Subjetividade, lírica e expressão
A transposição do conceito de subjetividade – da Filosofia, da Linguística, da Psicologia – para os Estudos Literários leva-nos a pensar, de acordo com um fragmento de Hegel
Em consequência – também já desde Hegel e pelos irmãos Schlegel – o tipo de subjetividade associado à lírica é predominantemente contaminado pela pressuposição de um relacionamento vinculatório, de causalidade, entre a imagem proposta por um discurso como a do seu autor e a imagem proposta por um leitor como sendo a de um sujeito “real”, que teria gerado o discurso. Ou seja, pelo tipo de subjetividade expressivista, explicada para o Romantismo por Ricoeur, através da acusação segundo a qual as “formas românticas da hermenêutica descuraram a situação específica criada pela disjunção do sentido verbal do texto, relativamente à intenção psicológica do autor”
A associação entre poesia lírica e enunciado subjetivo, assim concebido, é feita por Frederico e Guilherme Schlegel, por Schelling e, como disse, por Hegel
A posição de Hegel é, no entanto, de classificação difícil entre o subjetivismo, a consciência de ser acima de tudo a obra um artefacto ou artifício, e a conceção pragmática da literatura.
Logo no começo da secção dedicada à diferença “entre a obra de Arte poética e a obra de Arte prosaica”, a Estética define o critério pelo qual estudará a poesia: o estudo dos “conteúdos” e dos “modos de representação”. O conteúdo, ou seja, o objeto da representação poética, a sua referência, é sempre de cariz espiritual, até “quando apela para a intuição e a perceção”
Ainda na linha clássica das suas propostas, Hegel faz a comparação entre a Poesia e a História, realçando a fidelidade aos acontecimentos que a História tem de manter, não podendo eliminar nada nem, por isso, reorganizar os “conteúdos”. A Poesia, por seu lado, vai “transformar a matéria existente, a fim de a tornar, mesmo exteriormente, conforme à verdade interna”
O uso de certos termos, tais como “verdade interna” ou “expressão”, é que nos remete para uma conceção expressivista. No entanto, devemos acautelar o significado desses termos na obra do autor, atentando no todo em que estão inseridos. A “verdade interna” diz respeito à focalização, e aplica-se tanto à narrativa quanto à lírica. A verdade externa designa aquilo que é representado visualmente – filmicamente, diríamos hoje; a interna designa a representação ou nomeação de factos da vida psíquica ou espiritual. Quanto à expressão, quando o filósofo nos fala em exprimir a poesia “a representação espontânea do verdadeiro”, o verbo não tem cunho expressivista, até porque Hegel reconhece que a destrinça entre “prosa” e “poesia” está na capacidade de “figuração” desta, como se confirma pelo exemplo do famoso dístico de Heródoto sobre a batalha das Termópilas
A conotação entre representar e exprimir desenvolve-se depois sob uma forma bipolar: “a representação só pode ser para a expressão poética o que a figura visível e sensível executada na pedra ou por meio de cores é para as artes plásticas e o que a harmonia e a melodia são para a música, quer dizer, uma exteriorização artística de um conteúdo”; daí que devamos, “portanto, buscar o ponto de partida da expressão elaborada na representação igualmente elaborada” onde se vai, por conclusão, centrar o critério judicativo do crítico
O estabelecimento do critério da representação estrutura, pois, a teoria geral da poesia de Hegel, ao ponto de se definir “a representação poética como uma representação figurada [o itálico está no texto], porque ela põe sob os nossos olhos, não a essência abstrata (antes associada aos discursos religioso e filosófico, prosaicos
Já na comparação entre a poesia e arte oratória, a Estética formula a diferença genológica alicerçada nos “fins práticos” e na “utilidade racional” da oratória, ou seja, numa análise do processo comunicacional em que poesia e oratória são inseridas. A comunicação intrinsecamente artística do poeta não sustenta frases como “fim exterior à arte e ao puro gosto artístico”
Consequentemente, a poesia “de circunstância” será sempre “dependente” e “menor” – embora “algumas delas, sobretudo no género lírico, se contem entre as mais célebres”
A conotação entre a lírica e a circunstância é que nos pode suscitar a conotação entre subjetivismo e expressivismo. Mas a circunstancialização de algumas composições refere-se, precisamente, ao facto de elas perseguirem fins “práticos” – e sobreporem uma “utilidade racional” à representação de sentimentos ou paixões. Ou seja: a circunstância não se refere às afeções pessoais, mas a crenças e propósitos coletivos e ao tipo de relacionamento (imediato ou artificioso) entre eles o trabalho poético. Ela não remete, por isso, para a subjetividade.
Alguma confusão, entre subjetivismo e projetivismo nas interpretações canónicas de Hegel, deve-se também ao conceito exposto no ponto 3 do capítulo em análise – «Da subjetividade poética»
A expressão dos conteúdos “espirituais” constitui-se, portanto, pela representação de realidades atinentes à focalização interna dos referentes. Na linha do que acima expus, ao falar numa conceção não expressivista da “psicologia da criação”, na linha da relação entre familiaridade e conhecimento citada por Mário António, é que o filósofo alemão defende normativamente que o poeta possua “uma experiência tão vasta e penetrante quanto possível do tema que quer tratar, que tenha por assim dizer dominado esse tema, que o tenha integrado no seu eu [o que implica poder ser o tema, à partida, estranho], depois de o ter aprofundado e transfigurado [itálico meu]”
Mais adiante, quando fala mais especificamente na lírica, distingue-a pelos “conteúdos” de que trata, sempre antepondo à nomeação de cada conteúdo um designativo de comparação: “como fazendo parte do sujeito, como relacionando-se estreitamente com as suas paixões, disposições e reflexões, como nascendo nele o próprio momento em que se exprime”
A subjetividade associada à lírica, por sua vez, nem sempre é concebida no sentido expressivo, até porque este género é visto como satisfazendo a “necessidade […] de perceber o que sentimos […] mediante a linguagem e as palavras com que o revelamos ou objetivamos”
Quando se fala, na secção dedicada à poesia lírica, em objetivo e subjetivo, em interior e exterior, isso não significa também falar em expressão do íntimo e descrição do visível, como podia significar hoje para o senso comum. A expressão de sentimentos equivale, aqui, à representação do funcionamento do “espírito”, oposta ou complementar à representação do funcionamento do homem como um todo agindo no mundo visualizável (e não necessariamente visível). O objeto a retratar muda da vida material para a espiritual e, por isso, é necessário o poeta reparar em si próprio. Reparar em si próprio e não exprimir (no sentido atual do verbo) o que sente, pois a expressão (representação) do sentimento é sempre regulada, em arte, pelo sentido pragmático já citado, que leva o filósofo a dizer que, “sendo pessoais”, os sentimentos devem conservar “todavia um valor geral, quer dizer, sejam autênticos sentimentos e considerações capazes de despertar em outras pessoas sentimentos e considerações latentes”
Transformado em objeto o que se supunha ser o sujeito, o texto centrar-se-á nas “disposições e situações particulares”, mas universalizáveis, delas fazendo a matéria da representação lírica. Compor a partir do particular é já caraterística atribuída por Aristóteles aos poetas iâmbicos. O facto de Hegel atentar à universalização, pelo trabalho poético, dos acontecimentos particulares permite reaproximar a caraterização aristotélica dos poetas iâmbicos e a sua definição da Poesia como tratando do geral
Quando se diz, portanto, que o poeta se confunde com um objeto exterior, o que isto significa é que ele harmonizou a existência de um objeto com a representação do sentimento que tal objeto pode provocar num homem
O que me parece que, de forma geral, a teorização romântica (ou de influência romântica) esqueceu foi a componente pragmática e aristotélica da Estética, atenta sempre e acima de tudo à composição, e estabelecendo o conceito de autenticidade pelo critério da universalidade comprovada na “transferência de sentido”. na esteira dessa teorização romântica vulgarizada, tornou-se usual confundir a poética de Hegel com o subjetivismo expressivista, o que não é correto – apesar das expressões mais enganadoras do filósofo sobre a lírica, expressões que só se podem esclarecer pelo conjunto em que se integram e, sobretudo, pela equivalência expressão-representação, ou pela subordinação do conceito de expressão ao conceito de representação, corolários lógicos de um sistema em que a arte poética é visionada a partir de critérios atinentes à figuração e ao efeito.
No século XX, a tipologia de conceções de Lírica, enumerada por Hernadi, no capítulo «Conceitos expressivos» da Teoria dos géneros literários
Pragmatismo e conceção expressiva de Lírica
Desde já, convém deixar claro em que sentido falo de pragmática nos estudos literários. O “estudo das relações entre o emissor e o recetor e de ambos com o contexto de comunicação”
Nas obras enquadradas por Hernadi na secção dos conceitos pragmáticos, a par das que se incluem no capítulo dos autores miméticos, o expressivismo se mantém com mais frequência e resiliência. Significativa dessa proximidade, entre o enquadramento pragmático e o mimético, é a menção a Th. A. Mayer, incluindo-o nas duas secções. O facto me confirmou a perceção inicial de que a Pragmática, tal como definida por Morris, inevitavelmente se tornaria, também, expressivista.
O enquadramento pragmático faz-nos correr o risco de visionarmos o texto literário em função de uma espécie de contrato entre emissor e recetor transcendentais, ou “interlocucionais”. Agravante é que a tal contrato se reduza a significação possível do artifício poético e da “invenção” do sujeito. Exemplar a esse título foi a reflexão de Mukarovski, na medida em que transitou dos estudos linguísticos para os literários tendo o cuidado de respeitar a especificidade “abstrata [eu diria artística, ou artificiosa] do «ego» em literatura”
Para além de redutora, a perspetiva contratualista, na denúncia do acordo escritor-leitor, não discute a distração fundamentadora do expressivismo, não bloqueando por isso a contaminação da leitura pragmática pela expressiva – antes alargando-a a um expressivismo do leitor.
Já Hegel, na Estética, adotava uma posição pragmática, acima recordada, conjugada à subjetiva ao falar em Lírica, particularmente quando afirma que: “o poeta se propõe evocar no auditor ou no leitor […] uma disposição de alma sememlhante à que nele fez nascer o facto que relata e que integrou, por assim dizer, na exposição”
Um quadro literário capaz de ilustrar a ingenuidade subjacente, o mais das vezes, à conceção pragmática típica pode se extraído do Retrato do artista quando jovem, de Joyce (1916). Numa passagem Dedalus diz ao seu amigo Lynch que “a imagem, claro está, deve estabelecer-se entre a mente ou os sentidos do próprio artista e a mente ou os sentidos dos demais”. Essa postura foi devidamente notada por Hernadi
A perspetiva pragmática ingénua foi defendida numa conferência considerada por Hernadi como “fundamentalmente expressiva”
Mas não se pense que a associação entre a leitura pragmática e a expressiva terminou durante a primeira metade do século. É ainda numa perspetiva pragmática desse tipo que analisa Glowinski o funcionamento dos géneros e da sua teorização, ou em que funda Szebedy-Maszák, pelo menos, parte da significação e da distinção entre “monólogo interior” e “narrativa”
A Lógica dos géneros literários e a classificação subjetivista das obras líricas
Uma posição que, enquadrada por Hernadi (e Genette) na Pragmática, se baseia no uso do primeiro conceito de subjetividade que referi, é a de Kate Hamburger, exposta em 1957. A importância que teve o seu trabalho na crítica literária do século XX, bem como a profundidade, coerência e poder de sugestão da obra, destacam-na entre os autores “pragmáticos” e convidam-nos a determo-nos sobre ela com uma especial atenção. Mas, acima de tudo, ela nos ajudará a clarificarmos o nível em que situamos a definição subjetiva do género lírico e, por consequência, o enquadramento dos 100 poemas de M. António aí.
Na sua obra fundamental (Lógica dos géneros literários) diz Aguiar e Silva que a autora defende ser “o poema lírico […] uma afirmação real defluente de uma experiência vivida […] e existencialmente vinculada a um enunciador empírico e não ficcionalmente imputável a uma «persona» [personagem]”. Para melhor enquadrar esta e outras definições, será conveniente verificar a arquitetura teórica na qual assentam.
A visão dos géneros literários na Lógica é antecedida por um conjunto – breve mas sólido – de postulados e discussões onde se estabelece, a partir do binómio ficção-realidade, uma teoria da enunciação que nunca põe em causa a figura do “sujeito da enunciação” como “representante”, na linguagem, “do sujeito do conhecimento ou da consciência”
Nessa teoria, uma das pedras basilares é o raciocínio que alicerça a diferença entre a natureza da realidade e a da ficção: esta não é aquela por aquela ser a matéria desta. A par desse raciocínio, simples e aparentemente eficaz, desenvolve-se o estudo das enunciações através de um segundo binómio, determinado pelas relações entre língua e realidade. Consequentemente, o seu pensamento realiza um esforço constante de, ao teorizar a enunciação, tipificar os sujeitos e os enunciados pelo posicionamento contextual em que o enunciador enuncia – esforço que recorda as “relações com o auditório” nas tipologias de Frye e de Eliot. Tal trabalho é completado pelo estudo da transcendentalidade do enunciador e, em certos momentos, pela análise das realidades por ele reportadas.
Creio que podemos resumir a tese da autora ao que nos interessa aqui sem a desvirtuarmos. A lírica, para ela, é sustentada pela enunciação de sujeitos transcendentais, que referem relidades transcendentais, produzindo “declarações concernentes à realidade” que em nada de essencial difeririam das produzidas na linguagem não-literária. A narrativa (e o drama), por sua vez, se funda sobre enunciações de sujeitos fictícios, que falam sobre realidades fictícias (e é claro que, nesta classificação, também há espécies intermédias, como a balada – já assim caracterizada por Hegel
Uma observação ainda se revela indispensável: as realidades, aqui, não importam tanto em função da sua transcendentalidade, mas da do sujeito que se enuncia.
Quando Hamburger postula a existência de “declarações concernentes à realidade”, tais declarações pressupõem, portanto, a enunciação linguística diretamente realizada por um sujeito real num mundo empírico. Por oposição, os restantes géneros experienciam um relacionamento ficcional que implanta uma “não-realidade”, suportados em fictícias enunciações – e de entre eles se destacando a narrativa, por ter como “pedra de toque […] a representação da consciência da personagem”
O exemplo inicial usado para refletir acerca do lírico é o das orações. Trata-se, a nosso ver, de um exemplo ao mesmo tempo feliz e infeliz.
Infeliz porque a oração pode, estruturalmente, ser um caso de enunciação dramática no sentido jakobsoniano do termo: trata-se de um poema que tem por subdominante a função conativa, caracterizando-se “como suplicatória” por nela estar “a primeira pessoa […] subordinada à segunda”
Feliz porque subordina a consideração sobre o lírico ao seu esforço de raciocinar em função do contexto, neste caso literário e imediato. Assim, ela chama-nos a atenção para o facto de a prece poder incluir-se num livro de poesia ou num livro (ou numa cerimónia) religioso(a). a nosso ver isso não muda a definição genológica da espécie em causa, se não a reduzirmos ao uso que se lhe dá, ao enfoque pragmático dela – visto que a estrutura mantém-se, num caso e noutro, a mesma – como afirma a autora.
Mas o importante é que o contexto chamado à discussão por Kate Hamburger é literário ainda (neste momento específico do seu trabalho): é o da obra. Ao considerar a totalidade em que se integra uma oração, ela passa a definir um fragmento pelo conjunto. A definição que se der para a obra servirá para classificar a oração.
Isso constitui, quiçá, um passo menos correto, na medida em que o que define o todo não tem que ser o mesmo que define a parte. Mas, ao dar esse passo, Kate Hamburger transfere a discussão para o nível da obra, passando o género a definir-se nesse novo nível. Aí reside, para mim, o maior interesse desta passagem do livro. Explicarei porquê.
Quando fala nas narrativas, qualquer autor imagina uma obra inteira, no seu conjunto. Ao falar na “função produtora de sujeitos fictícios”
Porém, quando refletimos acerca da lírica temos por referência um poema e não um livro de poemas. Ora o que nós classificamos através das teorias literárias disponíveis são as obras e não cada poema em particular; uma obra lírica – por exemplo os 100 poemas – pode conter composições narrativas, dramáticas ou temáticas, tal como uma obra em verso pode incluir uma composição (ou mais) em prosa (o que por igual acontece nos 100 poemas). A identificação segura com o género só se dá após a leitura da totalidade – que é diferente, como sói dizer-se, da soma das partes que a compõe.
Quando, pois, falamos na configuração do sujeito no texto, estamos a pensar a esse nível: o da obra no seu conjunto, aquilo a que alguma teoria literária do século XX chamou de «macro-texto»
É certo que o conceito de «macro-texto» pressupõe uma progressão ordenada em função de um dado “fio” de sentido. a teorização em torno do conceito ganharia clareza se a aproximarmos do que a retórica chama dispositio.. A dispositio («oikonomia», em grego) “é constituída pela escolha e ordenação favoráveis […] dos pensamentos (res), das formulações linguísticas (verba) e das formas artísticas (figurae)”. Ela subdivide-se em “interna à obra” e “externa à obra”, que se orienta “segundo a finalidade” e consiste na “«planificação» feita pelo orador” (dispositio externa), ou se orienta em função de um princípio estruturador e consiste na “escolha e ordenação das partes e das formas artísticas, capazes de desempenharem funções no que diz respeito à totalidade do discurso [da obra]”
A disposição das unidades maiores (partes) e das formas artísticas, num livro, nunca é inocente, porque ela distribui uma função concreta, num texto concreto, de entre aquelas de que são portadoras essas unidades e essas figuras. Na obra perante a qual estamos a posicionar-nos isso é visível, bem como a conjugação de uma dispositio externa com outra interna, mais visivelmente ordenada pela cronologia (como veremos no cp. II e para os 100 poemas) e mais profundamente ordenada pela progressão formal (o que teremos oportunidade de ver ao longo dos cp’s V e VI) e referencial (vê-lo-emos nos cp’s IV e VI).
Um exemplo particular de conjugação da ordem externa e da interna é, precisamente, o da Lírica, ou seja, o de um discurso escrito que deve dar a impressão de transmitir uma emocionalidade intensa, e que não apresenta uma ordenação aparente (o que não é, de todo, o caso dos 100 poemas). Quando nos parece que um dado conjunto de poemas não constitui um «macro-texto», porque não se nota nele uma sequência nítida organizada em função de um «fio» condutor, nem por isso a disposição das unidades deixou de ser significativa.porque a disposição aparentemente caótica das composições sustenta o significado genológico da obra, na medida em que imita o fluir impulsivo, “autêntico”, das emoções e, por extensão, da escrita que as exprimiria. A par disso, enquanto destruição aparente de uma estrutura possível, ela é ainda um “meio importante da actividade informativa da estrutura”, para usar o conceito subtil de Lotman
Aquilo a que a retórica chama «ordo artificialis» - quer ao nível da frase, quer ao nível da «narratio» – não afeta neste caso a credibilidade (desde que devidamente usada e misturada sabiamente com excertos da «ordo naturalis» – como de resto aconselhavam as poéticas clássicas). Pelo contrário, seja como indicativo do género (literário), seja como indicativo de estado (psicológico), ela aumenta a intensidade da leitura, funcionanado como uma figura de obscuridade que deixa “ao público” a “solução”, construindo inicialmente uma sensação de “estranhamento”
É pertinente verificarmos a aplicabilidade da ideia na leitura de obras que, no confronto com os critérios de outros teóricos (por exemplo, de Kate Hamburger), podiam experimentar situações-limite. Ao nível da totalidade, um livro como o que reúne os poemas de Alberto Caeiro, por exemplo, seria considerado por Kate Hamburger lírico ou narrativo? A dúvida coloca-se porque se trata de um sujeito fictício, e a base da distinção entre lírica e narrativa reside, para a autora, na existência do enunciado sustentada na realidade ou ficcionalidade do sujeito enunciador – e não obrigatoriamente na das referências. Sendo a narrativa um género estruturado sobre um sujeito, ou sujeitos, fictícios – e realidades fictícias – o livro de Caeiro integra-se aí.
Para nós, porém, os poemas de Caeiro, ou de Campos, constituem uma obra subjetiva lírica. Em primeiro lugar, na medida em que oedecem ao cânone segundo o qual devem centralmente configurar uma personagem que se nos afigure como seu autor. Atento à leitura «ancorante» que do «eu» de cada poema o leitor faria, Fernando Pessoa propõe um sujeito fictício que se apresenta como real (por isso lhe constrói uma vida pública e um horóscopo, que dela faz parte), como aquele que é o «autor» que escreveu todos os poemas encontrados no livro e nos quais podemos indiciar as marcas da sua biografia “civil”. Em segundo lugar, porque nunca deixam de suscitar a impressão de uma sequência desordenada, ou só minimamente ordenada (por exemplo com a sequência destacada «O guardador de rebanhos», dentro da qual é, no entanto, mais difícil apercebermo-nos de uma progressão clara de sentido).
Portanto, mais que de «macro-texto», importa-nos falar em tipos de disposição ou de sequência das partes numa dada obra para podermos definir a lírica. O tipo caótico (“inconjunto para lembrar ainda Alberto Caeiro), imitando a espontaneidade e a impulsividade, bem como equiparando a sequência escrita à do fluir dos dias, convida o leitor a integrar um livro no género lírico.
O sujeito transcendental da comunicação e o expressivismo
Um sujeito transcendental, que sustenta um processo de comunicação, investido emocionadamente na qualidade de escritor imaginariamente monologante, é precisamente o retrato que subjaz a muitas das teorias que responsabilizam o lírico pela impressão de desprendimento das palavras em relação ao autor, ao mundo e ao leitor – impressão devida à independência dos significados ou “à omissão de palavras referentes ao sujeito psicológico”, e que contraria a visão de Kate Hamburger acerca da lírica
Essa perspetiva permite explicar “expressivamente” algumas posições conhecidas, como a de Dohrn, quando considera que “o leitor do poema lírico percebe amiúde os valores expressivos como inerentes às palavras mesmas à margem dos seus interlocutores”
Partindo desta conceção, podemos igualmente explicar e perceber melhor as afirmações de Sartre em 1947, segundo as quais as palavras líricas, “em vez de significar, são” – e, por consequência, a poesia lírica não poderá nunca ser comprometida
Sujeito comunicacional, comprometimento social e expressivismo na crítica bantu
É pelo prisma do empenhamento social que muitos críticos africanos funcionalizam o telescópio expressivista
Fundado em generalizações nem sempre corretas, considera que a poesia não está no objeto mas na relação objeto-expressão
E. Locha Mateso sai daí mais avisado, apontando para os anos 80 a emergência de novas correntes de leitura especializada, que se caracterizariam por atentarem em “questões muito frequentemente evitadas no estudo das literaturas africanas”
Mimetismo e pragmatismo
Numa posição que se conjuga normalmente à dos teóricos pragmáticos situam-se os que perfilham conceitos “miméticos” de arte, e que Hernadi também comenta no que ao século XX concerne. A junção de mimetismo e pragmatismo é precisamente o que define o trabalho de Gassama.
A perspetiva mimética pode-se desenvolver, se a resumirmos esquematicamente, em duas direções: na primeira supõe-se que o autor revela um mundo, ou uma idealização do mundo (desenvolvendo um sistema modelizante secundário, conforme defende Lotman); na segunda, a composição ou mimetização do mundo na obra integra o jogo de manipulações que o seu criador entre inevitavelmente pela situação social em que produz (essa, em parte, a perspetiva de Adorno
Em qualquer dos casos o poeta (o criador) é visto a fundir no texto um arsenal simbólico univocamente social e pessoal – como se não houvesse mediação artificiosa, que liberta a figuração poética da quotidiana, aproximando aquela da mentira e do jogo, enquanto esta se regula por valores de verdade coleetivamente imaginada. O “mimético” situa-se, portanto, de uma forma já considerada no início do capítulo, e que então verificamos pouco sólida.
A solução neo-realista, nos países africanos muitas vezes conjugada à negritudinista para garantir a “unidade nacional” sobre uma imagem comum a todos, elabora uma especialização da conjura de critérios miméticos e pragmáticos, ao repercutir o escritor ideologicamente, para retransmissão ao leitor (por hipérbole chamado “povo”) de uma linha de conduta e reconfiguradora que o devolveria a si próprio. Na literatura angolana, estas posições começam por ser praticadas a partir do neo-realismo português e brasileiro (que a negritude já encontra instalado, visto que ele chega ao país nos anos 40
Disso nos dá serôdio exemplo o volume Teses angolanas, o nde se reúnem comunicações apresentadas à «VI Conferências dos escritores afro-asiáticos». Ele ilustra a vitória das teorias próximas do neo-realismo, ou do realismo socialista, sobre as da negritude. Essa vitória foi por vezes comemorada com a defesa da multiculturalidade e a crítica do nacionalismo e do africanismo estrito, como sucede com o discurso de Manuel Rui Monteiro
Em qualquer dos casos, porém, a visão que se tem é necessariamente a de que a literatura projeta, ou deve projetar, a depuração ideológica do autor sobre a obra. O caráter construtivo do artefacto literário só é reconhecido sendo fiel a tal “expressão” da “realidade objetiva”, ou das contradições sociais, ou da direção que a “Revolução” deve tomar para ver consumados os projetos que a determinariam. A construção literária deve, portanto, numa diretiva “normalizadora”, ser reconduzida à composição da verdade de acordo com as regras utilizadas por qualquer pessoa para “saber” e se estruturar no mundo em que vive. Ela ficaria impossibilitada de, livremente, seguir uma via própria - que lhe procuro reconhecer.
Resíduos expressivistas em classificações estruturais
Passando ao estudo da aplicação de conceitos “estruturais” à teoria da literatura e às definições de lírico e subjetivo, a atualização do quadro genológico romântico feita pelos formalistas russos deu-lhe um perfil marcadamente linguístico, de que a tentativa estruturalista de enquadramento da poética na linguística, ou na semiótica, foi uma sequência
Talvez os textos mais marcantes, no âmbito de uma assimilação à linguística do modelo genológico dos filósofos românticos tenham sido os que, sobre o problema dos géneros, escreveu Roman Jakobson
É depois a função emotiva que irá permitir a Jakobson a destrinça entre lírica e outros géneros literários, tornando-se no lírico a função “subdominante” – sem que a passagem da linguística à literatura sinalizasse a consciência do fingimento, ou ficção.
A definição dos “fatores” jakobsonianos, aplicada à literatura, só parcialmente pode ser incluída no grupo das classificações estruturais. Na verdade, a tradução de “fatores” por “funções” torna mais clara a componente pragmática sobre a qual assenta a distribuição dos tipos. É pela intenção ou objetivo com que a linguagem se usa, num processo típico de comunicação, que se lhe determinam modalidades diversas. Mas a definição não é, somente, pragmática.
José Guilherme Merquior, partindo de pressupostos diferentes dos meus, apercebeu-se também do romantismo residual da classificação jakobsoniana dos géneros
Outro conluio de conceitos “expressivos” e “estruturais” na conceção do género lírico foi o que fez Wolfgang Kayser em 1947, ao defender que a lírica (“expressão soliloquial de formas sofridas”) corresponde à função manifestativa da linguagem – aquela que Jakobson chamaria de expressiva ou emotiva
A conjugação de teorizações oriundas da linguística com a conceção expressiva do sujeto lírico prolongou, portanto, o quadro genológico romântico pelo século XX, revitalizando-o, permitindo até uma interpretação retroativa da tipologia hegeliana: “o achado de Hegel, da dialética subjetivo-objetiva, a partir da qual aparece justificada a limitação tradicional dos três géneros, significa sobretudo a descoberta da estrutura essencial da arte como esquema pragmático”
O “radical de apresentação de Frye, exposto na Anatomia da crítica, baseia-se num quadro hipotético de interação entre o poeta e o auditório. Seria típica do género lírico a representação em que o auditório “se oculta do poeta”:
O radical de apresentação na lírica é a forma hipotética do que na religião se chama a relação «eu-tu». O poeta, por assim dizer, vira as costas aos seus ouvintes, embora possa falar para eles e embora eles possam repetir algumas das suas palavras” (como faz o padre na Missa ao dirigir-se a Deus). É nessa posição – de fingida ignorância dos outros – que se gera o cânone da subjetividade na lírica, pois o poeta, para fingir que não está a falar com os outros, acabará por falar de si e para si, ou para uma entidade muito particular, mas sempre referindo o que diz ao momento em que fala e ao facto de ser ele quem fala.
É sugestiva a comparação com Staiger (incluído por Hernadi no grupo dos teóricos expressivistas), para quem “o lírico é um ser solitário, ignora a existência de um público, e poetiza para si” – razão pela qual a poesia lírica se lhe revela como uma “arte solitária, uma arte que unicamente se percebe entre duas almas harmonizadas em idêntica solidão”
A distinção genológica baseada na dicotomia poeta-auditório pressupõe uma conceção de poesia que desenha os modos ou géneros ignorando a intermediação da escrita na construção do modelo de sujeito, lembrada por Varga
A classificação de Frye pressupõe, no entanto, uma leitura pragmática da arte, ou melhor, uma leitura da arte em função do tipo de contexto em que a comunicação artística se exeerce. A diferença entre o seu “pragmatismo” e o de Jakobson é que ele imagina um contexto artístico (o poeta e o auditório); mas esse contexto não será também o da escrita, será o da repetição oral de textos – e só por tal via (se imaginar a situação em que os poemas serão comunicados) é que o autor escreverá condicionado à forma de divulgação típica de uma obra. Ora, a forma imaginada (recitação) é cada vez mais rara, o que torna forçado o seu critério de classificação. A menos que se idealize um inconsciente coletivo que sustente a conduta do poeta pela reminiscência das arcaicas formas de reprodução (publicação) dos versos. E é o que faz o autor.
Para o expressivismo residual de Frye contribuiu, pois, a influência de Jung
As perspetivas do discurso de Hernadi – que não ignoram os modos definidos por Platão-Sócrates e as genologias policêntricas de Aristóteles e de Frye – são as que mais se afastam da procura de correspondência entre um sujeito empírico e a sua configuração textual.
À proposta de Hernadi – a meu ver mais completa que as anteriores por incluir o “modo temático” – não está (como em Frye) subjacente a crença projetivista – apesar de ele próprio incluir (e, portanto, estudar), na sua exaustiva recolha sobre a teoria dos géneros no século XX
Antes de falar em lírica, Hernadi procede à análise dos modos «temático» e «dramático», observando a fábrica linguística dos sujeitos e das personagens nos enunciados. Apenas a sombra “comunicacional” da tradição de consideração dos géneros pelo seu “contexto interlocutório” (Ricoeur) faz pairar algumas dúvidas de linguagem quando o autor aborda as várias espécies líricas
[…] a perspetiva privada quase lírica do falante enforma as suas palavras enquanto funcionam como veículos de autoexpressão mais do que como meios de comunicação interpessoal.
Ao longo das «Conclusões e propostas» da obra, o uso dos termos “subconscientes”, “autoexpressão”, “frustração”; ou de inspirações tiradas de Frye (como “a frustração ou a realização do desejo [em vez de o fracasso ou o êxito], seja do escritor, do protagonista ou do leitor”
Resumo, conclusão e prolongamento
A contaminação do trabalho teórico, ou da leitura crítica, pelo conceito expressivista de subjetividade não fica, portanto, evitada à partida por uma arquitetura de princípios “mimética”, “pragmática”, ou “estrutural”. A cada momento é preciso estar atento ao facto de a leitura deslizar para além do diálogo com o texto e suas estruturações, instrumentalizando-o como se ele fosse uma simples mediação do que pensamos conhecer acerca do autor, ou do ser humano, ou do mundo. Ou tentar a instrumentalização da ideia de autor, transcendental ou empírico, a título de argumento legitimador de interpretações
Muitas vezes, nos mesmos discursos podemos observar a presença simultânea de conceitos expressivos e construtivos de sujeito textual, como sucede com Dohrn.
Hernadi, por exemplo, apesar das marcas expressivistas que apresenta, ao ponto de criar uma linguagem que tende a se enredar pela do estudo dos autores, dos “ânimos”, ou dos “mundos”, é cuidadoso na orquestração das obras a partir da construção que delas faz um conjunto poético. Ao longo das genealogias genológicas do século XX nota-se que vai diferenciando, sempre que possível, termos e conceitos que remetem para o estudo textual de conceitos e termos que denunciam marcas expressivistas. Por isso, possibilita-nos igualmente um levantamento histórico da noção construtiva ou figurativa de subjetividade, que assoma já em Dohrn, embora se tenha aberto o “processo do sujeito”, de uma forma sistemática e nos estudos literários, apenas “em meados dos anos 40”, a partir de um ensaio de Wimsatt e Beardsley
Penso mais fácil a contaminação (palavra que não tem, aqui, significado clínico) do projetivismo pelo construtivismo do que a sua inversa. Porque assiste ao construtivismo um grau superior de consciência. É preciso, pois, explicar como se delapida o mais alto pelo mais baixo. Regressemos a casos anteriores.
A disseminação expressivista em conceitos miméticos parece-me natural, porque o teórico, ou ensaísta, pelo seu objeto, deixa de considerar a diferença fundamental que há entre “imitar”, ou “representar”, e “exprimir”. A disseminação expressivista em conceitos pragmáticos é igualmente previsível, uma vez que a imaginação do contexto facilmente nos conduz a confundir o que um poeta finge ser com o uso que um locutor pretende fazer da linguagem. O que mais estranho, ao tentar medir a sombra expressivista sobre a teoria literária, é que ela viessa a revelar-se entre os autores que privilegiaram conceitos “estruturais”.
No entanto, podemos observar que – à exceção de Kayser, que foi pouco rigoroso na terminologia e na conceituação que lhe está inerente – os autores “estruturais” que revelavam sinais expressivistas, apresentavam-se igualmente contaminados por uma visão pragmática da literatura – ou, se preferirmos, por uma visão da literatura tendo por referência o contexto comunicativo, e não o texto e o seu jogo de motivos e tópicos. Foi isso que notámos em Jakobson e Frye.
Parece, pois, que os critérios “estruturais”, quando não são acompanhados por uma visão pragmática da literatura, garantem mais do que os outros uma postura não-expressivista, possibilitando o estudo “construtivo” ou “criativo” do sujeito nos textos poéticos. Se o estudo construtivista se concretizar a par de uma pragmática da comunicação é que pode ser contaminado pelo vírus projetivo.
Pequeno apêndice: expressão subjetiva e lírica no pensamento em língua portuguesa
O trio «expressão-subjetividade-lírica» está omnipresente no mundo de língua portuguesa. É uma característica difícil de explicar e de aceitar. É desanimadora, para um lusófono, como desanimador é o panorama da crítica ‘negro-africana’ para um africano. Neste aspeto, as duas situações são muito semelhantes e ambas as geografias mentais que essas expressões designam (‘lusófono’, ‘africano’) são atravessadas constantemente por uma preocupação identitária que desfoca o alcance do cerne dos problemas.
A referência, necessariamente breve, a alguns autores, apenas se justifica por terem eles pensado na língua em que estou a escrever – podendo, aqui ou ali, deixar entreaberta a timidez de uma porta, ou de uma portinhola...
Falo de pensamento em língua portuguesa e não me vou, portanto, ater à mera aplicação aos ‘casos’ dos respetivos países de grelhas de pensamento construído em outras línguas e geografias. Nesse caso prefiro ir à origem e conversar diretamente com os responsáveis…
Por uma questão de economia (de tempo e de espaço) reduzo-me à leitura de algumas obras ou artigos indicadores e do século XX, de autores que desenvolveram ou indiciaram conceções acerca da relação entre obra e leitor. É pela mesma razão que também não vou repetir autores antes citados.
O critério de seleção prende-se com o caráter sugestivo e a coerência dos textos, não com a projeção pública das figuras abordadas. Sem dúvida que, entre todos, ocupa lugar de destaque Fidelino de Figueiredo. A profundidade, atualidade e poder sugestivo das suas análises e propostas retiveram a minha atenção. Mas a presença expressivista, no século XX português, pode ser documentada mais ou menos na altura em que Leonardo Coimbra criticava o “imperialismo do sujeito” e o “imperialismo do objeto” nas teorias do conhecimento – crítica de que não tirou, infelizmente, consequências para a análise literária. ela aparece resumida num quadro genológico proposto por Fidelino de Figueiredo em 1912
Nesse sugestivo trabalho, Fidelino de Figueiredo classifica – depois de analisar diversas correntes da crítica (sobretudo francesa) – a arte literária em “duas maneiras” (prosa e verso). Este, um primeiro motivo de regozijo: não se confunde prosa com narrativa, nem verso com lírica. Cada uma das “maneiras” se desdobra em “representativa” (teatral) ou “expositiva” (literária). Para mim, foi um segundo momento de regozijo: separar teatral de literário mas consciente de que, tanto num quanto em outro, temos verso e prosa. É no verso expositivo e na prosa expositiva que deparamos com a lírica, pois o expositivo se subdivide em outros dois: o de ação (“poemas, bucolismo, satyra”, no caso do verso; “romance; história e descrição” no caso da prosa) e o subjetivo (“lirismo” no verso e “prosa lírica, memórias, cartas, etc.” na prosa). O lírico surge tanto em prosa quanto em verso e se integra no “subjetivo”. A integração provocou-me, logicamente, uma primeira reserva, porque acho que lirismo e subjetividade podem existir um sem o outro.
Nas considerações em que expõe e justifica, sumariamente, o quadro – espécie de conclusão de todo o trabalho de levantamento feito sobre a crítica do fim do século XIX e princípios do seguinte – ele afirma, com muita originalidade para o tempo, que são dois os critérios por que se deve guiar a destrinça entre os vários géneros. Um, o menos original, é o da “expressão” (daí o subjetivismo) – “o escritor tem sempre em vista dois fins: a expressão e o contacto com o público”
A componente mais interessante da sua classificação vem no segundo filão que o pensador teria em vista quando escreveu: “o contacto com o público”. À partida, quando lemos a expressão “contacto com o público”, pensamos num conceito pragmático de literatura. No entanto, trata-se de um “pragmatismo” peculiar, porque ele conduz o crítico a considerar o meio ou canal utilizado (a exposição – ou seja: o livro; ou a representação, ou figuração – ou seja: o teatro), o que o leva a classificar por contextos artísticos evitando algumas das armadilhas da assimetria poeta-auditor.
A classificação pelo “meio” situar-se-á como anterior (ou superior) à classificação pela expressão, que só aparece nas modalidades expositivas. A primeira duplicação, porém, nomeada como “duas maneiras”, dizia respeito à estrutura gráfica (e rítmica) utilizada (“verso” e “prosa”). Quer dizer que o primeiro critério usado não é pragmático nem projetivo, mas intrínseco à arte, gerando-se uma hierarquia que privilegia o estrutural, depois o pragmático (no tal sentido muito peculiar) e por fim o projetivo. Podemos, então, postular a hipótese de o expressivismo de Fidelino de Figueiredo – apresentado como natural, não discutido – ter sido o preço que ele pagou à mentalidade vigente na época, seguindo a qual ninguém punha em causa (pelo menos em Portugal), o “imperialismo do sujeito” nas obras de arte literária – nem, muito menos, Leonardo Coimbra.
Numa obra rica em sugestões e já da maturidade do autor, A luta pela expressão
A teoria da obra é a de que tanto a filosofia quanto a literatura – e a própria linguagem – surgem pelo mesmo motivo: pela necessidade de exprimir. A filosofia, seguindo um raciocínio que tende para a abstração, vê na palavra um escolho, sendo essa a sua forma de viver o “drama” da expressão; a literatura constitui-se na luta com a palavra para exprimir o que de mais fundo percebemos, ou intuímos, e não conseguimos dizer nem pensar.
O expressivismo inicial de Fidelino de Figueiredo mantém-se, portanto, se não mesmo atinge o ponto culminante. Mas a tal ponto ampliado que lhe permitirá valorizar as obras pela luta da liberdade e da intuição contra a limitação trazida pela palavra, ou seja, pela marca da “impossibilidade de dizer”, associada à “impossibilidade de saber”. Daí que ele garanta, já no capítulo sobre «Criteriologia e literatura», a “força ascensional da arte literária, que em seus lampejos cria liberdade” – na medida em que vai libertando o homem da impossibilidade de dizer, e realizando – mas assim – uma «hermenêutica da existência»
O pensamento do antigo mestre português é complexo e rico: não conseguiríamos reduzi-lo ao expressivismo. Em primeiro lugar, porque ele concebe e aceita que há três “meios” decisivos para o estudo das obras: um é aquele em que o autor se forma (“o meio que educa ou define o autor”
A síntese de F. de Figueiredo não demonstra só o alcance integrador da sua teoria da literatura, abarcando os três polos da existência poética, nem apenas a consequente antecipação que ela realizava, ao estudar com tanto significado a receção das obras pelo seu horizonte de espera. Ela também nos prova a consciência (atualizada) que o crítico teve, pelo menos em dado momento, de que o «meio» que a obra nos traz no ventre não é o do autor nem o do público, mas um outro, criado, inventado pelo artífice e que as sucessivas leituras irão “recriando ou desfigurando”
A «ressonância» provocada por cada obra em cada momento é a «prova» final do valor dela
No entanto esta é uma ilação particular, ou seja: minha, que o autor não realizou. A procura da “unificação dos critérios da verdade e do juízo em arte, em todas as artes”, visando “articular à filosofia a crítica literária ou a ciência da literatura ou o estudo metódico desse constante fenómeno da consciência humana, que é a luta pela expressão verbal de novas conquistas intuitivas”
Mais recentemente, é sintomática da influência de uma tradição local a presença, talvez involuntária, do expressivismo na tipologia que Aguiar e Silva esboça no final do capítulo que à problemática dos géneros literários consagra na sua Teoria da literatura
O mundo exterior […] constitui um elemento semântico-pragmático do texto lírico somente enquanto se projeta na interioridade do poeta
Parecia mais estrita e cautelosa a sua posição nos idos de 1968
Os objetos do mundo exterior são apenas o esteio, o fundamento, o impulso de onde nascem os sentimentos [ou servem] como prolongamento do seu «eu», de forma «todo o conteúdo do mundo se converte aqui em simples vivência interior
É claro que esta atividade “interior” pode reportar-se apenas à preparação do próprio artifício literário, mas também é claro que esta é só uma interpretação minha, pessoal. Em qualquer dos momentos, Aguiar e Silva conecta – como Jakobson – uma perspetiva linguística a uma perspetiva expressivista residual. A perspetiva linguística é muito compleeta, estabelecendo vários níveis de análise (fónico, morfossintático, semântico e pragmático); o expressivismo residual terá paralelo com o de Fidelino de Figueiredo na noção comum de projeção intencional do poeta sobre a obra, equivalente à da silhueta para a sombra.
Aguiar e Silva enumera três “fatores” que, envolvidos numa “correlação sistémica”, permitiriam definir um género. O primeiro desses “fatores” é um “determinado modelo de situação comunicativa”, que fica nomeado por “modalidades enunciativas”. A focalização dos módulos “pragmáticos” por estas modalidades enunciativas trava o deslize expressivitsta a que o pragmatismo pode conduzir em situações menos acauteladas. Porém, a consideração de “elementos pragmáticos e semânticos” – como a “relação do emissor com o texto” – reabre a via da conceção expressivista da relação entre as letras de arte e o sujeito
Procurando uma classificação atualizada dos géneros literários, alargada quanto possível a todos os níveis que a ciência da linguagem possa abarcar, Aguiar e Silva chega a uma teoria dos géneros muito sugestiva, mas pouco interessante para o problema que me retém aqui. Sugestiva porque, se a linguística é a sua referência teórica estruturante, ele não deixa de articulá-la a outras, como a da retórica, ou as que apontam à consideração de uma “intenção de autor”. Pouco interessante porque, também na Teoria da literatura – e apesar de se sublinhar o papel das “modalidades enunciativas” – destrinça entre a fala quotidiana e a escrita poética não é decisiva para a visão genológica do autor, não sendo inteiramente visível uma recusa do projetivismo.
O acento na subjetividade expressivamente concebida e a associação cumulativa entre subjetividade e adolescência, terão conduzido Álvaro Ribeiro à conotação entre lírica e juventude, com suporte por igual na noção de instinto, resultando num absoluto expressivismo, em que a idade, o sexo, as fases da vida do autor são reproduzidas diretamente na configuração das obras
A conclusões idênticas, neste ponto, às de Álvaro Ribeiro chegou também Massaud Moisés, para quem falta aos poetas líricos “desprender-se de si próprios no contacto com a realidade”
Do tipo de associação estabelecido por Álvaro Ribeiro e Massaud Moisés, entre o enunciador subjetivo e uma espécie muito circunscrita de sujeito empírico, resulta igualmente a vulgarização da ideia de que a maioria dos poemas líricos fala de amor. Amor com letra minúscula, mera atração do sujeito por alguém do sexo oposto e típicas consequências, o que se vive com mais intensidade na adolescência por óbvias razões evolutivas – como lembra o filósofo português falando na preparação para a idade da procriação. A conotação, agora já quadrilateral, entre lírica-expressão-sujeito-amor, reforça-se na leitura da tradição literária europeia, desde Safo e Alceu até aos nossos dias, e na ‘aristotelização’ da teoria da lírica promovida por autores das literaturas clássicas europeias, como Batteux
Uma breve passagem, da introdução de Mário Pinto de Andrade à antologia que denominou Na noite grávida de punhais
De entre os teóricos ou filósofos portugueses, Romeu de Melo é um dos que apresenta uma conceção de autor mais sugestiva, e que possivelmente junta conceitos expressivos com outros que o não são e que nos parecem pertinentes. Pena foi que em tão breves textos a tivesse encontrado.
Para melhor compreensão dessa ideia convém ler, não apenas a breve “reflexão” em que a explana, também a que lhe antecede, intitulada “O Homem e a Linguagem”
A evolução do raciocínio vai culminar na ideia de que “a linguagem primitiva representaria a genuinidade, enquanto as línguas civilizadas seriam uma intolerável opressão exercida sobre a mente do homem pré-lógico, violentamente assimilado à civilização racional”
Na reflexão seguinte, Romeu de Melo estabelece a distinção entre o «autor» e o «ator» - ainda em coincidência com José Marinho, que leva mais uma vez a dicotomia a um grau de profundidade extraordinário
Pelo contrário, o Autor, surgido num segundo momento da História da Humanidade, e talvez até com o advento da própria História, alarga a capacidade organizadora do Homem ao “mundo do inteligível e do racionalizável. A sua capacidade ultrapassa o formalizar do sensível e concreto, para exercer-se na substancialização do inteligível e do racionalizável”
As conceções de Romeu de Melo aqui expressas possuem raízes várias e que não parece despiciendo anotar, pois o diálogo do texto com uma possível arqueologia tornará mais claras as suas implicações. Tal “arqueologia” suscita, primeiramente, a comparação destas afirmações sobre autor com uma passagem de Hegel na Estética, segundo a qual “o poeta que então só escutar a voz da razão, não utilizará certamente a sua inspiração para compor hinous ou para se apresentar como cantor em circunstâncias ou ocasiões criados por outros, mas, haurindo os temas somente no fundo mais íntimo da sua alma, far-se-á poeta dos ideais da vida, da beleza, dos direitos e pensamentos imperecíveis da humanidade”
A comparação entre autor e ator recorda ainda a teorização estética de Leonardo Coimbra em O criacionismo – apesar dos diferentes sistemas de denominação (sobretudo no que diz respeito à palavra «pessoa», que adquire em Leonardo Coimbra uma significação mais absorvente e mais intensa). Aí, o filósofo da Renascença portuguesa opõe o realismo “cousista” (equivalente ao trabalho do ator em Romeu de Melo) ao do “ideal” (equivalente à criação própria do autor): “a ideia é dialética e deixa de ser ideia desde que se substancialize. Certas ideias podem ser esgotadas e passar a símbolos cousistas, postos em Arte sem a construção dialética, que lhes dê vida e significado”. Em Leonardo Coimbra a arte seria a “dialética do sentimento”, conduzindo das sensações às noções e não deixando cristalizar as noções, mas dialetizando-as de novo com a “natureza”
Para Romeu de Melo, preocupado em criar – em termos universais e transcendentes – a “própria substância espiritual”, o Autor centra-se na obra “criadora e crítica”, secundarizando-se “como pessoa”
Por consequência, a linguagem do ator é recursiva (auto-referenciada), na medida em que ele “critica e cria sempre em função de si próprio” (p. 173). O autor, por seu lado, utilizaria uma linguagem “despida de recurso” (de auto-referência), “independente da sua realidade e dos interesses pessoais”
Juntando agora a leitura do primeiro artigo à do segundo, fica a ideia de que há três momentos principais na história da linguagem: o da palavra original, o da palavra subjetiva e o da palavra temática. A palavra original – pela maneira como Romeu de Melo a caracteriza – não seria ainda característica da constante chamada de atenção do criador sobre si próprio e, nessa medida, a palavra temática recupera algo do paraíso perdido que foi o da primitiva linguagem.
As reflexões em que baseamos a nossa leitura situam o problema ao nível da criação e do criador, tornando-se necessária uma transferência cautelosa desse para o nível da criatura. Se o conceito de ator implica a teoria expressivista de subjetividade, não deixa também de lhe ser indicada uma subjetividade textual (definida por exemplo pela noção de recurso). Mas se a obra autorial (não atorial) é produzida por um distanciamento do criador em relação às circunstâncias em que escreve e nas quais se inscreve a sua presença, ela não tem obrigatoriamente que se construir sobre uma enunciação temática. O distanciamento face à situação “real” em que enuncia, permitirá ao criador-autor “inventar” uma figura de ator que se inscreve no texto ficticiamente, compondo assim uma subjetividade construtiva e não-expressiva. A relação entre atoridade e autoridade em Fernando Pessoa vai-me permitir aclarar e completar esta hipótese.
O trio subjetividade-lírica-expressão estrutura ainda a hierarquia genológica esboçada por Pessoa, cujas afinidades com a de Eliot são evidentes – mas, tanto quanto saiba, não observadas
A prática enunciativa concretizada na Mensagem portuguesa permite ilustrara a conceção dramática reservada por Pessoa para o último grau da poesia lírica. Quando as personagens históricas são dadas por alguns poemas como seus locutores, falando sempre na primeira pessoa, apesar do radical de apresentação e da perspetiva do discurso serem os típicos da lírica, o contexto literário (a obra) em que os poemas estão inseridos e a memória histórica de referência forçam-nos a aceitar que se trata de composições dramáticas.
A apresentação dos sujeitos-locutores fictícios é subscrita aí por outro sujeito-locutor que, ao assinar o livro, se representa como causa deles. Um criador que manobra as enunciações, de forma a sugerir o tipo de subscriçção que melhor concorda com a mensagem, articulando-as como um poeta dramático modelando personagens pela fala que lhes admite à superfície do texto, ou seja, imitando estruturas do discurso dramático.
As relações de identidade entre a Mensagem e o género lírico não podem, portanto, manter-se numa perspetiva «expressivista», pragmática, ou mesmo estrutural – visto que não é o autor quem se exprime, é uma das personagens do livro. Mas, numa perspetiva construtivista, ou figuracionista, a Mensagem obedece ainda ao cânone lírico, porque o entrelaçado verbal – ao manipular todas as possibilidades enunciativas que a linguagem faculta para coordenar a forma e o referente, assumindo no meio delas uma autoria “real” (‘Screvo meu livro à beira-mágoa) – constrói uma figuração autoral (equivalente à do narrador em ficção) indispensável para a interpretação. Estudando a configuração de um sujeito que se finge outros, atingimos ainda a razão lírica da Mensagem, que não saberíamos se procurássemos detetar os sintomoas do «eu» real e único em todos os poemas.
De facto, essa é a primeira condição (nem de longe exclusiva) que circunscreve a existência do género lírico. Ele define-se por estar centrado na construção de um perfil de sujeito-locutor, a qual é indispensável à descodificação das obras. A frequência da associação subjetividade-lírica-expressividade nos trabalhos teóricos, é a confirmação de que um dos traços básicos da lírica é a modelação da figura de autor através do que Romeu de Melo, introjetivamente, chamou de “auto-recurso”.
Nesta perspetiva, a Mensagem de Pessoa situa-se no ponto-limite da lírica. Se parece focalizar a nossa atenção para o retrato de personagens históricas, algumas delas apresentando-se como sujeitos da enunciação, a descodificação de um significado menos evidente passa pela conceção do processo alquímico de mutação constante do «eu». Através da sua transfiguração constante e da passagem de voz a outros – num esforço de transcendência mais amplamente realizado pela experiência com os heterónimos – o sujeito-locutor proposto pelo conjunto do texto exemplifica o trânsito do “nevoeiro” para “a Hora” (horaciano: realiza aquilo de que está a falar na própria linguagem que usa).
Além de nos ajudarem dessa forma como casos modelares, os poemas em primeira pessoa da Mensagem constituem também uma reativação da experiência do «referente total»
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