. Mas seria injusto reconhecer ao mesmo nível aquele que nos anima intencionalmente e o que nos estimula apenas por reagirmos ao que nele sentimos como prejudicial.

 

Sem apontar o dedo acusado a estes, que não me cabe julgar mas evita, quero portanto agradecer a todos os que demonstraram, ao longo dos três anos em que preparei este livro, a amizade que vale, também, nas ocasiões. Não os nomearia a todos, por mais extensa e polifacetada que fosse a lista. Mas, ainda assim, há três parentescos de referência incontornável.

 

A família é talvez o primeiro – e, nela, a mulher que nos acompanha, como os pais que nos ensinaram as primeiras coisas e letras, e as filhas a quem procuramos ensiná-las, ocupam um lugar especial e que, de tão essencial que é, dispensa mais palavras.

 

O terceiro parentesco (terceiro, no quotidiano) é tão importante como os outros dois: constitui-se daqueles parentes que raramente vemos, mas que estão presentes quando é necessário, com a sua compreensão, com sugestões valiosas, com testemunhos, ou com uma orientação dedicada e segura. Uns estão vivos – felizmente; outros só nos livros. Um, de referência especial e especialmente amiga, acompanhou com pronta e particular atenção crítica o trabalho. Outros, ainda, não eram meus ‘parentes’, mas do poeta que estudei: sendo seus amigos foram também meus e do presente escrito – e cabe aqui especial menção ao poeta Tomás Jorge, entretanto falecido.

 

O segundo parentesco (segundo no quotidiano) é composto por aqueles com quem laboramos para outras metas e que, ao correr dos dias, nos apoiam desinteressadamente e das mais diversas formas: é a ‘família de trabalho’, que diariamente nos recebe. Desde quem ofereceu muito e tinha muito para oferecer, até quem nos ajudou com aquilo tudo que podia mesmo quando sabia ser pouco. Nesse esforço que, por ser quotidiano e miúdo como o grão do tempo, não podemos medir, e do qual por isso nos esquecemos amiúde, não seria justo deixar de reparar.

 

Não posso, por isso, dizer como o poeta: “pareço-me com um cão cabiri”. Garanto apenas, como também ele o fez: “sou, com certeza, o mesmo”.

 

Como tal, quero endereçar-vos a mais profunda gratidão. E, sentindo que, em todos estes níveis de parentesco, a presença de Angola foi tão intensa e constante como o tem sido em mim desde que me conheço, sei-me acompanhado ao desejar que fique a ela consagrado o esforço – humilde, certamente, mas honesto, vário e saudoso.

 

 

(1997)

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Introdução

 

 

Pode servir, a introdução de um livro, diversas opções. Entre a nomeação das motivações e dos condicionalismos ideológicos e práticos – estes, quase sempre difíceis – com que trabalhei; ou a interpretação prévia de um trabalho próprio; ou, ainda, a tentativa de condicionamento da leitura e de captação da benevolência dos seus agentes imediatos (os leitores), não optei por nenhuma espécie nem contra espécie nenhuma. Porque me pareceu mais sincero expor apenas as dúvidas que desde o início me perturbaram, apresentar-vos os conceitos operatórios que se veio a revelar central (o de lírica, transformado; o de crioulização), confessar as expectativas iniciais que podiam ter desenhado o meu horizonte de espera, mostrar as reticências que me suscitaram desde logo certas interpretações e preparar, ou delinear, assim, uma autêntica viagem de circum-navegação.

 

Esta breve introdução pode, por isso, definir-se como o estabelecimento de um desafio: o de testar uma hipótese em função das diversas condicionantes em jogo – e, por arrastamento, o de fincar essa hipótese de forma curta e clara, para que o preâmbulo não adormeça, nem confunda, as energias do leitor eventual antes da deambulação efetiva.

 

 

*

 

Ao se referir ao papel da hipótese na construção teórica, ou na configuração interpretativa no campo das ciências humanas em geral, e da crítica literária em particular, Fidelino de Figueiredo afirmou:

 

É neste momento que intervem a hypothese, isto é, o expediente de suppôr provisoriamente coisas, que nos ajudam a encadear os successos e que esperamos ver confirmadas. Não é esta colaboração da hypothese que deve causar scepticismo a respeito do trabalho da critica; todos sabemos do grande papel da hypothese na elaboração das sciencias exactas e como os maiores constructores do saber, principiando por Newton, foram também grandes criadores de hypotheses. Reservam por esse motivo os tratadistas da logica sempre umas paginas á theoria da hypothese: sua justificação, operações que a constituem e regras que a dirigem. Mas esta hypothese scientifica visa a explicar o geral e a hypothese da historia litteraria visa a explicar só o singular.

 

(Figueiredo, 1941 p. 117)

 

 

Daí tira o conhecido crítico português que as hipóteses “histórico-literárias tendem a tornar-se verdades definitivas, quando se confirmam documentalmente por um dado novo, não pela repetição experimental”, ao passo que as “teorias científicas vivem enquanto são úteis e cómodas, e não são contrariadas pelos factos” (Figueiredo, 1941 pp. 117-118).

 

Se admiro o que se afirma na primeira transcrição, permitam-me levantar algumas dúvidas sobre o que ficou fixado na segunda. Ela reflete o condicionamento da época a uma visão historicista e indutivista das ciências humanas e sociais. Ela foi contraditada por uma pergunta simples, feita por Laura Spinney na Nature: se a história não pode produzir leis gerais porque é que somos capazes de fazer previsões de eventos sociais e humanos com base nela? (Spinney, 2012) Mas a razão que me leva discordar do indutivismo historicista (Popper, 1980) é outra ainda e prende-se mais intimamente com o trabalho crítico. É que a re-visão de um mesmo documento sob nova hipótese testa ainda compreensões anteriores, em contraponto, e é por essa repetição experimental que as hipóteses são postas à prova, são confirmadas ou desmentidas, no jogo da ciência, da razão e do pensamento – como no da crítica literária, ou no da hermenêutica dos textos poéticos.

 

O que é difícil, em qualquer dos casos, é encontrarmos e descrevermos o ponto preciso em que nasce em nós uma hipótese – e Fidelino de Figueiredo fê-lo. Situando-nos no nosso campo de estudos, quando um leitor procede à primeira receção de que fala Jauss (Jauss, 1988), ele já operou – com menor ou maior grau de consciência – com uma série variada de possibilidades que pôs em jogo. Na maioria dos casos sem dar por isso, visto que possui raciocínios automatizados para aplicar às leituras que seleciona. Há, portanto, conjeturas que nascem quando ainda não estabelecemos, com rigor, aquilo a que Fidelino de Figueiredo chama «hipóteses». Há postulações que temos como prováveis mesmo antes de lermos as obras, na medida em que reconhecemos a existência, incontornável num discurso crítico, de «horizontes de espera» – horizontes formados também pela leitura de artigos e recensões, ou de antologias e poemas dispersos – que podem não dar ainda uma ideia justa das obras.

 

O trabalho que em seguida apresento experimentou também horizontes percetivos antes exteriorizados, os quais, uma vez reescritos enquanto possibilidades devidamente clarificadas, se vieram a revelar inconsequentes, ou só em parte capazes de nos ajudarem a encadear os sucessos da narrativa que toda a interpretação e compreensão constituem.

 

Reporto-me a opiniões canónicas e posturas exclusivistas que foram estabelecidas como verdades em textos que discorriam sobre a obra lírica assinada por «M. António», também recenseado sob outras emergências do seu nome: Mário António ou Mário António Fernandes de Oliveira. De um modo geral rejeitavam, na produção poética do autor, o “individualismo e as preocupações esteticistas e universalistas”, lamentando que ele não se preocupasse – ou tivesse, a partir de certo momento, deixado de se preocupar – com o empenho “na reconquista de uma personalidade africana” (Cardoso, 1960)[1].

 

Continuando por entre a savana de recensões, sobre a obra de M. António – que fui coligindo para construir hipóteses de leitura a verificar e confrontar com outras (por exemplo, com a que subjaz à organização dos 50 anos 50 poemas) – encontrei um ensaio que terá sido, a este título, o mais significativo dos publicados até à saída de Coração transplantado, inclusivamente.

 

Refiro-me ao comentário do estudioso norte-americano Russell G. Hamilton, inserido no vol. I da obra que, em português, apareceu nas bancas com o título de Literatura africana literatura necessária (Hamilton, 1981). Ele afigurou-se-me significativo por dois motivos: porque representava aquela visão depreciativa da obra de M. António cuja injustiça espero vir a demonstrar; porque permitia avaliar os argumentos mais acabados de uma tal atitude, na medida em que os aprofundava sobre o reconhecimento da qualidade dos versos.

 

O título do livro assinala a adesão ideológica do autor ao projeto literário dos anos 50, pois a ‘necessidade’ da literatura nos devolve ao ‘empenho’ reclamado pelo neorrealismo negritudinista angolano. Como o próprio Hamilton demonstrava, a literatura empenhada do país era subsidiária do neorrealismo e do modernismo brasileiros, bem como do neorrealismo português e da negritude francófona ou anglófona[2]. A mistura prescrevia-lhe o mais restrito realismo, numa poética discursiva e desnudada, sazonalmente circunscrita a motivações prévias de número reduzido e, quase sempre, pouco sugestivas. Tenha-se em vista o comentário – insuspeito – de Castro Soromenho quando, em Paris, foi entrevistado para o Jornal de Angola por Sérgio Vieira: “do neorrealismo vincadamente formal da poesia e do conto dos jovens angolanos de há dez anos, pouco ficou a atestar as suas boas intenções e pouco mais do que má literatura” (Vieira).

 

Procurando apenas recheá-la por um caudal maior de informações e uma série de análises menos restringentes, microscópica e apagada sombra da crítica universitária norte-americana, a visão estruturadora do levantamento de Hamilton debitava a expetativa militante cursada num ‘processo histórico irreversível’ (como se dizia).

 

dispositio da obra, exposta no Índice, espelha também a mesma conceção. Ela pressupõe uma organização dos materiais que visiona a literatura angolana como tendo passado por uma fase inicial de ‘aculturação’, à qual se seguiu a fase de lucidez nacionalista, negritudinista e neorrealista, momento culminante da consciência histórica local – e, quiçá, inultrapassável.

 

Ao adjetivar dessa forma a cronologia da literatura angolana, Russell Hamilton caía no erro de todos os que, até aí, pretenderam reduzir à estrita poética ‘dos cinquenta’ a consciência literária possível e desejável no país. Tanto quanto eles, ficava sem outra explicação para o aparecimento de casos como o de M. António, que não fosse a que se travestia nos libelos acusatórios de alienação e ambiguidade, circunscritas ambas no vigiado cancro de uma exceção à regra. Leia-se, a título de exemplo, a seguinte passagem da entrevista que Luandino Vieira concedeu ao Jornal de Angola, onde é nítido o tipo de valores com que se denegria a lírica de M. António: “do grupo da Mensagem só Mário António continua proficuamente a produzir. Poderá dizer-se que o que tem produzido e publicado corresponda àquilo que enunciou como «integrado num conteúdo a transmitir como mensagem consciencializada»? Não, em minha opinião.” (Vieira)

 

A verdade é que, mesmo ao longo dos anos 50, foram surgindo outros casos que romperam a univocidade neorrealista, demonstrando que a matriz da poesia angolana entroncava, também, numa lírica sincrética, por vezes mais ingenuamente localizada mas preocupada com a sua qualificação e atualização estéticas, sem comprometimentos partidários obrigatoriamente agrafados com palavras de ordem nos versos. Entre esses outros casos avultavam os nomes de Alda Lara, mais velha que M. António, mas também várias tentativas de Arnaldo Santos compiladas em Fuga e, mesmo, de Ernesto Lara Filho – ainda quando as marcas realistas fossem evidentes neste poeta, fortemente influenciado por Aires de Almeida Santos.

 

O que havia em comum entre todos era a sua crioulidade – para o caso dos irmãos de Benguela tão gostosamente assumida e que reincide em A boneca de Quilengues com a amargura dos “anos da peste”. Uma parte significativa da consciência crioula de Angola divergia assim – hipoteticamente sem saber – do projeto nacionalista estrito, programaticamente dominado pelos valores da negritude e do neorrealismo, largamente superados no resto do mundo por práticas poéticas inovadoras (concretismo-experimentalismo, a terceira vaga surrealista, a renovação lírica levada a cabo pela Távola redonda em Portugal e por Ossip Mandelstam, Anna Akhmatova, Arseny Tarkovsky e outros na Rússia, o nascimento coetâneo da beat generation nos EUA, etc.). Provam-no os termos em que Alda Lara, dirigindo-se ao irmão, se distancia dos ‘políticos’ de Luanda:

 

Gostaria que me dissesses o que devo fazer para te enviar uma seleção dos meus poemas para a «Colecção Bailundo». Creio já ser tempo de os pôr cá fora, e na verdade gostaria mais de os ver «integrados» na Colecção Bailundo do que na dos Autores Ultramarinos [cujo n.º 1 é, no entanto, amor, de M. António]. Nem sequer é por razões políticas. Nunca as tive e agora é que as não tenho mesmo. A política e tudo quanto dela deriva dá-me vómitos, para te falar com franqueza. É apenas porque situo a minha poesia mais próximo da tua ou da do Aires de Almeida Santos do que da dos outros. Compreendido? Mais tarde, a geração futura decidirá quais foram os verdadeiros «poetas». O resto é nada.”[3]

 

Os valores que, na esteira da Mensagem, Hamilton credita como tábuas para ler a angolanidade literária não permitiam compreender estas inquietações e realizações éticas e estéticas. Mas, como leitor atento que foi da poesia de M. António, ele ter-se-á apercebido de alguns dos traços da sua crioulidade – não os podendo, lamentavelmente, explicar ou descrever com exatidão e alcance. Por esse motivo o crítico norte-americano oscila entre a admiração – junta com o reconhecimento da qualidade – a rejeição e a tentativa de compreensão dentro dos parâmetros estreitos das escolas de pensamento sob a influência das quais o seu trabalho se condicionou.

 

Quando lê, por exemplo, «Avó negra» - o primeiro poema dos publicados em livro – deixa contaminar-se por uma impressão negritudinista e expressivista dos versos, para depois reconhecer o “paradoxo” gerado pela “alienação duma realidade africana tradicional” (Hamilton, 1981 p. 100). Na verdade, como espero demonstrar mais à frente (cp. III), a composição bloqueia-nos uma leitura negritudinista, valorizando a figura da “avó” do “sujeito de Mário António” enquanto origem voluntária de um processo crioulizante. É quando rompe com o mundo tradicional e rural que ela se torna “heroína”, aliás “heroína de ideias”, ao passo que a sabedoria típica daquele mundo (personificada no kimbanda) se resume a enganos (figurados no “alembamento” que a avó supunha merecer) e “mentiras” (as “tentadoras mentiras do quimbanda”). As saudades que ela sente – e em que Hamilton se baseia para postular a interpretação negritudinista – são apenas um dos traços essenciais da crioulidade, que depois definirá o próprio locutor: o das saudades da adolescência. E por tal motivo são referidas logo à fundadora daquela genealogia crioula (a filiação do locutor resume-se, aliás, aos antepassados crioulos: a avó, que inicia o processo a partir de dentro; a mãe, que o desequilibra; e o pai, que o acentua por ausência e por ingenuidade).

 

Talvez seja aqui despiciendo contrapor uma leitura pormenorizada do poema à que faz o estudioso norte-americano, visto que irei, ao longo do trabalho, colocar sempre em confronto as hipóteses estabelecidas, ou estabelecíveis a partir da visão negritudinista e neo-realista, com as que acabei por absorver. Mas vale a pena anotar, ainda que sumariamente, as hesitações de Hamilton, para vermos como a “alienação” que se aponta à lírica de M. António deriva só da impermeabilização da crítica a partir da armadura ideológica onde se resguarda.

 

Embora tenha percebido e assumido que “o sujeito de Mário António encara as contradições da realidade objetiva de uma maneira interiorizada” (o que vem já de outras recensões), diz que ele “exibe uma certa frustração”, de “desejos reprimidos”, que sustentaria as marcas de “surrealismo” pelas quais passam também a “própria alienação e ambivalência” do poeta (como se o ser surrealista – que M. António nunca foi – implicasse alienação). Isto sem que a figura da “frustração” seja relacionada com a “maneira interiorizada” de “encarar as contradições da realidade objetiva” (Hamilton, 1981 p. 111).

 

A ambivalência da receção de Hamilton projeta a sua sombra, depois, para a leitura de Rosto de Europa e de Coração transplantado. Na primeira o autor fala do “pasmo” e da “sentimentalidade do africano na diáspora” – reconhecendo, portanto, dois traços que veremos serem essenciais à compreensão das obras e que não as afastam da angolanidade; mas também fala na “passividade”, bem como na “alienação” perante valores europeus. Relativamente ao segundo livro anota os mesmos tópicos negativos, ainda que reconheça conter a coletânea “poemas que aprofundam o tema do angolano em confrontação interiorizada com a Europa” (Hamilton, 1981 p. 112) – o que me parece, como disse, essencial para ler as obras em causa.

 

Fica-me assim a impressão de que Russell Hamilton terá percebido as estruturas essenciais da configuração que a lírica de M. António constrói: a “maneira interiorizada” (ou seja: adoção de si próprio como modelo a imitar ou representar para a figuração da realidade universal que é o crioulo angolano), e o “sentimento africano da diáspora”, que é a forma que essa “maneira interiorizada” assume nos livros em que o locutor se coloca em espaços novos (não apenas europeus, mas, em qualquer dos casos, extra-africanos). Não foi, portanto, por insuficiência de análise que desvalorizou a obra, foi por condicionamento ideológico.

 

A edição original de Literatura africana literatura necessária é de 1975. Nessa data não tinham ainda sido publicados, nem Lusíadas, nem Afonso, o Africano, o que não viabilizava uma visão de conjunto. Mas os preconceitos de escola que afetavam a crítica de Hamilton (e desse tempo) iriam certamente perturbar tanto a leitura desses dois livros como turvaram a dos anteriores. Tendo concebido como irremediavelmente ultrapassada a fase de “aculturação” na intelectualidade do país, a sua perspetiva da literatura angolana não podia admitir, ou aceitar, ou compreender que, nos anos 50 e após os anos 50, surgisse em Angola uma poesia que, para essa visão ideológica, era ainda “aculturada”. Considerando irreversível o desaparecimento da crioulização, que ele chama eufemisticamente “aculturação”, era no mínimo anormal que emergisse mais tarde uma poética de e por crioulização, para mais vindo da pena de um jovem escritor que sai do grupo da Mensagem como seu ‘miúdo’. Para explicar a anormalidade só se podia falar num caso pessoal de alienação, ambivalência, hesitação, projetando inferências (nem sempre corretas) da biografia do autor para a realidade dos versos.

 

Se, pelo contrário e de acordo com a perspetiva do ensaísta Mário António Fernandes de Oliveira, pensarmos que a literatura angolana é inevitavelmente crioula (Oliveira, 1990 pp. 157, 355ss; Oliveira, 1968 pp. 11, 36) – o que não nos obriga a pensar o processo como ilhado – como o foi a poesia negritudinista original (Oliveira, 1990 p. 489ss), a obra lírica sobre a qual nos vamos debruçar aparece como a afirmação mais autêntica e assumida dessa realidade nos anos 50 e subsequentes. A obra mais conseguida e consequente da geração, urbana, da Mensagem. E, quando afirmo isto, preciso de salvaguardar os meus leitores contra uma leitura racial e biológica do fenómeno de que falo. Essa leitura surgiu entre os próprios detratores (na altura) do poeta. Sem talvez querer (e sem ser um detrator de M. António), Carlos Ervedosa veicula-a, numa entrevista dada com F. Costa Andrade a Luandino Vieira. Falando na ficção de M. António afirma que “o mundo bio-cultural mestiço encontra em Mário António o seu mais fiel intérprete, através da Crónica da cidade estranha ainda inédita” (Vieira). A compreensão dos processos de crioulização ou hibridação como fenómenos tipicamente culturais, sociais e psicológicos (para além de linguísticos) acentuou-se nas décadas que separam a entrevista dos dias de hoje e parece-me desnecessário elencar aqui todos os nomes e títulos que podiam servir de exemplo. Usando-se ou não termos como «crioulo», «híbrido», «mestiço cultural», a receção das obras literárias dos nossos dias caminha cada vez mais no sentido de compreendê-las como obras sincréticas, interagindo com dinâmicas sociais e culturais também contraditórias (não só conciliatórias) e transformando-as num instantâneo personalizado que, por momentos, retrata o processo contínuo da nossa contínua crioulização. Esta progressão vai no sentido oposto ao dos detratores de M. António, que olham para a crioulidade racializando-a, ligando-a aos ‘mestiços’.

 

Se, numa atitude complementar, contemplarmos esta lírica levando em conta os cânones impostos pelas opções genológicas do autor, a relação desses cânones com o crioulo colonizado (um ser humano sem História escrita e consagrada) tal como, por exemplo, a expôs Glissant, percebemos porque nela é de uma “maneira interiorizada” que se figuram “realidades objetivas”. Essa “maneira”, podendo aproximar-se de poéticas europeias, constrói no entanto uma originalidade inconfundível em contraste com o seu excesso de literatização e, simultaneamente, em face da realidade coetânea (coetânea ao autor) da literatura angolana, muito mais programada e esquemática.

 

O que, após a desmontagem das leituras feitas em recensões várias, construo como hipótese sobre as críticas à lírica em verso de M. António é, portanto, que a depreciação da sua obra, ou a rejeição como angolana que lhe andava associada, derivavam de preconceitos próprios das dominantes ideológicas da época. Por consequência, ao afastarmos esses preconceitos do nosso horizonte de leitura ressaltam com nitidez maior a fisionomia estética e o valor intrínseco dos versos, do trabalho artístico sobre as referências e da ética através delas configurada – bem como aquela nacionalidade ou especificidade literária de que não podemos, com justiça, aliená-los. Muito menos argumentando com as dificuldades editoriais do autor, ou seja, invocando falaciosamente que a publicação dos livros Rosto de Europa Coração transplantado em “um estabelecimento literário algo reacionário em Portugal antes do golpe” (a editora PAX, de Braga) removeria esta lírica “da corrente principal da literatura de Angola” (Hamilton, 1981 p. 112). Uma relação de circunstância biográfica afastaria assim toda uma obra da sua própria literatura – obra onde outros críticos estrangeiros haviam percebido, logo na altura, a qualidade estética (Cunha, 1961) e a atualização da nossa poética a que ela procedia (Gular).

 

 

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Recorri, neste primeiro momento, a uma contraposição cómoda. Coloquei de um lado as leituras negritudinistas e nneorrealistas nomeando o outro lado pelo termo crioulidade. A contraposição é cómoda, não em si, mas pelo facto de a estruturar sobre termos vulgares, não discutidos nem definidos antecipadamente. Faço agora uma breve apresentação desses termos e conceitos.

 

A disciplina crítica própria da negritude e do neorrealismo em Angola é fácil de verificar, a partir de uma bibliografia “ativa”, como a de Eugénio Ferreira para o neorrealismo (sobretudo em A crítica neo-realista), ou de uma (mais segura) bibliografia passiva, como a de Salvato Trigo (A poética da «geração da Mensagem»); ou a partir de publicações como a própria Mensagem, as revistas Cultura (a segunda série da primeira, a partir de Janeiro de 1949, e a segunda do nome, dos finais de 50). O boletim da Casa dos Estudantes do Império, também intitulado Mensagem, a Antologia da poesia negra de expressão portuguesa, publicada por Mário Pinto de Andrade em Paris em 1958, e estudos como o de Mário António sobre a poesia de Tenreiro elucidam-nos acerca da discussão e apropriação do conceito de negritude na literatura angolana. É, por isso, lícito usar os termos em questão no que se refere à amálgama que determina a poética “mensageira”, sem ter que os definir com maior particularidade ou exatidão.

 

Já o mesmo não se poderá dizer para aquele que foi, durante esta investigação, um dos conceitos-chave, um dos conceitos operatórios mais importantes: o de crioulidade. Isso é naturalmente assim, como passo a demonstrar.

 

 

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Uma eventual poética da crioulidade em Angola está ainda por levantar. Para acrescer à dificuldade criada pela pouca bibliografia, o termo «crioulo» foi conceituado por uma semântica desmultiplicada, vária, como que prestando fidelidade à sua raiz referencial. Quando falei no segmento crioulo da sociedade angolana e lhe apontei as cidades – especialmente Luanda e Benguela (Venâncio, 1996 pp. 21-22) – como locais de residência, com suas zonas de influência e de expansão, operei com facilidades de linguagem. Isso é um procedimento normal (impossível arranjar espaço e tempo que dispensem a economia linguística) mas permite equívocos e manipulações.

 

Há, sobretudo, dois esclarecimentos que o bom senso exige. O primeiro prende-se com a fixidez que certa conceituação pode sugerir; o segundo com a confusão entre emergência cultural e territorialidade.

 

Embora o primeiro se coloque a um nível mais profundo, que explica o segundo, é pela consideração desta confusão, entre emergência cultural e territorialidade, que chegaremos mais facilmente a perceber a inconveniência da fixidez conceptual.

 

O facto de emergir, em determinados territórios, uma comunidade crioula não significa a exclusão, desses territórios, de outras comunidades. Não é, propriamente, o espaço que é crioulo ou dos crioulos, mas há muitas pessoas em processo de crioulização num determinado espaço – o que até a História da Ciência conhece. Para o compreendermos e enquadrarmos, revejo as relações possíveis entre Estado, Nação e Etnia.

 

Um Estado pode comportar várias nações e, uma Naçãovárias etnias. Uma etnia ou uma nação podem ficar espartilhadas entre vários Estados. As comunidades crioulas aproximam-se, nesta tríade, da posição relacional das etnias: espartilhadas entre vários Estados, ou integradas numa só Nação e por um só Estado, a par de outras etnias.

 

Se considerarmos apenas dois “pré-requesitos básicos para que uma nação exista: um território comum e a capacidade de comunicar” (Oommen, 1994 p. 10), parece que a comunidade crioula urbana de Angola constitui uma nação, na medida em que, na versão contemporânea, surge predominantemente num dado território (velhas urbes coloniais) e possui uma variante linguística própria – ainda quando não seja um crioulo, mas apenas uma variação dialetal, ou simples variedade do português. A questão, porém, não é tão simples, nem para T. K. Oommen.

 

Tais requisitos implicam ser o território comum um território de origem e de permanência. Os nacionais, na teoria que define assim a nação, são considerados nativos – opondo-se às etnias, que se deslocaram para fora dos territórios de origem. Isso parece-me redutor, ainda que não desprovido de senso histórico. A comunidade nacional é a comunidade dos nascidos ou formados num certo lugar e que, por isso, possuem uma história mínima em comum, que lhes determina um conhecimento e reconhecimento pontilhados por algumas referências idênticas (Soares, 1992) – das quais se forma a semiosfera local.

 

Ora, em Angola, por exemplo, nas zonas de Luanda e Benguela, que habitualmente chamamos de cidades ou zonas crioulas, encontramos diversos povos, ou etnias, para além do que chamamos crioulos – uma comunidade com fronteiras sociais indefinidas. A sua convivência naquele espaço, que é um espaço intermédio no aspeto cultural e no aspeto económico e político (por isso concita a processos de crioulização, embora não os implique necessariamente), cria nos seus habitantes uma visão comum da necessária relatividade e variedade das verdades de cada um (que é, simultaneamente, o ponto de partida que tem cada um para iniciar um processo pessoal de crioulização). Mesmo os fundamentalismos dão notícia da perceção dessa relatividade, que se pretende esconjurar disciplinando e militarizando alguns traços simbólicos identitários. A par disso, o convívio no espaço comum da cidade conforma o conhecimento dos que nele crescem pela subtileza e pela atenção ao concreto, fundamentais à sobrevivência e a melhores condições de vida. Estas e outras características mais permitem falar num modo comum de conhecer e agir. A existência de tal modo de ser e de aprender, prorrogada, prolongada ou transmitida geracionalmente, leva a que se forme uma identidade que permite aos diversos cidadãos – apesar das origens diferentes – constituir uma ideia de nação (e de inter-nacionalização), de comunidade alargada na qual se conhecem como oriundos de um grupo específico e estruturante, a par de outros, incluídos todos num grupo maior, transétnico. A sua nação é a que deriva de estarem ali todos juntos e terem, portanto, uma história comum, cheia de tensões internas e equilíbrios precários, mas do conhecimento e referência de todos. Esse conceito não depende, por isso, da data em que os antepassados de uns e de outros vieram “de fora” (de onde afinal quase todos vieram), nem da distância a que ficavam as terras de origem do antepassado comum a uma dada etnia.

 

Por tal motivo a nação não é propriamente pelos nascidos, em confronto com a etnia (os que vieram de fora), que se define, mas integrante variável de várias etnias reproduzindo-se naquele espaço.

 

A contrapartida, para o conceito de nação segregador, é o conceito de etnia que a define como “uma comunidade que tem em comum um estilo de vida e uma língua, mas que não habita no seu território pátrio” (Oommen, 1994 p. 27). Não posso concordar em absoluto com Oommen, por causa da expressão em itálico e logo por ser difícil definir a terra de origem de muitos dos nossos antepassados. Mas por outros motivos também.

 

A comunidade crioula e urbana de Angola tem um estilo de vida próprio – cumprindo, portanto, o primeiro requisito da etnicidade. Mas não tem obrigatoriamente uma língua (ainda que nela domine o português de Angola) e não habita fora do seu território pátrio, se definirmos como pátrio o território de nascimento e formação dos pais. No entanto, não podemos – para o caso angolano – chamar-lhe nação, quer pelo que disse nos parágrafos anteriores (ela é uma das componentes da nação angolana), quer pelo facto de ela não possuir um território exclusivo – nem ter pretendido isso – ficando associada aos lugares onde, simplesmente, surgiu e se foi reproduzindo.

 

É preciso reformular o conceito de etnia, tal como o de nação. O poder contrastivo do caso angolano vai-nos ajudar bastante nessa tarefa.

 

Uma etnia, tanto quanto a nação, não se distingue das outras necessariamente pela sua língua. A nação brasileira já não se confunde com a portuguesa, mas a língua ainda é a mesma (Soares, 1992). O que há é uma importante variação em face do português europeu, a qual por sua vez se subdivide em variedades internas, às quais correspondem unidades geográficas definidas. Pelo que direi, como fiz atrás, que uma nação possui uma variante linguística própria (ou várias), mas não obrigatoriamente uma língua própria.

 

É natural que o mesmo suceda com uma etnia, porque as etnias derivam de um antepassado comum (que o pode ser apenas ao nível do mito), o qual por sua vez descendia de outros antepassados comuns a vários familiares seus (e de outros diferentes). Portanto, várias etnias podem ter falado a mesma ‘língua-mãe’ antes da sua diferenciação linhageira. Foi o caso das etnias ligadas pelo indo-europeu e, no nosso país, pelas línguas de raiz mbundu (u-mbundu, ki-mbundu), que por sua vez se integram nas de raiz ntu, desenvolvendo-se a partir da mesma ‘estrutura-mãe’ (que pode nunca ter existido como língua única). O que uma etnia, então, possuirá de próprio (neste aspeto) há de ser uma variante linguística, por vezes evoluindo para uma língua, mas não necessariamente uma língua diferente das outras faladas na mesma geografia contrastiva (aquela no interior da qual, em dado momento, uma identidade se define). A comunidade crioula de Angola possui uma variedade face ao português europeu, variedade aglutinadora e em expansão, que se manifesta no léxico, na fonia e na prosódia; por outro lado costuma ter o português como língua materna, ou uma das línguas maternas, em contraste com as etnias pré- ou para-coloniais. Mas não tem uma língua exclusiva.

 

Por outro lado, a ideia de que a etnia “não habita no seu território pátrio” não é defensável, nem sequer etimologicamente – para além dos raros casos em que o “território pátrio” se mantém como território de referência e de identificação (o que se passa, por exemplo, com os judeus). É mais certo falar-se (o que faz Oomen no período seguinte do artigo que venho citando) na “dissociação entre território e cultura”. Ou melhor, na disjunção entre território e cultura. Porque uma cultura crioula, como qualquer cultura étnica, pode formar-se mais e menos ligada a um território.

 

Na ideia de nação tal como a concebo, o conhecimento comum que a define deriva do facto de várias comunidades (‘povos’, ‘etnias’) co-habitarem o mesmo espaço ao mesmo tempo e com memórias locais interseccionadas e reconhecidas prolongando-se localmente. Ora, uma etnia diferencia-se de uma nação, entre outros motivos, porque possui um estilo de vida que não depende inteiramente da relação com o espaço em que se encontra, ainda que a adoção de outros estilos de vida fique regulada pelas relações locais, quer dizer, pelo que define a identidade nacional. Portanto, o facto de o conceito englobar comunidades que vivem fora do seu território de origem, ou resiliências em comunidades de origens rurais que se deslocaram para as antigas cidades coloniais, mostra uma diferença (face ao conceito de nação) mas não que seja obrigatória a origem diferente para termos um ‘povo’, uma ‘etnia’. A persistência geracional de comunidades crioulas no espaço mesmo em que surgiram demonstra que elas estão no território pátrio.

 

 

É preciso, ainda, esclarecer dois aspetos.

 

Em primeiro lugar que as etnias definidas em função de um antepassado comum são fenómenos raros, isolados e breves, em que os povos se perpetuam principalmente por meios biológicos. Não podemos, por exemplo, aplicar o termo ‘aos bakongo’ (e fazemo-lo constantemente), porque ‘bakongo’ (os do Kongo) se refere a uma nação que se formou juntando uma linhagem vinda do Norte – a do “migrante” Nimi-a-Lukeni (Luansi, 2003) – a outra que estava no local e exercia um poder sacerdotal. Essa nação resulta, logo pela sua constituição, de uma fusão de duas ‘etnias’ (na verdade, agrupou várias) – que, por sua vez, tinham entre si antepassados comuns e divergentes. Porque os nossos antepassados – mesmo reduzindo-nos apenas aos que nos marcam – têm origens diversas. Ninguém descende de um antepassado comum mas de vários, entre os quais alguns comuns. Todos tivemos pai e mãe. Na maioria dos casos, o pai e a mãe têm genealogias que se cruzam fora da eugenia – o que é bom para a saúde. Portanto, os antepassados comuns à mãe não são, geralmente, comuns ao pai. Quer sigamos, culturalmente, uma definição linhageira matri- ou patrilinear, esta realidade biológica não se apaga e tem consequências culturais, interagindo com processos simbólicos.

 

Hoje, quando chamamos etnia ‘aos bakongo’ usamos o termo porque a maioria dos ba-kongo fala variedades da mesma língua comum e se identifica por uma história comum, costumes e crenças que reconhece como de sua origem mesmo quando já não pratica. E prolonga uma certa sabedoria de vida que permite associar-lhes o epíteto de ‘grandes comerciantes’, por exemplo. O mesmo podemos dizer dos reinos do planalto central. É o caso do reino do Bailundo, que se forma (pelo mito de criação que lhe conheço) também no cruzamento de povos conquistadores, vindos do Norte, com autoridades sacerdotais e autarquias antes aqui estabelecidas.

 

A formação destas nações (que pelo acima dito me parece impróprio chamar de “étnicas”, são simplesmente nações) é, portanto, transétnica. Uma vez que podemos dizer que a maioria delas se formou de vários estratos de população bantu, argumentariam alguns que isso não é propriamente um processo de crioulização. Não penso dessa forma. Foi um processo de mistura biológica e também cultural (por isso lhe chamo crioula e não mestiça), tal como aquele de que se formaram muitas outras nações e povos no mundo, por exemplo ‘os mandingas’ ou ‘os portugueses’, ‘os marroquinos’ ou ‘os espanhóis’. A ‘origem’ bantu não define, como a indo-europeia também não, uma cultura comum. A mistura de duas culturas de raiz linguística ntu, como a mistura de duas culturas de raiz linguística indo-europeia, gera processos de crioulização, sincretismos culturais, religiosos, institucionais, políticos, artísticos, etc., sempre que parta de dois povos culturalmente distintos.

 

Esse argumento, aliás, não tolhe para a comunidade crioula da Angola urbana e colonial, que nasce no seio de relações entre povos diversos. Na formação desta crioulidade, específica territorial e cronologicamente, há sempre elementos transcontinentais (da cultura portuguesa, principalmente, mas também do mundo cultural judaico ou hebreu – os termos atualmente se confundiram –, da Europa cristã, do Brasil). O elemento novo no início é o europeu e com esse fator entrámos numa fase nova da História (definida pelo colonialismo), que veio provocar novas crioulizações – o que levou as anteriores a receberem (muitas vezes por efeito da antropologia colonial) o título de etnias quando eram autênticas nações trans-étnicas. O elemento europeu não tem que, biologicamente, estar representado nas novas crioulizações, nos novos processos de crioulização. Por exemplo os Quimbares, ou Kimbares, são crioulos em que o património genético ‘europeu’ tem pouca ou nenhuma representatividade (a julgar pela tosca ciência que aplicámos até hoje ao seu estudo). O mesmo aconteceu na região de Icolo-e-Bengo (Mascarenhas, 2008), que pode registar uma partilha maior de património genético ‘europeu’, mas apontando apenas uma diferença de percentagem pouco significativa. Nas cidades coloniais, porém, o mais comum é um crioulo que tem, por qualquer rota, uma ascendência cultural não-africana que lhe traz costumes e mitos de outra aprendizagem, não de raiz mas de caule diverso (a raiz é a da raça humana, das nossas capacidades cognitivas comuns). Essa ascendência, em muitos casos, é biológica também. Tendo em conta que o crioulo (e particularmente este, cuja ascendência cultural abriga pelo menos uma genealogia não-africana) sabe que, no mesmo espaço, podem produzir-se ou reproduzir-se outros estilos de vida, ele também adota um comportamento que não depende inteiramente da sua circunscrição territorial (o que a expansão bantu conhece bem).

 

Falo, em suma, de comunidades crioulas definidas específicas, de um certo tipo: comunidades urbanas cujos valores e padrões de comportamento resultam, necessariamente, do cruzamento e da superação de referências culturais de origem diferente. Para cuja formação, portanto, se operou uma disjunção entre território e cultura. Não quero dizer uma disjunção total, ou radical – e, muito menos, arbitrária. A adoção de comportamentos inicialmente ‘exógenos’ está na dependência da sua oportunidade face às necessidades da vida num território definido, face a uma sobrevivência que, para se assegurar, angaria critérios úteis que filtram as importações culturais pela sua pertinência no meio. Tanto quanto filtram a continuidade de traços ‘endógenos’.

 

Esta é, apesar de parcial, uma disjunção estruturante, na medida em que é o cruzamento com as referências de outras nações e etnias que determina o seu estilo de vida num dado território e, mais importante ainda, na medida em que é esse cruzamento que despoleta um processo de crioulização.

 

Sublinhe-se, de passagem, que a “desvinculação entre cultura e território” não é, para os crioulos, “um produto da conquista, da colonização e da emigração” de outra nação pela sua (no caso da conquista e da colonização), ou da sua para outra nação (no caso da emigração) (Oommen, 1994 p. 15). Eles aparecem depois disso tudo ter acontecido. Não se trata de uma nação que passa a etnia, mas de uma etnia que se forma entre várias nações, etnias ou povos e pelo cruzamento delas ou deles. Uma comunidade crioula é, portanto, uma etnia, mas uma etnia que exige uma definição peculiar – o que talvez justifique a reserva de certos teóricos, como Lewellen, em a classificarem de alguma forma: “eles [refere-se aos crioulos da Serra Leoa] não são um grupo étnico, um grupo tribal ou uma classe.” (Lewellen, 1992 p. 121).

 

As comunidades crioulas, como as etnias, podem assumir um papel condutor, o papel de uma «sociedade central» - o que sucedeu em Angola quando se deu o arranque do nacionalismo urbano, ou em Cabo Verde, sendo facilitado pelo seu carácter integrativo (não necessariamente rácico ou linhageiro, mas aberto (Lewellen, 1992 p. 121)) e pelo conhecimento que tinham do colonizador, do seu funcionamento e das suas fragilidades. Elas podem, pelo contrário, ser marginalizadas e permanecer assim, com um estatuto à parte, como terá sucedido com os grupos estudados por Jean Boulègue em Les luso-africains de Sénégambie e como terá sucedido com os ‘portugueses’ de Ceilão (considerados ‘negróides’ e falando um crioulo em vias de extinção).

 

Se pensarmos na comunidade crioula como uma rede de solidariedades (Lewellen, 1992 p. 123), é-nos fácil concebermos a sua persistência, num dado território, a par de outras solidariedades estabelecidas por outras etnias e comunidades, presentes no mesmo território.

 

Quando me refiro à insularidade crioula de Luanda e Benguela, ou falo na crioulidade iniciada pela «avó negra» no texto, estou a pensar numa rede solidária de relações cujas raízes entram pelas casas dos vizinhos. A imagem da ilha, que uso a partir de Mário António, é menos apropriada que a do lago, por exemplo, e a deste menos apropriada que a de um rio.

 

As relações solidárias podem ser familiares – mas de famílias “abertas”, no sentido de Lewellen – ou circunstanciais; neste segundo caso, ou são económicas (é inevitável que elas possuam um carácter ou uma componente económica); ou religiosas – nem sempre sendo estas determinantes da auto-definição do grupo, mas relacionando-se intimamente com a solidariedade económica, como sucede na Serra Leoa com os crioulos maçónicos. Trata-se de uma rede que organiza de forma própria um dado espaço, independentemente de transitar ou se expandir para outros, ou de coexistir com outras solidariedades, o que até parece intrínseco.

 

A conceção com que avanço, de uma rede estruturada por laços de solidariedades múltiplas que vão para além de si, é já o indício de uma realidade flutuante, ao mesmo tempo dinâmica e difícil de fixar. Os valores e padrões de comportamento em torno dos quais, em dada altura, se reúnem as comunidades crioulas mudam, por isso, com maior rapidez do que os de outros agrupamentos de menor mobilidade cultural – por isso e por motivos de cariz psicológico explicitados no princípio do cap. IV.

 

 

A reprodução social destas comunidades solidárias pode-se fazer de formas diversas – e a maneira como se dá contribui para fixar o número de padrões e valores a transmitir.

 

Em certos casos, como se representa nos 100 poemas pela passagem da geração da avó negra para a da filha, pode haver uma reprodução cultural que não foi intelectualizada. De pai para filho pode-se dar um tipo de reprodução idêntico: pelo estilo, pela imitação de maneiras e comportamentos. Isso também é figurado na lírica de M. António, quando o locutor frisa repetidamente o prolongamento, em si, do estilo de vida do pai.

 

Em outros casos a reprodução cultural é intelectualizada, fazendo-se após uma tomada de consciência do que significa ser crioulo. É como podemos, antropologicamente, ver a poesia que vou estudar: como uma tomada de consciência e uma tentativa de reprodução social dos valores, modos de vida e padrões de comportamento tidos por próprios da crioulidade. E, no entanto, partiremos de um levantamento intrinsecamente literário para aí chegarmos…

 

No primeiro caso, é de supor que a transmissão cultural conduza a muitas alterações na definição da comunidade, aliás aberta necessariamente à mudança das relações económicas e sociais que a sustentam e condicionam (Venâncio, 1996 pp. 11-21; Venâncio, 1994 pp. 2-3, 5-6). Por isso também, o segundo modo (intelectualizado) de transmissão cultural pode não ser o mais eficiente. Não o será nos momentos em que, por rápidas e decisivas mudanças no sistema mundial, a comunidade em pouco tempo desaparece se não alterar alguns (por vezes fundamentais) dos seus valores e dos seus padrões de comportamento. Ao fixar e fletir padrões de um determinado período de uma comunidade viva, provisória e interativa, tal meio transmissor de cultura pode ficar rapidamente desatualizado e desmentido.

 

Num caso como no outro, a dificuldade em assegurar o que se transmite mostra-nos que estamos perante factos que indiciam a íntima mobilidade social e cultural das comunidades crioulas. Tirando alguns traços que estruturalmente as definem – entre os quais há de sem dúvida ressaltar o cruzamento de referências como processo de conhecimento e de formação pessoal – quando falo em crioulidade, nesta obra, sei que tenho em mente apenas um momento num território em que ela subsiste ou sobrevive, juntamente com outras etnias da mesma nação.

 

Podia argumentar-se no sentido de afirmar que isso sucede com toda e qualquer comunidade que não esteja completamente isolada do resto do mundo. Aceito que sim, que “a noção de pureza cultural é um mito”. Sempre o foi e hoje mais ainda se torna “impossível, num mundo em [cada vez mais] rápida transformação, preservar as culturas em toda a sua pureza original” (Oommen, 1994 p. 26), como também lembraram Glissant e, mais recentemente, Pierre Lévy (Lévy, 1999). Porém, por definição, as comunidades crioulas são entrepostos culturais, redes de intermediação entre outras. É isso que o colonialismo português rentabiliza a seu favor em Angola ou na Guiné, com os lançados e pumbeiros, muitos deles mestiços e todos (quanto saiba) adotando comportamentos mistos. Um crioulo no sentido original da palavra – i.e., uma pessoa criada numa casa patriarcal e no interior de um sistema escravocrático – não possui uma cultura estruturante que se modifica neste ou naquele aspeto, como sucede com um emigrante; a sua cultura estruturante é uma síntese que ele faz e refaz ao longo dos anos de aprendizagem e desenvolvimento pessoal, uma síntese entre pelo menos duas culturas estruturadas e prévias. Como se pode ler no cap. III, a síntese pessoal que define o crioulo é também um processo predominantemente autorregulado de transferências culturais, o que assegura a autonomia mental do homem culturalmente misto.

 

Se qualquer comunidade, desde que em contacto com o resto do mundo, sofre mudanças constantes que afetam parcialmente a sua definição pátria, absolutamente isso acontecerá com aquelas que se definem à partida como intermédias ou intermediárias, e sincréticas – e que subsistem em virtude dessa sua colocação. O trabalho que vos apresento não visa, portanto (para além daqueles traços especificadores indispensáveis para definir o objeto de estudo) construir ou descobrir qualquer espécie de ‘ideologia’ do crioulo, qualquer fixação de valores e padrões culturais, inevitavelmente situados. Mais do que várias outras designações, crioulo reportar-se-á sempre a conceções dinâmicas, plásticas e o trabalho pretende apenas compreender como a poesia estatui e propõe uma tese sobre uma estratificação intermédia no seu processo de formação e desenvolvimento.

 

 

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Uma Introdução, embora apareça no princípio, é, como se sabe, a última peça a compor. Porque só depois do trabalho feito podemos introduzir o leitor, uma vez que só então o vemos por inteiro. É por isso tempo de fazer algumas observações elementares e finais acerca da organização destas páginas.

 

Em primeiro lugar um esclarecimento. O leitor estranhará talvez que não tenha considerado poemas inéditos ou dispersos. O que eu percebi foi que a lírica de M. António, lido o conjunto dos seus livros, formava uma espécie de romance de autor e, portanto, devia ser lida como tal. Os poemas dispersos ou inéditos não fazem parte dessa espécie de ‘romance lírico’ porque foram excluídos dele pelo próprio autor.

 

Alguns leitores também estranharam que dedicasse dois capítulos iniciais a questões de teoria literária, particularmente à genologia. Nada mais lógico a meu ver, embora a tese pudesse ter sido feita sem isso. Porque se trata de um trabalho antes de tudo literário tentei, em primeiro lugar, o esboço de uma conceituação genológica pertinente em face da obra em causa, que desafia qualquer classificação quando considerada no seu conjunto. Era preciso configurar uma genologia capaz de abarcar este tipo de obra para perceber com que regras ela joga. Isso ocupou-me o cap. I – onde procurei definir e destrinçar os conceitos construtivos e englobantes de subjetividade poética e de lírica; e o cap. II, onde procurei funcionalizar a discussão anterior aplicando-a à destrinça entre diversas espécies híbridas no seio das quais inseri toda a obra e, com realce, os 100 poemas.

 

Passei depois a estudar a configuração do processo formador do “sujeito de M. António” (cap. III) e das características fundacionais da personagem e da poesia que ela assume (cap. IV), definindo as fases respetivas e discutindo aquelas que as recensões anteriores propunham. Centrei-me, então, nos 100 poemas – por ao longo dos versos deles ficar esboçado o processo formador (processo que é, nas obras seguintes, apenas evocado).

 

Finalmente (cap. V) analisei a fixação e deriva do «eu», ancorado na sua história bibliográfica e aportando a paisagens e países variados – bem como a livros e poéticas diferentes. Fi-lo para perceber a íntima unidade de toda a obra, ou seja, para ver que é o crioulo formado em Luanda que depois se coloca na Europa e no mundo, universalizando-se enquanto crioulo, reunificando-se pela saudosa recorrência do sujeito de uns livros ao dos anteriores.

 

Na Conclusão procurei resumir as implicações do que até então levantara, bem como sintetizar o que me pareceu relevante na obra de M. António: uma estética e uma ética da crioulidade, qualquer delas flutuante o suficiente para não se fechar em si própria, apesar dos traços comuns – a saber, o da subjetividade (mais que o da intimidade), o da consciência de que todos os raios de sol aquecem a noite (ou de que são muitos e vários os caminhos possíveis) e a saudosa transcensão do fragmentário quotidiano por uma bio-grafagem personalizada.

 

 

Lisboa, 12 de Julho de 1996.

Luanda, 5 de Agosto de 2012.

 




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