Subjetividade, lírica e expressão

 

A transposição do conceito de subjetividade – da Filosofia, da Linguística, da Psicologia – para os Estudos Literários leva-nos a pensar, de acordo com um fragmento de Hegel (Silva, 1990 p. 193), na sua associação com a existência de poemas líricos. É longo o historial da tradição que nos conduz a tal enquadramento (Hernadi, 1978; Silva, 1984 pp. 361-401), bem focalizadas as diferenças entre a Antiguidade e a Modernidade (Genette, 1986; Silva, 1984 p. 340; AAVV, 1989; Mukarōvsky, 1981 p. 273ss; Yvancos, 1992 p. 220ss).

 

Em consequência – também já desde Hegel e pelos irmãos Schlegel – o tipo de subjetividade associado à lírica é predominantemente contaminado pela pressuposição de um relacionamento vinculatório, de causalidade, entre a imagem proposta por um discurso como a do seu autor e a imagem proposta por um leitor como sendo a de um sujeito “real”, que teria gerado o discurso. Ou seja, pelo tipo de subjetividade expressivista, explicada para o Romantismo por Ricoeur, através da acusação segundo a qual as “formas românticas da hermenêutica descuraram a situação específica criada pela disjunção do sentido verbal do texto, relativamente à intenção psicológica do autor” (Ricoeur, 1987 p. 87).

 

A associação entre poesia lírica e enunciado subjetivo, assim concebido, é feita por Frederico e Guilherme Schlegel, por Schelling e, como disse, por Hegel (Silva, 1984 p. 361; Berrio, 1989 p. 29; Hernadi, 1978 pp. 65-66; Genette, 1986 pp. 52-58), tendo-se tornado característica do pensamento romântico alemão (Berrio, 1989 p. 29; Genette, 1986 pp. 58-60; Silva, 1984 pp. 362-363).

 

A posição de Hegel é, no entanto, de classificação difícil entre o subjetivismo, a consciência de ser acima de tudo a obra um artefacto ou artifício, e a conceção pragmática da literatura.

 

Logo no começo da secção dedicada à diferença “entre a obra de Arte poética e a obra de Arte prosaica”, a Estética define o critério pelo qual estudará a poesia: o estudo dos “conteúdos” e dos “modos de representação”. O conteúdo, ou seja, o objeto da representação poética, a sua referência, é sempre de cariz espiritual, até “quando apela para a intuição e a perceção” (Hegel, 1993 p. 536). Mas a definição do conteúdo da poesia lírica sequencia-se, logo depois, pela nota sobre a “missão” dela, que a visiona pelo prisma pragmático: “a principal missão da poesia consiste em evocar à consciência a potência da vida espiritual […] e tudo aquilo que […] nos estimula e nos comove ou desfila tranquilamente diante do nosso olhar meditativo, quer dizer, o reino ilimitado das representações, das ações, das façanhas, dos destinos humanos, a marcha e as peripécias do mundo e a maneira como ele é regido pelos deuses” (Hegel, 1993 pp. 536-537). Pela renomeação dos conteúdos, esta passagem dá uma primeira indicação genológica para as futuras divisões no seio da arte poética; pela menção pragmática (“evocar à consciência”), aponta uma teoria que está centrada no relacionamento entre a representação e o efeito que ela provoca – no que, em parte, se assemelha ao estudo aristotélico da Tragédia, onde por isso a noção de catarsis assume um significado decisivo. O discurso posterior da Estética, sobre a relação entre o “todo” e as “partes”, e o conceito de “unidade”, relembram também a Poética de Aristóteles – inclusivamente contendo algumas reflexões que servem de conselho a poetas, ao mesmo tempo que de matéria de estudo para leitores, ou seja, mantendo o caráter simultaneamente descritivo e normativo do discurso crítico aristotélico (Hegel, 1993 p. XII). Note-se, de resto, o jogo entre os dois títulos, em que a Estética parece a resposta ao que se foi convencionando chamar de Poética.

 

Ainda na linha clássica das suas propostas, Hegel faz a comparação entre a Poesia e a História, realçando a fidelidade aos acontecimentos que a História tem de manter, não podendo eliminar nada nem, por isso, reorganizar os “conteúdos”. A Poesia, por seu lado, vai “transformar a matéria existente, a fim de a tornar, mesmo exteriormente, conforme à verdade interna” (Hegel, 1993 pp. 544, 545-546). A “modificação ou correção” da matéria (das referências) constitui mesmo “a principal tarefa da poesia” (Hegel, 1993 p. 548) – o que desde logo afasta qualquer ideia de projeção expressiva, sublinhando o papel do aristotelismo nesta filosofia como o de um travão ao devaneio projetivo.

 

O uso de certos termos, tais como “verdade interna” ou “expressão”, é que nos remete para uma conceção expressivista. No entanto, devemos acautelar o significado desses termos na obra do autor, atentando no todo em que estão inseridos. A “verdade interna” diz respeito à focalização, e aplica-se tanto à narrativa quanto à lírica. A verdade externa designa aquilo que é representado visualmente – filmicamente, diríamos hoje; a interna designa a representação ou nomeação de factos da vida psíquica ou espiritual. Quanto à expressão, quando o filósofo nos fala em exprimir a poesia “a representação espontânea do verdadeiro”, o verbo não tem cunho expressivista, até porque Hegel reconhece que a destrinça entre “prosa” e “poesia” está na capacidade de “figuração” desta, como se confirma pelo exemplo do famoso dístico de Heródoto sobre a batalha das Termópilas (Hegel, 1993 p. 537). Quando inicia o estudo da “expressão poética”, o filósofo equipara-a explicitamente à “representação, objetivada na palavra como seu sinal” (Hegel, 1993 p. 551). Sendo a “verdade interna” a verdade da focalização interna, a poesia “íntima” só poderá ser a representação dos sentimentos ou dos pensamentos de alguém através de expressões próprias a essa representação, entendidas como tal pelos artistas.

 

A conotação entre representar e exprimir desenvolve-se depois sob uma forma bipolar: “a representação só pode ser para a expressão poética o que a figura visível e sensível executada na pedra ou por meio de cores é para as artes plásticas e o que a harmonia e a melodia são para a música, quer dizer, uma exteriorização artística de um conteúdo”; daí que devamos, “portanto, buscar o ponto de partida da expressão elaborada na representação igualmente elaborada” onde se vai, por conclusão, centrar o critério judicativo do crítico  (Hegel, 1993 p. 551).

 

O estabelecimento do critério da representação estrutura, pois, a teoria geral da poesia de Hegel, ao ponto de se definir “a representação poética como uma representação figurada [o itálico está no texto], porque ela põe sob os nossos olhos, não a essência abstrata (antes associada aos discursos religioso e filosófico, prosaicos (Hegel, 1993 p. 550)), mas a realidade concreta” (Hegel, 1993 p. 551), no sentido de coisa focalizada por figuração. Se o que a poesia foca são “verdades internas”, pensamentos e sentimentos, ela só pode fazê-lo mediante palavras que figurem pensamentos e sentimentos em coisas, na “realidade concreta”. Nasce, assim, a dialética entre ideia e coisa, que mais tarde se tornaria central no criacionismo de Leonardo Coimbra.

 

Já na comparação entre a poesia e arte oratória, a Estética formula a diferença genológica alicerçada nos “fins práticos” e na “utilidade racional” da oratória, ou seja, numa análise do processo comunicacional em que poesia e oratória são inseridas. A comunicação intrinsecamente artística do poeta não sustenta frases como “fim exterior à arte e ao puro gosto artístico” (Hegel, 1993 p. 548), não havendo aqui lugar à conotação intimista de termos como “interior” ou “exterior”.

 

Consequentemente, a poesia “de circunstância” será sempre “dependente” e “menor” – embora “algumas delas, sobretudo no género lírico, se contem entre as mais célebres” (Hegel, 1993 p. 549) – tanto quanto a poesia que relata com detalhe acontecimentos se torna menos poética e mais histórica. A poeticidade de um texto é, portanto, estabelecida com base no processo de comunicação em que ele se insere e que dinamiza, o qual é por sua vez definido pela relação artificial com o conteúdo (na linha da distinção aristotélica entre História e Poesia). Isso equivale a dizer que a poeticidade em Hegel é definida por conceitos ‘oficinais’, como artificialidade, e não pela análise projetiva de conteúdos transcendentes e subjetivos.

 

A conotação entre a lírica e a circunstância é que nos pode suscitar a conotação entre subjetivismo e expressivismo. Mas a circunstancialização de algumas composições refere-se, precisamente, ao facto de elas perseguirem fins “práticos” – e sobreporem uma “utilidade racional” à representação de sentimentos ou paixões. Ou seja: a circunstância não se refere às afeções pessoais, mas a crenças e propósitos coletivos e ao tipo de relacionamento (imediato ou artificioso) entre eles o trabalho poético. Ela não remete, por isso, para a subjetividade.

 

Alguma confusão, entre subjetivismo e projetivismo nas interpretações canónicas de Hegel, deve-se também ao conceito exposto no ponto 3 do capítulo em análise – «Da subjetividade poética» (Hegel, 1993 pp. 549-550) – onde o filósofo fala na “interioridade sentimental da alma”. Mas, aí, o que defende, normativamente, é o equilíbrio entre a representação do concreto e do sensível e a deslocação para o “próprio centro íntimo da arte, nas profundezas da fantasia” – tomada como criação figuradora. Além disso, a “interioridade” extrema é definida por Hegel como a “esfera feita de elementos religiosos, científicos e outros, de natureza puramente prosaica” (Hegel, 1993 p. 550) – e não como sentimento vago ou circunstancial emoção. A “intimidade sentimental da alma” é, pois, a síntese da razão (intimidade) e da emoção (sentimentalidade).

 

A expressão dos conteúdos “espirituais” constitui-se, portanto, pela representação de realidades atinentes à focalização interna dos referentes. Na linha do que acima expus, ao falar numa conceção não expressivista da “psicologia da criação”, na linha da relação entre familiaridade e conhecimento citada por Mário António, é que o filósofo alemão defende normativamente que o poeta possua “uma experiência tão vasta e penetrante quanto possível do tema que quer tratar, que tenha por assim dizer dominado esse tema, que o tenha integrado no seu eu [o que implica poder ser o tema, à partida, estranho], depois de o ter aprofundado e transfigurado [itálico meu]” (Hegel, 1993 p. 550).

 

Mais adiante, quando fala mais especificamente na lírica, distingue-a pelos “conteúdos” de que trata, sempre antepondo à nomeação de cada conteúdo um designativo de comparação: “como fazendo parte do sujeito, como relacionando-se estreitamente com as suas paixões, disposições e reflexões, como nascendo nele o próprio momento em que se exprime” (Hegel, 1993 p. 569). Significa isso que o filósofo representa sempre através da linguagem a consciência do caráter fictício ou figurativo da arte poética.

 

A subjetividade associada à lírica, por sua vez, nem sempre é concebida no sentido expressivo, até porque este género é visto como satisfazendo a “necessidade […] de perceber o que sentimos […] mediante a linguagem e as palavras com que o revelamos ou objetivamos” (Hegel, 1993 p. 609). Observe-se como estas afirmações partem daquilo que superam, a tentativa da poética neoclássica de absorver uma descrição do género lírico, que lhe encomenda a representação ou imitação de sentimentos, pressuposta a sua análise, no caso dos neoclássicos anterior à criação das peças.

 

Quando se fala, na secção dedicada à poesia lírica, em objetivo e subjetivo, em interior e exterior, isso não significa também falar em expressão do íntimo e descrição do visível, como podia significar hoje para o senso comum. A expressão de sentimentos equivale, aqui, à representação do funcionamento do “espírito”, oposta ou complementar à representação do funcionamento do homem como um todo agindo no mundo visualizável (e não necessariamente visível). O objeto a retratar muda da vida material para a espiritual e, por isso, é necessário o poeta reparar em si próprio. Reparar em si próprio e não exprimir (no sentido atual do verbo) o que sente, pois a expressão (representação) do sentimento é sempre regulada, em arte, pelo sentido pragmático já citado, que leva o filósofo a dizer que, “sendo pessoais”, os sentimentos devem conservar “todavia um valor geral, quer dizer, sejam autênticos sentimentos e considerações capazes de despertar em outras pessoas sentimentos e considerações latentes” (Hegel, 1993 p. 607). Por esse motivo, na psicologia da composição de Hegel, o autor deve – ao contrário do que prega ingenuamente o expressivismo – através da poesia “libertar o indivíduo da sua fusão direta com o conteúdo: fará do conteúdo um objeto subtraído à influência de disposições psíquicas momentâneas e acidentais” (Hegel, 1993 p. 607).

 

Transformado em objeto o que se supunha ser o sujeito, o texto centrar-se-á nas “disposições e situações particulares”, mas universalizáveis, delas fazendo a matéria da representação lírica. Compor a partir do particular é já caraterística atribuída por Aristóteles aos poetas iâmbicos. O facto de Hegel atentar à universalização, pelo trabalho poético, dos acontecimentos particulares permite reaproximar a caraterização aristotélica dos poetas iâmbicos e a sua definição da Poesia como tratando do geral (Belo, 1994 p. 51). O que Hegel nos garante é que o texto lírico está centrado na composição de uma “alma” – não aquela que é, mas a sua transfiguração artística numa “alma” passível de leitura universal. Na medida em que todos os homens estão limitados por aquilo que conhecem e pelo que podem conceber, os sentimentos e pensamentos habituais de alguém irão refletir-se na estrutura da obra apenas enquanto modelos de uma configuração.

 

Quando se diz, portanto, que o poeta se confunde com um objeto exterior, o que isto significa é que ele harmonizou a existência de um objeto com a representação do sentimento que tal objeto pode provocar num homem (Hegel, 1993 p. 610). Confronte-se com a afirmação que vem pouco a seguir: “o homem, ciente [itálico meu] da sua subjetiva interioridade, vê-se a si próprio e torna-se para si mesmo uma obra de arte. Isso contrasta com o conteúdo do poema épico” (Hegel, 1993 p. 611). Essa representação está sempre condicionada a um conceito pragmático que, com Herman Parret, podíamos definir “pelo facto de o conjunto ser reconstruído a partir do ato de transposição [itálico do autor] desse sentido, ato efetuado por um ser humano em situação de co-subjetividade e participando na vida de uma comunidade” (Parret, 1994 p. 29).

 

O que me parece que, de forma geral, a teorização romântica (ou de influência romântica) esqueceu foi a componente pragmática e aristotélica da Estética, atenta sempre e acima de tudo à composição, e estabelecendo o conceito de autenticidade pelo critério da universalidade comprovada na “transferência de sentido”. na esteira dessa teorização romântica vulgarizada, tornou-se usual confundir a poética de Hegel com o subjetivismo expressivista, o que não é correto – apesar das expressões mais enganadoras do filósofo sobre a lírica, expressões que só se podem esclarecer pelo conjunto em que se integram e, sobretudo, pela equivalência expressão-representação, ou pela subordinação do conceito de expressão ao conceito de representação, corolários lógicos de um sistema em que a arte poética é visionada a partir de critérios atinentes à figuração e ao efeito.

 

No século XX, a tipologia de conceções de Lírica, enumerada por Hernadi, no capítulo «Conceitos expressivos» da Teoria dos géneros literários (Hernadi, 1978 pp. 8-27), bem como a documentada reflexão de Manuel Frias Martins sobre o assunto (Martins, 1993 pp. 131-145), exemplificam a popularidade que, entre os teóricos, apresenta ou apresentou a infeliz associação entre lírica e subjetividade expressiva ou projetivamente concebida. Mas a presença do expressivismo no interior da teoria dos géneros literários propagou-se muitas vezes, por inadvertência ou por encaixe, nos autores listados por Hernadi como representando “conceitos pragmáticos”, “estruturais” e “miméticos”. 


Pragmatismo e conceção expressiva de Lírica

 

Desde já, convém deixar claro em que sentido falo de pragmática nos estudos literários. O “estudo das relações entre o emissor e o recetor e de ambos com o contexto de comunicação” (Yvancos, 1992 p. 213; Eco, 1985 p. 27; Parret, 1994 p. 29) – definição que Morris dá de Pragmática – é a definição que me guia na crítica ao expressivismo de muito pragmaticistas. Se se tratasse do que Peirce (Cabral, 1993 p. 3) chamou a “pragmática semiótica” (o “estudo das relações dos signos com os destinatários” – mais precisamente com os códigos ativos na receção) o perigo estaria diminuído – exceção feita a alguma Estética da Receção. As diferenças entre Morris e Peirce, no aspeto que neste momento me interessa, o leitor pode aprofundar num artigo de Apel (Apel, 1988). Sobre o conceito de Pragmática foi, também, importante uma passagem de Ricoeur (Ricoeur, 1987 p. 55), sobretudo a definição da disciplina: “uma teoria da linguagem tal como se emprega em determinados contextos da interlocução”. 

 

Nas obras enquadradas por Hernadi na secção dos conceitos pragmáticos, a par das que se incluem no capítulo dos autores miméticos, o expressivismo se mantém com mais frequência e resiliência. Significativa dessa proximidade, entre o enquadramento pragmático e o mimético, é a menção a Th. A. Mayer, incluindo-o nas duas secções. O facto me confirmou a perceção inicial de que a Pragmática, tal como definida por Morris, inevitavelmente se tornaria, também, expressivista.

 

O enquadramento pragmático faz-nos correr o risco de visionarmos o texto literário em função de uma espécie de contrato entre emissor e recetor transcendentais, ou “interlocucionais”. Agravante é que a tal contrato se reduza a significação possível do artifício poético e da “invenção” do sujeito. Exemplar a esse título foi a reflexão de Mukarovski, na medida em que transitou dos estudos linguísticos para os literários tendo o cuidado de respeitar a especificidade “abstrata [eu diria artística, ou artificiosa] do «ego» em literatura” (Mukarōvsky, 1981 p. 267ss).

 

Para além de redutora, a perspetiva contratualista, na denúncia do acordo escritor-leitor, não discute a distração fundamentadora do expressivismo, não bloqueando por isso a contaminação da leitura pragmática pela expressiva – antes alargando-a a um expressivismo do leitor.

 

Já Hegel, na Estética, adotava uma posição pragmática, acima recordada, conjugada à subjetiva ao falar em Lírica, particularmente quando afirma que: “o poeta se propõe evocar no auditor ou no leitor […] uma disposição de alma sememlhante à que nele fez nascer o facto que relata e que integrou, por assim dizer, na exposição” (Hegel, 1953 pp. 225, 242, 247). Porém, demonstrando o poder sugestivo da sua obra, em outras ocasiões perspetiva o trabalho poético alertando para o facto de “o poeta” lírico ser “uma obra de arte” e um fingidor hábil e artificioso (Hegel, 1953 pp. 230, 235, 249).

 

Um quadro literário capaz de ilustrar a ingenuidade subjacente, o mais das vezes, à conceção pragmática típica pode se extraído do Retrato do artista quando jovem, de Joyce (1916). Numa passagem Dedalus diz ao seu amigo Lynch que “a imagem, claro está, deve estabelecer-se entre a mente ou os sentidos do próprio artista e a mente ou os sentidos dos demais”. Essa postura foi devidamente notada por Hernadi (Hernadi, 1978 p. 43), com citação da passagem de Joyce, e comentada por Ricoeur em Soi-même come un autre.

 

A perspetiva pragmática ingénua foi defendida numa conferência considerada por Hernadi como “fundamentalmente expressiva” (Hernadi, 1978 pp. 33-34) e apresentada por Pierre Kohler num Congresso de História da Literatura (Lyon, 1939). Nela se pressupõe que “o escritor-locutor observa ‘a disciplina dos géneros’ para poder transmitir […] ‘sem ofender o decoro e os hábitos do leitor’”. Anteriormente (1917) H. E. Mantz sublinhara, num artigo mais prudente, intitulado «Tipos em Literatura», a “conformidade consciente do artista com uma convenção que permitirá uma maior compreensão da sua obra” (Hernadi, 1978 p. 32).

 

Mas não se pense que a associação entre a leitura pragmática e a expressiva terminou durante a primeira metade do século. É ainda numa perspetiva pragmática desse tipo que analisa Glowinski o funcionamento dos géneros e da sua teorização, ou em que funda Szebedy-Maszák, pelo menos, parte da significação e da distinção entre “monólogo interior” e “narrativa” (AAVV, 1989 pp. 209-210). Foi também numa perspetiva pragmática do mesmo tipo que se alongaram parte da crítica e da teoria marxistas e fenomenologistas (Vernier, 1977). O erro que vejo nestas teorias é, para além de tudo o que procurei desmontar em termos de psicologia da criação nas páginas anteriores, o de elas se estruturarem sobre o que na poesia é repetição, quando a poesia, como arte, se define pela criatividade (o que não implica ser insignificante o que se vai repetir nas obras de um ggénero ou de uma época; mas que tal repretição só é funcional se for particularizada, ou seja, se modificar em algo o que foi dito). Por isso trabalho com um conceito de subjetividade assente sobre a criação do autor pelo texto, para nunca perder de vista a particularidade que é o seu e nosso ponto de partida.

 

 

 

A Lógica dos géneros literários e a classificação subjetivista das obras líricas

 

Uma posição que, enquadrada por Hernadi (e Genette) na Pragmática, se baseia no uso do primeiro conceito de subjetividade que referi, é a de Kate Hamburger, exposta em 1957. A importância que teve o seu trabalho na crítica literária do século XX, bem como a profundidade, coerência e poder de sugestão da obra, destacam-na entre os autores “pragmáticos” e convidam-nos a determo-nos sobre ela com uma especial atenção. Mas, acima de tudo, ela nos ajudará a clarificarmos o nível em que situamos a definição subjetiva do género lírico e, por consequência, o enquadramento dos 100 poemas de M. António aí.

 

Na sua obra fundamental (Lógica dos géneros literários) diz Aguiar e Silva que a autora defende ser “o poema lírico […] uma afirmação real defluente de uma experiência vivida […] e existencialmente vinculada a um enunciador empírico e não ficcionalmente imputável a uma «persona» [personagem]”. Para melhor enquadrar esta e outras definições, será conveniente verificar a arquitetura teórica na qual assentam.

 

A visão dos géneros literários na Lógica é antecedida por um conjunto – breve mas sólido – de postulados e discussões onde se estabelece, a partir do binómio ficção-realidade, uma teoria da enunciação que nunca põe em causa a figura do “sujeito da enunciação” como “representante”, na linguagem, “do sujeito do conhecimento ou da consciência” (Hamburger, 1986 p. 51).

 

Nessa teoria, uma das pedras basilares é o raciocínio que alicerça a diferença entre a natureza da realidade e a da ficção: esta não é aquela por aquela ser a matéria desta. A par desse raciocínio, simples e aparentemente eficaz, desenvolve-se o estudo das enunciações através de um segundo binómio, determinado pelas relações entre língua e realidade. Consequentemente, o seu pensamento realiza um esforço constante de, ao teorizar a enunciação, tipificar os sujeitos e os enunciados pelo posicionamento contextual em que o enunciador enuncia – esforço que recorda as “relações com o auditório” nas tipologias de Frye e de Eliot. Tal trabalho é completado pelo estudo da transcendentalidade do enunciador e, em certos momentos, pela análise das realidades por ele reportadas.

Creio que podemos resumir a tese da autora ao que nos interessa aqui sem a desvirtuarmos. A lírica, para ela, é sustentada pela enunciação de sujeitos transcendentais, que referem relidades transcendentais, produzindo “declarações concernentes à realidade” que em nada de essencial difeririam das produzidas na linguagem não-literária. A narrativa (e o drama), por sua vez, se funda sobre enunciações de sujeitos fictícios, que falam sobre realidades fictícias (e é claro que, nesta classificação, também há espécies intermédias, como a balada – já assim caracterizada por Hegel (Hegel, 1993 p. 610)).

 

Uma observação ainda se revela indispensável: as realidades, aqui, não importam tanto em função da sua transcendentalidade, mas da do sujeito que se enuncia.

 

Quando Hamburger postula a existência de “declarações concernentes à realidade”, tais declarações pressupõem, portanto, a enunciação linguística diretamente realizada por um sujeito real num mundo empírico. Por oposição, os restantes géneros experienciam um relacionamento ficcional que implanta uma “não-realidade”, suportados em fictícias enunciações – e de entre eles se destacando a narrativa, por ter como “pedra de toque […] a representação da consciência da personagem” (AAVV, 1989 pp. 206-207). O expressivismo, na sua caracterização de lírica, nota-se ainda quando ela defende, consequentemente, que nos poemas líricos “a linguagem funciona mais como um «meio de expressão» que como um «meio de comunicação»”, representantes que eles seriam de um “género «existencial»” onde os “objetos experimentados” (qualidade que implica a sua transcendência (Hamburger, 1986 p. 60)) não assumem um “significado independente” – e onde, por isso, prevalece “a ordem experimental intrínseca das declarações” (Hernadi, 1978 pp. 36-40)[49].

 

O exemplo inicial usado para refletir acerca do lírico é o das orações. Trata-se, a nosso ver, de um exemplo ao mesmo tempo feliz e infeliz.

 

Infeliz porque a oração pode, estruturalmente, ser um caso de enunciação dramática no sentido jakobsoniano do termo: trata-se de um poema que tem por subdominante a função conativa, caracterizando-se “como suplicatória” por nela estar “a primeira pessoa […] subordinada à segunda” (Silva, 1984 p. 373).

 

Feliz porque subordina a consideração sobre o lírico ao seu esforço de raciocinar em função do contexto, neste caso literário e imediato. Assim, ela chama-nos a atenção para o facto de a prece poder incluir-se num livro de poesia ou num livro (ou numa cerimónia) religioso(a). a nosso ver isso não muda a definição genológica da espécie em causa, se não a reduzirmos ao uso que se lhe dá, ao enfoque pragmático dela – visto que a estrutura mantém-se, num caso e noutro, a mesma – como afirma a autora.

 

Mas o importante é que o contexto chamado à discussão por Kate Hamburger é literário ainda (neste momento específico do seu trabalho): é o da obra. Ao considerar a totalidade em que se integra uma oração, ela passa a definir um fragmento pelo conjunto. A definição que se der para a obra servirá para classificar a oração.

 

Isso constitui, quiçá, um passo menos correto, na medida em que o que define o todo não tem que ser o mesmo que define a parte. Mas, ao dar esse passo, Kate Hamburger transfere a discussão para o nível da obra, passando o género a definir-se nesse novo nível. Aí reside, para mim, o maior interesse desta passagem do livro. Explicarei porquê.

 

Quando fala nas narrativas, qualquer autor imagina uma obra inteira, no seu conjunto. Ao falar na “função produtora de sujeitos fictícios” (Hamburger, 1986 p. 208), Hamburger pensa também numa totalidade, e é em função dessa totalidade que ela integra parcelas “enunciativas” na ficção narrativa, coomo no início do capítulo II (Hamburger, 1986 p. 72ss). Se a análise teórica for microscópica, não haverá possibilidade de classificar genologicamente certas obras, porque – ao nível da frase, do parágrafo, da estrofe ou do episódio – pedemos sempre encontrar momentos líricos, dramáticos e narrativos em qualquer livro que, na globalidade, se define por outro parâmetro ou cânone.

 

Porém, quando refletimos acerca da lírica temos por referência um poema e não um livro de poemas. Ora o que nós classificamos através das teorias literárias disponíveis são as obras e não cada poema em particular; uma obra lírica – por exemplo os 100 poemas – pode conter composições narrativas, dramáticas ou temáticas, tal como uma obra em verso pode incluir uma composição (ou mais) em prosa (o que por igual acontece nos 100 poemas). A identificação segura com o género só se dá após a leitura da totalidade – que é diferente, como sói dizer-se, da soma das partes que a compõe.

 

Quando, pois, falamos na configuração do sujeito no texto, estamos a pensar a esse nível: o da obra no seu conjunto, aquilo a que alguma teoria literária do século XX chamou de «macro-texto» (Silva, 1984 pp. 576-578). Não podemos entender a lírica sem atentarmos ao «macro-texto» lírico, ou seja, à disposição dos poemas nas obras e não apenas à disposição das estrofes nos poemas, ou dos versos nas estrofes, ou das palavras nos versos e frases.

 

É certo que o conceito de «macro-texto» pressupõe uma progressão ordenada em função de um dado “fio” de sentido. a teorização em torno do conceito ganharia clareza se a aproximarmos do que a retórica chama dispositio.. A dispositio («oikonomia», em grego) “é constituída pela escolha e ordenação favoráveis […] dos pensamentos (res), das formulações linguísticas (verba) e das formas artísticas (figurae)”. Ela subdivide-se em “interna à obra” e “externa à obra”, que se orienta “segundo a finalidade” e consiste na “«planificação» feita pelo orador” (dispositio externa), ou se orienta em função de um princípio estruturador e consiste na “escolha e ordenação das partes e das formas artísticas, capazes de desempenharem funções no que diz respeito à totalidade do discurso [da obra]”  (Lausberg, 1972 pp. 95, 97).

 

A disposição das unidades maiores (partes) e das formas artísticas, num livro, nunca é inocente, porque ela distribui uma função concreta, num texto concreto, de entre aquelas de que são portadoras essas unidades e essas figuras. Na obra perante a qual estamos a posicionar-nos isso é visível, bem como a conjugação de uma dispositio externa com outra interna, mais visivelmente ordenada pela cronologia (como veremos no cp. II e para os 100 poemas) e mais profundamente ordenada pela progressão formal (o que teremos oportunidade de ver ao longo dos cp’s V e VI) e referencial (vê-lo-emos nos cp’s IV e VI).

 

Um exemplo particular de conjugação da ordem externa e da interna é, precisamente, o da Lírica, ou seja, o de um discurso escrito que deve dar a impressão de transmitir uma emocionalidade intensa, e que não apresenta uma ordenação aparente (o que não é, de todo, o caso dos 100 poemas). Quando nos parece que um dado conjunto de poemas não constitui um «macro-texto», porque não se nota nele uma sequência nítida organizada em função de um «fio» condutor, nem por isso a disposição das unidades deixou de ser significativa.porque a disposição aparentemente caótica das composições sustenta o significado genológico da obra, na medida em que imita o fluir impulsivo, “autêntico”, das emoções e, por extensão, da escrita que as exprimiria. A par disso, enquanto destruição aparente de uma estrutura possível, ela é ainda um “meio importante da actividade informativa da estrutura”, para usar o conceito subtil de Lotman (Lotman, [1993] p. 350).

 

Aquilo a que a retórica chama «ordo artificialis» - quer ao nível da frase, quer ao nível da «narratio» – não afeta neste caso a credibilidade (desde que devidamente usada e misturada sabiamente com excertos da «ordo naturalis» – como de resto aconselhavam as poéticas clássicas). Pelo contrário, seja como indicativo do género (literário), seja como indicativo de estado (psicológico), ela aumenta a intensidade da leitura, funcionanado como uma figura de obscuridade que deixa “ao público” a “solução”, construindo inicialmente uma sensação de “estranhamento” (Lausberg, 1972 pp. 128, 112).

 

É pertinente verificarmos a aplicabilidade da ideia na leitura de obras que, no confronto com os critérios de outros teóricos (por exemplo, de Kate Hamburger), podiam experimentar situações-limite. Ao nível da totalidade, um livro como o que reúne os poemas de Alberto Caeiro, por exemplo, seria considerado por Kate Hamburger lírico ou narrativo? A dúvida coloca-se porque se trata de um sujeito fictício, e a base da distinção entre lírica e narrativa reside, para a autora, na existência do enunciado sustentada na realidade ou ficcionalidade do sujeito enunciador – e não obrigatoriamente na das referências. Sendo a narrativa um género estruturado sobre um sujeito, ou sujeitos, fictícios – e realidades fictícias – o livro de Caeiro integra-se aí.

 

Para nós, porém, os poemas de Caeiro, ou de Campos, constituem uma obra subjetiva lírica. Em primeiro lugar, na medida em que oedecem ao cânone segundo o qual devem centralmente configurar uma personagem que se nos afigure como seu autor. Atento à leitura «ancorante» que do «eu» de cada poema o leitor faria, Fernando Pessoa propõe um sujeito fictício que se apresenta como real (por isso lhe constrói uma vida pública e um horóscopo, que dela faz parte), como aquele que é o «autor» que escreveu todos os poemas encontrados no livro e nos quais podemos indiciar as marcas da sua biografia “civil”. Em segundo lugar, porque nunca deixam de suscitar a impressão de uma sequência desordenada, ou só minimamente ordenada (por exemplo com a sequência destacada «O guardador de rebanhos», dentro da qual é, no entanto, mais difícil apercebermo-nos de uma progressão clara de sentido).

 

Portanto, mais que de «macro-texto», importa-nos falar em tipos de disposição ou de sequência das partes numa dada obra para podermos definir a lírica. O tipo caótico (“inconjunto para lembrar ainda Alberto Caeiro), imitando a espontaneidade e a impulsividade, bem como equiparando a sequência escrita à do fluir dos dias, convida o leitor a integrar um livro no género lírico.

 

 

O sujeito transcendental da comunicação e o expressivismo
 

Um sujeito transcendental, que sustenta um processo de comunicação, investido emocionadamente na qualidade de escritor imaginariamente monologante, é precisamente o retrato que subjaz a muitas das teorias que responsabilizam o lírico pela impressão de desprendimento das palavras em relação ao autor, ao mundo e ao leitor – impressão devida à independência dos significados ou “à omissão de palavras referentes ao sujeito psicológico”, e que contraria a visão de Kate Hamburger acerca da lírica (AAVV, 1989 p. 207). Porque se concebe então que o poeta lírico de tal forma se alheia (ou finge que o faz) em relação aos objetos que as palavras designam, ou aos ouvintes – por expressar com maior intensidade e liberdade a sua emoção – que solta o que se supõe ser o cordão umbilical que liga as palavras a “coisas” e “seres” por elas designados, por exemplo, nas narrativas. Ao fazê-lo, pode soltá-las também do seu principal referente, que é quem elas apontariam como sujeito-locutor.

 

Essa perspetiva permite explicar “expressivamente” algumas posições conhecidas, como a de Dohrn, quando considera que “o leitor do poema lírico percebe amiúde os valores expressivos como inerentes às palavras mesmas à margem dos seus interlocutores” (Hernadi, 1978 p. 32); ou a de Jakobson, ao afirmar que podemos ter por poético o texto que seja passível de uma leitura “em si”, considerado como valor intrínseco (Prado, 1993 p. 100).

 

Partindo desta conceção, podemos igualmente explicar e perceber melhor as afirmações de Sartre em 1947, segundo as quais as palavras líricas, “em vez de significar, são” – e, por consequência, a poesia lírica não poderá nunca ser comprometida (Hernadi, 1978 p. 34). Posição que não foi acompanhada por outros teóricos ideologicamente próximos, como Adorno e, em certo momento, a chamada «escola de Frankfurt», onde a sua filosofia entronca (Assoun, 1989). Teorizada como atitude revolucionária face à ditadura da razão sistemática, a subjetividade fica aí elogiada, quando não assumida enquanto matriz genológica de um pensamento revolucionário (Assoun, 1989 pp. 100-101), valorativo da fragmentação e da emergência da diversidade no discurso. Ou seja, a definição de lírica, dada por aqueles que a consideram constituída a partir da rutura entre as palavras e os referentes, ou os significados habituais, podendo ser vista como expressão artística da rutura com o racionalismo unidimensional – e, portanto, como expressão de liberdade e avanço no conhecimento – permite considerar o género lírico um instrumento de um compromisso mais vasto com os objetivos políticos comuns a Sartre e Adorno.

 

Sujeito comunicacional, comprometimento social e expressivismo na crítica bantu

É pelo prisma do empenhamento social que muitos críticos africanos funcionalizam o telescópio expressivista (Mateso, 1986). Por isso não lhes dedico espaço de relevo. Apenas me interessou – para além da monumental recessão do zairense Locha Mateso, que serve sobretudo como instrumento descritivo da crítica, não de arquitetura teórica inovadora – a postura estilística e estética de Gassama (Gassama, 1978; Mateso, 1986 pp. 328-337), a partir da qual se concebe a relação do poeta (palavra equivalente, para o autor, a lírico, e oposta a romancista ou narrador) com o seu povo em África. Interessou-me porque, expressando ele o desejo de cingir-se à túnica estilística, é dos autores em que mais transparece o que podia superar.

 

Fundado em generalizações nem sempre corretas, considera que a poesia não está no objeto mas na relação objeto-expressão (Gassama, 1978 p. 35). Isso me levou a pensar na “relação entre os signos e os seus referentes” de que falava Peirce (Cabral, 1993 p. 3; Eco, 1985 p. 24s). afastada da consideração conteudística típica da crítica francófona africana do seu tempo ele procura sublinhar – subjetivamente – a identidade pública dos poetas que estuda. A “estilística” (na verdade não é bem uma estilística nem tem o propósito de ser) de Gassama descreve o interesse do crítico: “menos o «conteúdo» dos poemas que uma certa «maneira» de reunir as palavras”, ou menos o desenvolvimento de “temas «africanos»” que a produção de uma palavra “na qual o auditor reencontrará um código familiar”. Por esse motivo me pareceu que ela podia fugir ao canónico expressivismo da crítica ‘bantu’. No entanto Gassama (que diz filiar-se numa “Estética Literária” que extravasa a crítica estilística (Mateso, 1986 p. 328)) pensa mais na relação expressiva do “autor” com a obra do que na organização dos referentes configurada no texto. Como afirma Mateso, “para Gassama, a «palavra tema» é um «procedimento estilístico» pelo qual o autor tenta despoletar um sentimento dado no leitor”. A chave do processo encontra-se então na relação comunicativa “autor-leitor-objeto” (Gassama, 1978 p. 65), olhando-se para a palavra como para um pó mágico, viabilizador alquímico da transmissão de um sentimento pessoal do autor para o leitor. Na prática, ele irá consequentemente afastar-se da estrutura e da função do ‘pó mágico’ para atentar em relações contextuais e sócio-culturais. Acabará defendendo que o poeta africano procura a “adequação da expressão à ideia” de acordo com o modo de pensar e a sensibilidade africanos (Mateso, 1986 pp. 328-329). Por um lado isso é o que faz a esmagadora maioria dos poetas; por outro seria muito mais interessante que não o fizessem, para serem mais originais; por outro ainda, é mais produtivo analisar a estrutura dessa “adequação” para, a partir da análise, podermos equacionar a obra genologicamente – que é o que procuro fazer com os 100 poemas. Uma análise do tipo que procuro dispensa o crítico de submeter a leitura da obra a uma “iniciação à «ontologia» negro-africana que explique o poder místico ou mágico da palavra” (Mateso, 1986 p. 331). O que vê Gassama na palavra tradicional é o que tem qualquer palavra verdadeiramente poética: um feixe de sons, imagens, memórias, sugestões, formas, interagindo com o meio social em que são lidas, brotando dele e mexendo com ele. Não precisamos de olhar para a “ontologia negro-africana” para descobrirmos isso. É produtivo, sem dúvida, lermos as obras, também, na sua relação com o que se pensa de uma “ontologia” tradicional, caso a própria obra conduza os leitores a tal necessidade. Mas a perspetiva de Gassama, neste aspeto, torna-se tão expressivista e subjetivista quanto as outras e por isso não fornece critérios distintivos para o que procuro.

 

E. Locha Mateso sai daí mais avisado, apontando para os anos 80 a emergência de novas correntes de leitura especializada, que se caracterizariam por atentarem em “questões muito frequentemente evitadas no estudo das literaturas africanas” (Mateso, 1990 p. 83) e revelando uma visão distanciada e lúcida face ao momento anterior, compreensível na fase histórica do início das independências mas improdutiva e parcial. O problema maior desse tipo de crítica é que, enquanto felizmente houve escritores – como M. António ou António Aurélio Gonçalves – que foram criando soluções genológicas híbridas e novas, os teóricos e críticos ‘negro-africanos’ não forneceram critérios úteis ao enquadramento genológico dessas obras. Não reconheceram criticamente a novidade que estava ali, que não era tanto temática ou de ‘conteúdo’, ou de ‘resposta’, mas estrutural e esteticamente criativa, chamando por termos próprios para se designarem as novas espécies e os novos géneros, termos como «noveleta».

 

 

 

Mimetismo e pragmatismo

 

Numa posição que se conjuga normalmente à dos teóricos pragmáticos situam-se os que perfilham conceitos “miméticos” de arte, e que Hernadi também comenta no que ao século XX concerne. A junção de mimetismo e pragmatismo é precisamente o que define o trabalho de Gassama.

 

A perspetiva mimética pode-se desenvolver, se a resumirmos esquematicamente, em duas direções: na primeira supõe-se que o autor revela um mundo, ou uma idealização do mundo (desenvolvendo um sistema modelizante secundário, conforme defende Lotman); na segunda, a composição ou mimetização do mundo na obra integra o jogo de manipulações que o seu criador entre inevitavelmente pela situação social em que produz (essa, em parte, a perspetiva de Adorno (Hernadi, 1978 p. 68; Assoun, 1989)).

 

Em qualquer dos casos o poeta (o criador) é visto a fundir no texto um arsenal simbólico univocamente social e pessoal – como se não houvesse mediação artificiosa, que liberta a figuração poética da quotidiana, aproximando aquela da mentira e do jogo, enquanto esta se regula por valores de verdade coleetivamente imaginada. O “mimético” situa-se, portanto, de uma forma já considerada no início do capítulo, e que então verificamos pouco sólida.

 

A solução neo-realista, nos países africanos muitas vezes conjugada à negritudinista para garantir a “unidade nacional” sobre uma imagem comum a todos, elabora uma especialização da conjura de critérios miméticos e pragmáticos, ao repercutir o escritor ideologicamente, para retransmissão ao leitor (por hipérbole chamado “povo”) de uma linha de conduta e reconfiguradora que o devolveria a si próprio. Na literatura angolana, estas posições começam por ser praticadas a partir do neo-realismo português e brasileiro (que a negritude já encontra instalado, visto que ele chega ao país nos anos 40 (Soares, 1992)), destacando-se entre nós o papel influente e congregador de Eugénio Ferreira e da segunda série da revista Cultura, iniciada em Janeiro de 1949. A negritude chega ao escol intelectual que dominará o país durante a inflexão típica da sua “segunda fase”, em que deve empenhar-se em dar “ao povo africano uma consciência revolucionária” (Prizio-Biroli, 1979), ou seja, em que o socialismo a marca mais que o etnicismo.

 

Disso nos dá serôdio exemplo o volume Teses angolanas, o nde se reúnem comunicações apresentadas à «VI Conferências dos escritores afro-asiáticos». Ele ilustra a vitória das teorias próximas do neo-realismo, ou do realismo socialista, sobre as da negritude. Essa vitória foi por vezes comemorada com a defesa da multiculturalidade e a crítica do nacionalismo e do africanismo estrito, como sucede com o discurso de Manuel Rui Monteiro (AAVV, 1981 p. 27s).

 

Em qualquer dos casos, porém, a visão que se tem é necessariamente a de que a literatura projeta, ou deve projetar, a depuração ideológica do autor sobre a obra. O caráter construtivo do artefacto literário só é reconhecido sendo fiel a tal “expressão” da “realidade objetiva”, ou das contradições sociais, ou da direção que a “Revolução” deve tomar para ver consumados os projetos que a determinariam. A construção literária deve, portanto, numa diretiva “normalizadora”, ser reconduzida à composição da verdade de acordo com as regras utilizadas por qualquer pessoa para “saber” e se estruturar no mundo em que vive. Ela ficaria impossibilitada de, livremente, seguir uma via própria - que lhe procuro reconhecer.

 

 

 

Resíduos expressivistas em classificações estruturais

 

Passando ao estudo da aplicação de conceitos “estruturais” à teoria da literatura e às definições de lírico e subjetivo, a atualização do quadro genológico romântico feita pelos formalistas russos deu-lhe um perfil marcadamente linguístico, de que a tentativa estruturalista de enquadramento da poética na linguística, ou na semiótica, foi uma sequência (Kristeva, 1977 pp. 34-35). Essa transposição fica, no entanto, abrangida pelo que Paul Hernadi observa no princípio do capítulo respetivo: “a introdução de aspetos «expressivos» dentro do conceito estrutural de monólogo foi, naturalmente, a regra e não a exceção desde que Sir William Jones, Johann Gottfried Herder e outros escritores do século XVIII celebraram a lírica como a fonte subjetiva e o centro mais íntimo de toda a poesia” (Hernadi, 1978 p. 44; AAVV, 1991 pp. 32-33).

 

Talvez os textos mais marcantes, no âmbito de uma assimilação à linguística do modelo genológico dos filósofos românticos tenham sido os que, sobre o problema dos géneros, escreveu Roman Jakobson (Todorov, 1982 pp. 12-13; Todorov, [1981] p. 109). Na colaboração para o livro coletivo Style in language (AAVV, 1960; Jakobson, [1975] pp. 118-132) – que intitulou «Linguística e poética» – após traçar o quadro de comunicação hoje vulgarizado (que nos fala no remetente, no contexto, na mensagem, no contacto, no código e no destinatário – traduzidos como “fatores”) Jakobson define, como se sabe, cada função pelo “fator” que a determina. A classificação funcional que usa foi clarificada e sintetizada num pequeno trabalho de Coseriu (Coseriu, 1982) a partir das propostas de K. Bühler (Bühler, 1950), divulgadas desde 1918 e 1934, e F. Kainz (Kainz, 1941). Eles apontam, principalmente, para três funções: informaçãoexteriorizaçãoapelação. Aumentando o número de funções, numa classificação que tem como origem uma encomenda da companhia telefónica dos USA, Jakobson irá incluir a função emotiva, ou expressiva – palavra que aproveitei para chamar certas correntes teóricas de ‘expressivistas’. A função expressiva estaria “centrada no remetente”, visando “uma expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo de que está falando (Jakobson, [1975] pp. 123-124), ou seja, visando uma expressão subjetiva no sentido expressivo e, portanto, psicológico.

 

É depois a função emotiva que irá permitir a Jakobson a destrinça entre lírica e outros géneros literários, tornando-se no lírico a função “subdominante” – sem que a passagem da linguística à literatura sinalizasse a consciência do fingimento, ou ficção.

 

A definição dos “fatores” jakobsonianos, aplicada à literatura, só parcialmente pode ser incluída no grupo das classificações estruturais. Na verdade, a tradução de “fatores” por “funções” torna mais clara a componente pragmática sobre a qual assenta a distribuição dos tipos. É pela intenção ou objetivo com que a linguagem se usa, num processo típico de comunicação, que se lhe determinam modalidades diversas. Mas a definição não é, somente, pragmática.

 

José Guilherme Merquior, partindo de pressupostos diferentes dos meus, apercebeu-se também do romantismo residual da classificação jakobsoniana dos géneros (Merquior, 1971 pp. 8-9). O romantismo juntou, na sua classificação, “fatores” pragmáticos e expressivistas. A classificação jakobsoniana fez o mesmo, na medida em que se guia pela ideia de que a projeção do locutor sobre a fala condiciona a composição da obra, por via da função “subdominante”. O motivo que levaria à obra e configuraria a obra seria o de exprimir algo, não o de criar um artifício para ser reconhecido como poético, artístico, não o de exercitar uma arte pegando num tema qualquer.

 

Outro conluio de conceitos “expressivos” e “estruturais” na conceção do género lírico foi o que fez Wolfgang Kayser em 1947, ao defender que a lírica (“expressão soliloquial de formas sofridas”) corresponde à função manifestativa da linguagem – aquela que Jakobson chamaria de expressiva ou emotiva (Hernadi, 1978 p. 46). Apesar de dizer que “o sujeito real do poeta […], como tal, não pertence de forma alguma à obra lírica”, rejeitando explicitamente a dicotomia objetivo-subjetivo, logo em seguida afirma também que “a objetividade, no lírico, não é somente base para a expressão subjetiva”. Continuando numa contraditória fusão de termos e conceitos que recusa e utiliza, Kayser acrescenta várias visões subjetivistas, psicologizantes e expressivas ao seu modelo “estrutural”: “a alma impregna a objetividade e esta interioriza-se. A passagem de toda a objetividade à interioridade, nesta momentânea excitação, é a essência do lírico. Daí se explica esse delir de contornos, esse relaxamento de factos e brandura de frases […]. Realizar a interiorização dentro da excitação – eis o processo lírico”  (Kayser, 1976 p. 374).

 

 

A conjugação de teorizações oriundas da linguística com a conceção expressiva do sujeto lírico prolongou, portanto, o quadro genológico romântico pelo século XX, revitalizando-o, permitindo até uma interpretação retroativa da tipologia hegeliana: “o achado de Hegel, da dialética subjetivo-objetiva, a partir da qual aparece justificada a limitação tradicional dos três géneros, significa sobretudo a descoberta da estrutura essencial da arte como esquema pragmático” (Berrio, 1989 p. 29). É possível que essa contaminação (da genologia literária pela associação entre expressivismo e pragmática linguística), esteja ativa ainda nas profundas reformulações do conceito de lírica promovidas na classificação de Frye e na de Hernadi.

 

O “radical de apresentação de Frye, exposto na Anatomia da crítica, baseia-se num quadro hipotético de interação entre o poeta e o auditório. Seria típica do género lírico a representação em que o auditório “se oculta do poeta”:

 

O radical de apresentação na lírica é a forma hipotética do que na religião se chama a relação «eu-tu». O poeta, por assim dizer, vira as costas aos seus ouvintes, embora possa falar para eles e embora eles possam repetir algumas das suas palavras” (como faz o padre na Missa ao dirigir-se a Deus). É nessa posição – de fingida ignorância dos outros – que se gera o cânone da subjetividade na lírica, pois o poeta, para fingir que não está a falar com os outros, acabará por falar de si e para si, ou para uma entidade muito particular, mas sempre referindo o que diz ao momento em que fala e ao facto de ser ele quem fala.

                   (Hernadi, 1978 p. 111; Silva, 1984 p. 375ss)

 

 

É sugestiva a comparação com Staiger (incluído por Hernadi no grupo dos teóricos expressivistas), para quem “o lírico é um ser solitário, ignora a existência de um público, e poetiza para si” – razão pela qual a poesia lírica se lhe revela como uma “arte solitária, uma arte que unicamente se percebe entre duas almas harmonizadas em idêntica solidão” (Moisés, 1989 pp. 230-231) – repare-se o quanto o final da citação se integra numa vincada tradição romântica (Ricoeur, 1987).

 

A distinção genológica baseada na dicotomia poeta-auditório pressupõe uma conceção de poesia que desenha os modos ou géneros ignorando a intermediação da escrita na construção do modelo de sujeito, lembrada por Varga (AAVV, 1989 p. 221) e Ricoeur (Ricoeur, 1987 pp. 37-49; Ricoeur, [1988] pp. 74-75). Fazendo-o, Frye repete a distração fundadora das conceções projetivas de subjetividade, como observou Todorov (Todorov, 1977 pp. 17-18).

 

A classificação de Frye pressupõe, no entanto, uma leitura pragmática da arte, ou melhor, uma leitura da arte em função do tipo de contexto em que a comunicação artística se exeerce. A diferença entre o seu “pragmatismo” e o de Jakobson é que ele imagina um contexto artístico (o poeta e o auditório); mas esse contexto não será também o da escrita, será o da repetição oral de textos – e só por tal via (se imaginar a situação em que os poemas serão comunicados) é que o autor escreverá condicionado à forma de divulgação típica de uma obra. Ora, a forma imaginada (recitação) é cada vez mais rara, o que torna forçado o seu critério de classificação. A menos que se idealize um inconsciente coletivo que sustente a conduta do poeta pela reminiscência das arcaicas formas de reprodução (publicação) dos versos. E é o que faz o autor.

 

Para o expressivismo residual de Frye contribuiu, pois, a influência de Jung (Hernadi, 1978 p. 106; Muzzioli, 1994 p. 196). A sua classificação do romance, da tragédia, da comédia e da “ironia/sátira”, no interior de um quadro concebido a partir da dicotomia “mundo desejável da inocência / mundo frustrado da experiência”, reforçam a relação de dependência que as conceções genológicas do autor mantêm com a componente clínica da psicanálise junguiana, e o expressivismo (do sujeito, ou do arquétipo). Também a apropriação da ideia de que a arte imita a natureza (não tendo uma tal imitação o significado redutor que lhe deu o realismo (Hernadi, 1978 p. 103; Muzzioli, 1994 p. 197)) sinaliza o primeiro grande amplificador da psicanálise. Porém, a teoria dos arquétipos míticos, fundada sobre o conceito de «inconsciente coletivo», é o garante maior do expressivismo aqui, porque nos leva a procurar nas obras, no último passo do processo crítico, “o «centro ordenador» dos elementos arquetípicos”, ou seja, a reorganização mítica que uma pessoa faria dos arquétipos fundamentais (Muzzioli, 1994 p. 199).  Ao fazê-lo reduzimos o papel da noção de sujeito no teatro teórico, substituindo-a pela de «estruturas inconscientes coletivas»; ora, o que nós queremos estudar é um retrato individualizado, a maneira e o método de o atingirmos seguindo as regras de um texto.

 

As perspetivas do discurso de Hernadi – que não ignoram os modos definidos por Platão-Sócrates e as genologias policêntricas de Aristóteles e de Frye – são as que mais se afastam da procura de correspondência entre um sujeito empírico e a sua configuração textual.

 

À proposta de Hernadi – a meu ver mais completa que as anteriores por incluir o “modo temático” – não está (como em Frye) subjacente a crença projetivista – apesar de ele próprio incluir (e, portanto, estudar), na sua exaustiva recolha sobre a teoria dos géneros no século XX (Silva, 1984 pp. 386-387), os mais variados exemplos que podemos recolher para confirmar a consagração teórica do trio «lírica-expressão-subjetividade», tendo ao mesmo tempo optado por uma classificação policêntrica e englobante, quanto possível, das noções anteriores.

 

Antes de falar em lírica, Hernadi procede à análise dos modos «temático» e «dramático», observando a fábrica linguística dos sujeitos e das personagens nos enunciados. Apenas a sombra “comunicacional” da tradição de consideração dos géneros pelo seu “contexto interlocutório” (Ricoeur) faz pairar algumas dúvidas de linguagem quando o autor aborda as várias espécies líricas (Hernadi, 1978 pp. 128-129). Tais dúvidas (que me parecem meramente circunstanciais), acentuam-se quando lemos, antes, afirmações como esta:

 

[…] a perspetiva privada quase lírica do falante enforma as suas palavras enquanto funcionam como veículos de autoexpressão mais do que como meios de comunicação interpessoal.

                   (Hernadi, 1978 p. 124) 

 

Ao longo das «Conclusões e propostas» da obra, o uso dos termos “subconscientes”, “autoexpressão”, “frustração”; ou de inspirações tiradas de Frye (como “a frustração ou a realização do desejo [em vez de o fracasso ou o êxito], seja do escritor, do protagonista ou do leitor” (Hernadi, 1978 p. 141)), sinalizam a influência da psicanálise e de conceitos expressivos para os quais o sujeito empírico sempre se projeta (por mais que se disfarce ou multiplique) no textual – que, por isso, pode ser lido como sintoma.

 

 

 

Resumo, conclusão e prolongamento

 

A contaminação do trabalho teórico, ou da leitura crítica, pelo conceito expressivista de subjetividade não fica, portanto, evitada à partida por uma arquitetura de princípios “mimética”, “pragmática”, ou “estrutural”. A cada momento é preciso estar atento ao facto de a leitura deslizar para além do diálogo com o texto e suas estruturações, instrumentalizando-o como se ele fosse uma simples mediação do que pensamos conhecer acerca do autor, ou do ser humano, ou do mundo. Ou tentar a instrumentalização da ideia de autor, transcendental ou empírico, a título de argumento legitimador de interpretações (Tamen, 1994) e tendencialmente neutralizador da inquietação típica do crítico (Lopes, 1994), da consciência que ele tem – ou deveria ter – da “matéria negra” da literatura (Martins, 1993).

 

 

Muitas vezes, nos mesmos discursos podemos observar a presença simultânea de conceitos expressivos e construtivos de sujeito textual, como sucede com Dohrn.

 

Hernadi, por exemplo, apesar das marcas expressivistas que apresenta, ao ponto de criar uma linguagem que tende a se enredar pela do estudo dos autores, dos “ânimos”, ou dos “mundos”, é cuidadoso na orquestração das obras a partir da construção que delas faz um conjunto poético. Ao longo das genealogias genológicas do século XX nota-se que vai diferenciando, sempre que possível, termos e conceitos que remetem para o estudo textual de conceitos e termos que denunciam marcas expressivistas. Por isso, possibilita-nos igualmente um levantamento histórico da noção construtiva ou figurativa de subjetividade, que assoma já em Dohrn, embora se tenha aberto o “processo do sujeito”, de uma forma sistemática e nos estudos literários, apenas “em meados dos anos 40”, a partir de um ensaio de Wimsatt e Beardsley (Martins, 1993 p. 132). A noção vinha já sendo sistematicamente colocada por outros autores, de que é um dos primeiros exemplos Mukarovsky, desde o seu artigo «Fonction esthétique, norme et valeur esthétique» (publicado em 1935 e, no ano seguinte, em livro) e da sua participação no II congresso internacional de estética e de ciência da arte.

 

Penso mais fácil a contaminação (palavra que não tem, aqui, significado clínico) do projetivismo pelo construtivismo do que a sua inversa. Porque assiste ao construtivismo um grau superior de consciência. É preciso, pois, explicar como se delapida o mais alto pelo mais baixo. Regressemos a casos anteriores.

 

A disseminação expressivista em conceitos miméticos parece-me natural, porque o teórico, ou ensaísta, pelo seu objeto, deixa de considerar a diferença fundamental que há entre “imitar”, ou “representar”, e “exprimir”. A disseminação expressivista em conceitos pragmáticos é igualmente previsível, uma vez que a imaginação do contexto facilmente nos conduz a confundir o que um poeta finge ser com o uso que um locutor pretende fazer da linguagem. O que mais estranho, ao tentar medir a sombra expressivista sobre a teoria literária, é que ela viessa a revelar-se entre os autores que privilegiaram conceitos “estruturais”.

 

No entanto, podemos observar que – à exceção de Kayser, que foi pouco rigoroso na terminologia e na conceituação que lhe está inerente – os autores “estruturais” que revelavam sinais expressivistas, apresentavam-se igualmente contaminados por uma visão pragmática da literatura – ou, se preferirmos, por uma visão da literatura tendo por referência o contexto comunicativo, e não o texto e o seu jogo de motivos e tópicos. Foi isso que notámos em Jakobson e Frye.

 

Parece, pois, que os critérios “estruturais”, quando não são acompanhados por uma visão pragmática da literatura, garantem mais do que os outros uma postura não-expressivista, possibilitando o estudo “construtivo” ou “criativo” do sujeito nos textos poéticos. Se o estudo construtivista se concretizar a par de uma pragmática da comunicação é que pode ser contaminado pelo vírus projetivo.

 

 

 

Pequeno apêndice: expressão subjetiva e lírica no pensamento em língua portuguesa

 

O trio «expressão-subjetividade-lírica» está omnipresente no mundo de língua portuguesa. É uma característica difícil de explicar e de aceitar. É desanimadora, para um lusófono, como desanimador é o panorama da crítica ‘negro-africana’ para um africano. Neste aspeto, as duas situações são muito semelhantes e ambas as geografias mentais que essas expressões designam (‘lusófono’, ‘africano’) são atravessadas constantemente por uma preocupação identitária que desfoca o alcance do cerne dos problemas.

 

A referência, necessariamente breve, a alguns autores, apenas se justifica por terem eles pensado na língua em que estou a escrever – podendo, aqui ou ali, deixar entreaberta a timidez de uma porta, ou de uma portinhola...

 

Falo de pensamento em língua portuguesa e não me vou, portanto, ater à mera aplicação aos ‘casos’ dos respetivos países de grelhas de pensamento construído em outras línguas e geografias. Nesse caso prefiro ir à origem e conversar diretamente com os responsáveis…

 

Por uma questão de economia (de tempo e de espaço) reduzo-me à leitura de algumas obras ou artigos indicadores e do século XX, de autores que desenvolveram ou indiciaram conceções acerca da relação entre obra e leitor. É pela mesma razão que também não vou repetir autores antes citados.

 

O critério de seleção prende-se com o caráter sugestivo e a coerência dos textos, não com a projeção pública das figuras abordadas. Sem dúvida que, entre todos, ocupa lugar de destaque Fidelino de Figueiredo. A profundidade, atualidade e poder sugestivo das suas análises e propostas retiveram a minha atenção. Mas a presença expressivista, no século XX português, pode ser documentada mais ou menos na altura em que Leonardo Coimbra criticava o “imperialismo do sujeito” e o “imperialismo do objeto” nas teorias do conhecimento – crítica de que não tirou, infelizmente, consequências para a análise literária. ela aparece resumida num quadro genológico proposto por Fidelino de Figueiredo em 1912 (Figueiredo, 1912).

 

Nesse sugestivo trabalho, Fidelino de Figueiredo classifica – depois de analisar diversas correntes da crítica (sobretudo francesa) – a arte literária em “duas maneiras” (prosa e verso). Este, um primeiro motivo de regozijo: não se confunde prosa com narrativa, nem verso com lírica. Cada uma das “maneiras” se desdobra em “representativa” (teatral) ou “expositiva” (literária). Para mim, foi um segundo momento de regozijo: separar teatral de literário mas consciente de que, tanto num quanto em outro, temos verso e prosa. É no verso expositivo e na prosa expositiva que deparamos com a lírica, pois o expositivo se subdivide em outros dois: o de ação (“poemas, bucolismo, satyra”, no caso do verso; “romance; história e descrição” no caso da prosa) e o subjetivo (“lirismo” no verso e “prosa lírica, memórias, cartas, etc.” na prosa). O lírico surge tanto em prosa quanto em verso e se integra no “subjetivo”. A integração provocou-me, logicamente, uma primeira reserva, porque acho que lirismo e subjetividade podem existir um sem o outro.

 

Nas considerações em que expõe e justifica, sumariamente, o quadro – espécie de conclusão de todo o trabalho de levantamento feito sobre a crítica do fim do século XIX e princípios do seguinte – ele afirma, com muita originalidade para o tempo, que são dois os critérios por que se deve guiar a destrinça entre os vários géneros. Um, o menos original, é o da “expressão” (daí o subjetivismo) – “o escritor tem sempre em vista dois fins: a expressão e o contacto com o público” (Figueiredo, 1912 p. 25). A “expressão” realiza o propósito de traduzir “os seus pensamentos e sentimentos” (no caso da lírica – género que me interessa aqui). De passagem, repare-se que ele engloba “pensamentos e sentimentos” – o que torna imprópria (como é a meu ver) a designação de “função emotiva”. A diferença, ao nível da expreessão, entre lírica e outros géneros é que, na lírica, há uma relação projetiva do autor sobre a obra, enquanto que, por exemplo no drama ou em certos tipos romanescos, ele “reconstitui o pensar e sentir d’outras personagens, criando uma ação”. Neste aspeto, portanto, a teoria de Fidelino de Figueiredo é igual a várias outras (algumas posteriores), que associam a lírica à subjetividade e esta à projeção do autor sobre a obra.

 

A componente mais interessante da sua classificação vem no segundo filão que o pensador teria em vista quando escreveu: “o contacto com o público”. À partida, quando lemos a expressão “contacto com o público”, pensamos num conceito pragmático de literatura. No entanto, trata-se de um “pragmatismo” peculiar, porque ele conduz o crítico a considerar o meio ou canal utilizado (a exposição – ou seja: o livro; ou a representação, ou figuração – ou seja: o teatro), o que o leva a classificar por contextos artísticos evitando algumas das armadilhas da assimetria poeta-auditor.

 

A classificação pelo “meio” situar-se-á como anterior (ou superior) à classificação pela expressão, que só aparece nas modalidades expositivas. A primeira duplicação, porém, nomeada como “duas maneiras”, dizia respeito à estrutura gráfica (e rítmica) utilizada (“verso” e “prosa”). Quer dizer que o primeiro critério usado não é pragmático nem projetivo, mas intrínseco à arte, gerando-se uma hierarquia que privilegia o estrutural, depois o pragmático (no tal sentido muito peculiar) e por fim o projetivo. Podemos, então, postular a hipótese de o expressivismo de Fidelino de Figueiredo – apresentado como natural, não discutido – ter sido o preço que ele pagou à mentalidade vigente na época, seguindo a qual ninguém punha em causa (pelo menos em Portugal), o “imperialismo do sujeito” nas obras de arte literária – nem, muito menos, Leonardo Coimbra.

 

Numa obra rica em sugestões e já da maturidade do autor, A luta pela expressão (Figueiredo, 1973), Fidelino de Figueiredo elabora uma teoria e várias propostas que, no essencial, não contradizem as iniciais – mas alargam-nas a um âmbito quase que infinitamente maior.

 

A teoria da obra é a de que tanto a filosofia quanto a literatura – e a própria linguagem – surgem pelo mesmo motivo: pela necessidade de exprimir. A filosofia, seguindo um raciocínio que tende para a abstração, vê na palavra um escolho, sendo essa a sua forma de viver o “drama” da expressão; a literatura constitui-se na luta com a palavra para exprimir o que de mais fundo percebemos, ou intuímos, e não conseguimos dizer nem pensar.

 

O expressivismo inicial de Fidelino de Figueiredo mantém-se, portanto, se não mesmo atinge o ponto culminante. Mas a tal ponto ampliado que lhe permitirá valorizar as obras pela luta da liberdade e da intuição contra a limitação trazida pela palavra, ou seja, pela marca da “impossibilidade de dizer”, associada à “impossibilidade de saber”. Daí que ele garanta, já no capítulo sobre «Criteriologia e literatura», a “força ascensional da arte literária, que em seus lampejos cria liberdade” – na medida em que vai libertando o homem da impossibilidade de dizer, e realizando – mas assim – uma «hermenêutica da existência» (Figueiredo, 1973 p. 98).

 

O pensamento do antigo mestre português é complexo e rico: não conseguiríamos reduzi-lo ao expressivismo. Em primeiro lugar, porque ele concebe e aceita que há três “meios” decisivos para o estudo das obras: um é aquele em que o autor se forma (“o meio que educa ou define o autor” (Figueiredo, 1973 p. 102)), principalmente se devendo considerar aí a língua e a nação (Figueiredo, 1973 p. 124); o segundo “é o «meio» criado pelo autor em sua obra”; o terceiro “é o «meio» que recebe a obra e lhe prolonga e desfigura os ecos”. Para reforçar ou clarificar a síntese (que se tornou um lugar comum nas universidades lusófonas, recebendo contributos variados de Portugal e Brasil), Fidelino de Figueiredo exemplifica-a através de Dickens: “formou-se em certo «meio» social e familiar; criou nos seus romances um «meio» ideal [no caso quer dizer idealizado] que sobreviveu ao primeiro; e este «meio», por ele criado, vai sendo recebido e compreendido de maneiras várias pelos diversos «meios», que se têm sucedido e hão-de suceder” (Figueiredo, 1973 p. 102). E segue, depois, com uma pormenorizada análise da “fortuna” crítica de D. Quixote, aqui e ali entremeada com a análise das relações da receção com a produção da segunda parte da obra (Figueiredo, 1973 p. 103s).

 

A síntese de F. de Figueiredo não demonstra só o alcance integrador da sua teoria da literatura, abarcando os três polos da existência poética, nem apenas a consequente antecipação que ela realizava, ao estudar com tanto significado a receção das obras pelo seu horizonte de espera. Ela também nos prova a consciência (atualizada) que o crítico teve, pelo menos em dado momento, de que o «meio» que a obra nos traz no ventre não é o do autor nem o do público, mas um outro, criado, inventado pelo artífice e que as sucessivas leituras irão “recriando ou desfigurando” (Figueiredo, 1973 p. 105), pelo estudo da história delas se depurando a leitura dos condicionamentos impostos por cada época.

 

A «ressonância» provocada por cada obra em cada momento é a «prova» final do valor dela (Figueiredo, 1973 p. 124), por aí se reconhecendo – mais uma vez, e agora ao nível do juízo – a importância e o significado da receção na ética literária. o expressivismo e o construtivismo da teoria de F. de Figueiredo unem-se, a meu ver, na sua afirmação, algo hegeliana, de que “o poeta liberta-se das próprias emoções e ideias pela criação, forceja por libertar-se das coações do idioma de todos” (Figueiredo, 1973 p. 125). É esta “luta pela expressão” e pela liberdade, face ao condicionamento imposto por um “idioma”, que anima de vida a obra literária. isso conduz-nos a duas vias alternativas: na primeira, expressiva, consideramos que a obra se valoriza na medida em que exprime a luta pela expressão, ou seja, na medida em que regista a “impossibilidade de dizer” – e, portanto, projeta a condição humana; na segunda, mais próxima do construtivismo, o valor reconhecido à obra deriva da criação vista como libertação face ao «eu» real (as “próprias emoções e ideias”) e face ao “idioma de todos”, ou seja, à previsibilidade linguística. Valoriza-se como invenção de um «meio», inscrição dos dados da intuição e da perceção num jogo diferente do da personalidade (projetado na linguagem comum, que a limita) ou da verdade (projetado na linguagem filosófica). E a valorização vem da relação do “meio” criado pela obra com a sua receção, dos descondicionamentos que a obra suporta face a cada nova leitura. Em qualquer género, em resumo, o que temos é uma luta pela expressão – sendo que a expressão não significa projeção do «eu», pessoal ou social, mas apenas a tentativa de tornar a linguagem transparente e comunicativa em absoluto, seja qual for a temática e sejam quais forem os motivos principais abordados pelo autor.

 

No entanto esta é uma ilação particular, ou seja: minha, que o autor não realizou. A procura da “unificação dos critérios da verdade e do juízo em arte, em todas as artes”, visando “articular à filosofia a crítica literária ou a ciência da literatura ou o estudo metódico desse constante fenómeno da consciência humana, que é a luta pela expressão verbal de novas conquistas intuitivas” (Figueiredo, 1973 p. 130), pode sofrer interpretações que barrem o caminho para o tipo de conceção que me parece mais produtivo, adequado e …expressivo. Mesmo que o objetivo de articulação entre as várias disciplinas das humanidades seja idêntico, baseado na dicotomia ver o que se exprimiu – ver como se simbolizou, entendemos que se deve conceber diversas transfigurações, e não diversas expressões, dos materiais disponíveis e disponibilizados, pela intuição ou não.

 

 

Mais recentemente, é sintomática da influência de uma tradição local a presença, talvez involuntária, do expressivismo na tipologia que Aguiar e Silva esboça no final do capítulo que à problemática dos géneros literários consagra na sua Teoria da literatura (Silva, 1984 p. 397s), ligeiramente reformulado em Teoria e metodologia literárias (Silva, 1990 p. 193). Nesta última obra diz, acerca da lírica, o reconhecido professor:

 

O mundo exterior […] constitui um elemento semântico-pragmático do texto lírico somente enquanto se projeta na interioridade do poeta

 

Parecia mais estrita e cautelosa a sua posição nos idos de 1968 (Silva, 1968). Compare-se, no entanto, com as de Kridl (num artigo publicado em Amsterdam em 1940) e Wundt (num texto de 1946), citados por Massaud Moisés (Moisés, 1989 p. 231):

 

Os objetos do mundo exterior são apenas o esteio, o fundamento, o impulso de onde nascem os sentimentos [ou servem] como prolongamento do seu «eu», de forma «todo o conteúdo do mundo se converte aqui em simples vivência interior

 

É claro que esta atividade “interior” pode reportar-se apenas à preparação do próprio artifício literário, mas também é claro que esta é só uma interpretação minha, pessoal. Em qualquer dos momentos, Aguiar e Silva conecta – como Jakobson – uma perspetiva linguística a uma perspetiva expressivista residual. A perspetiva linguística é muito compleeta, estabelecendo vários níveis de análise (fónico, morfossintático, semântico e pragmático); o expressivismo residual terá paralelo com o de Fidelino de Figueiredo na noção comum de projeção intencional do poeta sobre a obra, equivalente à da silhueta para a sombra.

 

Aguiar e Silva enumera três “fatores” que, envolvidos numa “correlação sistémica”, permitiriam definir um género. O primeiro desses “fatores” é um “determinado modelo de situação comunicativa”, que fica nomeado por “modalidades enunciativas”. A focalização dos módulos “pragmáticos” por estas modalidades enunciativas trava o deslize expressivitsta a que o pragmatismo pode conduzir em situações menos acauteladas. Porém, a consideração de “elementos pragmáticos e semânticos” – como a “relação do emissor com o texto” – reabre a via da conceção expressivista da relação entre as letras de arte e o sujeito (Silva, 1984 p. 397). Confirmando-o, a consideração das “marcas semânticas e pragmáticas” levará em seguida o autor a falar, associado à “teoria dos atos linguísticos”, numa “força ilocutiva que dimana de uma intenção do emissor” que, tal como dizia Staiger, pode coincidir (ou não) com o seu efeito “nos recetores” (Silva, 1984 p. 398). Só quando fala no terceiro “fator” (o modelo de “formas de expressão”), Aguiar e Silva se concentra na elaboração de códigos próprios a cada género, sem marcas expressivistas, colocando assim um critério estruturalista onde Fidelino colocaria o expressivista: no final do quadro.

 

Procurando uma classificação atualizada dos géneros literários, alargada quanto possível a todos os níveis que a ciência da linguagem possa abarcar, Aguiar e Silva chega a uma teoria dos géneros muito sugestiva, mas pouco interessante para o problema que me retém aqui. Sugestiva porque, se a linguística é a sua referência teórica estruturante, ele não deixa de articulá-la a outras, como a da retórica, ou as que apontam à consideração de uma “intenção de autor”. Pouco interessante porque, também na Teoria da literatura – e apesar de se sublinhar o papel das “modalidades enunciativas” – destrinça entre a fala quotidiana e a escrita poética não é decisiva para a visão genológica do autor, não sendo inteiramente visível uma recusa do projetivismo.

 

 

O acento na subjetividade expressivamente concebida e a associação cumulativa entre subjetividade e adolescência, terão conduzido Álvaro Ribeiro à conotação entre lírica e juventude, com suporte por igual na noção de instinto, resultando num absoluto expressivismo, em que a idade, o sexo, as fases da vida do autor são reproduzidas diretamente na configuração das obras (Ribeiro, 1969 p. 119; Ribeiro, 1957 pp. 210, 212, 214; Ribeiro, 1962 pp. 118-119) (Franco, 1993), na linha de alguma tradição romântica também (Silva, 1984; Hernadi, 1978; Berrio, 1989) – mas não tanto na de Hegel, cuja Estética o filósofo bem conhecia. A rejeição da lírica promovida por Álvaro Ribeiro assenta, pois, em pressupostos subjetivistas alheios à noção de fingimento e artifício que a poesia lírica implica – de resto como qualquer arte.

 

A conclusões idênticas, neste ponto, às de Álvaro Ribeiro chegou também Massaud Moisés, para quem falta aos poetas líricos “desprender-se de si próprios no contacto com a realidade” (Moisés, 1989 p. 231). Por isso vai depreciá-los, atribuindo-lhes “uma primeira e primária categoria estética”. Mas não somente: o lírico, dominado pela “auto-análise”, é também deficiente no seu egocentrismo, pois “alcança contactar com o «eu» de superfície, o «eu» sentimental e emocional”. Os seus livros “somente o representam como indivíduo”. Pelo simplismo, superficialidade e facilidade, “todo o poeta começa por ser lírico”, por ser esse “o estado «natural» do «eu» para si próprio e, portanto, a expressão da reação mais pronta do poeta em face dos estímulos de fora, e mesmo dos de dentro”. Por isso não espanta à sua visão intestinal que, em mais uma coincidência com a filosofia de Álvaro Ribeiro, garanta que, quanto mais adolescentes “(cronologicamente ou não)” forem o poeta e os leitores, mais apreciarão a lírica, dela se distanciando com a maturidade (Moisés, 1989 pp. 237-238). Felizmente – não por acaso – a lição da maturidade poética de M. António desmente estas afirmações.

 

Do tipo de associação estabelecido por Álvaro Ribeiro e Massaud Moisés, entre o enunciador subjetivo e uma espécie muito circunscrita de sujeito empírico, resulta igualmente a vulgarização da ideia de que a maioria dos poemas líricos fala de amor. Amor com letra minúscula, mera atração do sujeito por alguém do sexo oposto e típicas consequências, o que se vive com mais intensidade na adolescência por óbvias razões evolutivas – como lembra o filósofo português falando na preparação para a idade da procriação. A conotação, agora já quadrilateral, entre lírica-expressão-sujeito-amor, reforça-se na leitura da tradição literária europeia, desde Safo e Alceu até aos nossos dias, e na ‘aristotelização’ da teoria da lírica promovida por autores das literaturas clássicas europeias, como Batteux (Genette, 1986 pp. 47-48). Em termos psicológicos e antropológicos, tal associação entre sujeito empírico e lírico mantém-se, quer porque o homem é adolescente quando descobre a mulher, e lhe reconhece fascinado os atributos femininos (isso nos 100 poemas está bem figurado), quer porque a relação «eu-tu», que permite ao sujeito consciencializar-se mais nitidamente na sua diferença – e, portanto, na sua identidade (Benveniste, 1976 p. 59s) – encontra expressão privilegiada e recorrente no relacionamento sexual, apaixonado, ou amoroso, com o sexo oposto (Romero, 1944 p. 51).

 

Uma breve passagem, da introdução de Mário Pinto de Andrade à antologia que denominou Na noite grávida de punhais (Andrade, 1975), ilustra o nível de vulgaridade já nessa época atingido pela noção. Diz assim, na linha pragmática devida à sua formação originalmente marxista e negritudinista, e contradizendo a citação que de Sartre fiz atrás: “aqui nenhum tema é inocente ou desinteressado. A evocação do amor e da mulher articula-se a um universo lírico de reabilitação de valores estéticos”. Tanto nesta conceção do lírico, quanto na ‘reabilitação’ do poético, é nítido o subjetivismo do autor, baseado também em conceitos expressivos. Que é típico, ainda, da poesia empenhada do seu tempo, que se resume a somar à noção expressiva e projetiva da lírica – associada à adolescência, ao egoísmo, ao amor inconsequente – a ideia de que, sendo a lírica projeção, a devida programação (‘consciencialização’) do sujeito empírico, inevitavelmente, ‘reabilita’ a poesia.

 

 

De entre os teóricos ou filósofos portugueses, Romeu de Melo é um dos que apresenta uma conceção de autor mais sugestiva, e que possivelmente junta conceitos expressivos com outros que o não são e que nos parecem pertinentes. Pena foi que em tão breves textos a tivesse encontrado.

 

Para melhor compreensão dessa ideia convém ler, não apenas a breve “reflexão” em que a explana, também a que lhe antecede, intitulada “O Homem e a Linguagem” (Melo, 1986 pp. 166-170). Citando Buytendijk, o autor acorda-se à ideia de que a palavra “não tem origem, é origem, salto original. Nasce de um salto, à maneira de uma mudança, de um despertar, de uma mutação”. Trata-se, portanto, do que podemos intitular uma psicologia ‘gestalt’ da palavra.

 

A evolução do raciocínio vai culminar na ideia de que “a linguagem primitiva representaria a genuinidade, enquanto as línguas civilizadas seriam uma intolerável opressão exercida sobre a mente do homem pré-lógico, violentamente assimilado à civilização racional” (Melo, 1986 p. 170), que domesticaria num doloroso parto o ser puro, inicial e espontâneo – onde estava por isso guardado o segredo de uma linguagem original (Melo, 1986 pp. 169-170). Belo mito, sem dúvida, e palavras corajosas naquela época, às quais daria o seu contemporâneo José Marinho uma profundidade e acuidade inesperadas, quer na Teoria do ser e da verdade (uma teoria, também, da despossessão, da transcensão do «ego» e dos seus condicionamentos), quer sobretudo nos textos dispersos que vêm sendo recolhidos por Jorge Rivera para a INCM.

 

Na reflexão seguinte, Romeu de Melo estabelece a distinção entre o «autor» e o «ator» - ainda em coincidência com José Marinho, que leva mais uma vez a dicotomia a um grau de profundidade extraordinário  (Melo, 1986 pp. 170-173). Começando por este, concebe-o como “o primeiro ensaio do sujeito espiritual que a Natureza levou a cabo. O domínio próprio da sua atividade é o estético, tendo nela ensaiado a sua aptidão infalível para conceber e criticar a forma”. Tem ele “a vocação de imprimir ao concreto e ao sensível a forma espiritual” (Melo, 1986 p. 171). Recorde-se que Hegel dizia, na Estética, comparando “prosa” com “poesia”, que “formar e dizer, segundo a fantasia, sem descrever as coisas na respetiva existência prática, tal é, com efeito, a finalidade e a missão da poesia” (Hegel, 1993 p. 537). Porém, segundo Romeu de Melo, no que se refer aos valores espirituais “o Ator mantém com eles uma mera relação de atoridade ou seja, apercebe-os indiretamente, reduzindo-os a equivalentes estéticos e éticos (ideias belas, ideias boas). A atividade literária está cheia dessa experiência esteticizante do fenómeno intelectual, em que se procura extrair um efeito meramente formal das ideias e das formas intelectuais” (Melo, 1986) – expressando-as, portanto.

 

Pelo contrário, o Autor, surgido num segundo momento da História da Humanidade, e talvez até com o advento da própria História, alarga a capacidade organizadora do Homem ao “mundo do inteligível e do racionalizável. A sua capacidade ultrapassa o formalizar do sensível e concreto, para exercer-se na substancialização do inteligível e do racionalizável” (Melo, 1986 pp. 171-172).

 

As conceções de Romeu de Melo aqui expressas possuem raízes várias e que não parece despiciendo anotar, pois o diálogo do texto com uma possível arqueologia tornará mais claras as suas implicações. Tal “arqueologia” suscita, primeiramente, a comparação destas afirmações sobre autor com uma passagem de Hegel na Estética, segundo a qual “o poeta que então só escutar a voz da razão, não utilizará certamente a sua inspiração para compor hinous ou para se apresentar como cantor em circunstâncias ou ocasiões criados por outros, mas, haurindo os temas somente no fundo mais íntimo da sua alma, far-se-á poeta dos ideais da vida, da beleza, dos direitos e pensamentos imperecíveis da humanidade” (Hegel, 1993 pp. 232-233). Em outra passagem, que a meu ver esclarece esta e se aproxima também da ideia de autor em Romeu de Melo, acrescenta Hegel: “duas possibilidades se podem então apresentar. Ou a fantasia se eleva espontaneamente acima do pensamento especulativo, sem todavia chegar à claridade e precisão da exposição filosófica; a poesia lírica é então fruto dos esforços de uma alma inquieta e agitada, violentando a arte e o pensamento, porque ultrapassa os limites de um sem lograr entrar no outro. Ou então, o sereno pensamento filosófico é capaz de vivificar as suas ideias sistemáticas, colorindo-as de sentimento e exprimindo-as sob uma forma concreta, percetível e sensível” (Hegel, 1993 pp. 238-239).

 

A comparação entre autor ator recorda ainda a teorização estética de Leonardo Coimbra em O criacionismo – apesar dos diferentes sistemas de denominação (sobretudo no que diz respeito à palavra «pessoa», que adquire em Leonardo Coimbra uma significação mais absorvente e mais intensa). Aí, o filósofo da Renascença portuguesa opõe o realismo “cousista” (equivalente ao trabalho do ator em Romeu de Melo) ao do “ideal” (equivalente à criação própria do autor): “a ideia é dialética e deixa de ser ideia desde que se substancialize. Certas ideias podem ser esgotadas e passar a símbolos cousistas, postos em Arte sem a construção dialética, que lhes dê vida e significado”. Em Leonardo Coimbra a arte seria a “dialética do sentimento”, conduzindo das sensações às noções e não deixando cristalizar as noções, mas dialetizando-as de novo com a “natureza”  (Coimbra, 1912 p. 244).

 

Para Romeu de Melo, preocupado em criar – em termos universais e transcendentes – a “própria substância espiritual”, o Autor centra-se na obra “criadora e crítica”, secundarizando-se “como pessoa” (Melo, 1986 p. 173) – ou seja, como biografia circunstancial a projetar sobre a obra. Comparativamente, o ator chama sempre sobre si próprio a atenção, sobre o gesto que formaliza sensivelmente esta ou aquela ideia. Daí que ele possa, na extensão que procuro fazer (da teoria do “Ator” e do “Autor”), representar aquele tipo de sujeito que o texto lírico figura.

 

Por consequência, a linguagem do ator é recursiva (auto-referenciada), na medida em que ele “critica e cria sempre em função de si próprio” (p. 173). O autor, por seu lado, utilizaria uma linguagem “despida de recurso” (de auto-referência), “independente da sua realidade e dos interesses pessoais” (Melo, 1986 p. 173), adotando um modelo discursivo nesse aspeeto próximo do que Hernadi chamaria “temático”.

 

Juntando agora a leitura do primeiro artigo à do segundo, fica a ideia de que há três momentos principais na história da linguagem: o da palavra original, o da palavra subjetiva e o da palavra temática. A palavra original – pela maneira como Romeu de Melo a caracteriza – não seria ainda característica da constante chamada de atenção do criador sobre si próprio e, nessa medida, a palavra temática recupera algo do paraíso perdido que foi o da primitiva linguagem.

 

As reflexões em que baseamos a nossa leitura situam o problema ao nível da criação e do criador, tornando-se necessária uma transferência cautelosa desse para o nível da criatura. Se o conceito de ator implica a teoria expressivista de subjetividade, não deixa também de lhe ser indicada uma subjetividade textual (definida por exemplo pela noção de recurso). Mas se a obra autorial (não atorial) é produzida por um distanciamento do criador em relação às circunstâncias em que escreve e nas quais se inscreve a sua presença, ela não tem obrigatoriamente que se construir sobre uma enunciação temática. O distanciamento face à situação “real” em que enuncia, permitirá ao criador-autor “inventar” uma figura de ator que se inscreve no texto ficticiamente, compondo assim uma subjetividade construtiva e não-expressiva. A relação entre atoridade e autoridade em Fernando Pessoa vai-me permitir aclarar e completar esta hipótese.

 

O trio subjetividade-lírica-expressão estrutura ainda a hierarquia genológica esboçada por Pessoa, cujas afinidades com a de Eliot são evidentes – mas, tanto quanto saiba, não observadas (Pessoa, 1973; Eliot, 1962 p. 115s; Quadros, 1988 pp. 33s, 145s). para definir os “graus da poesia lírica”, estabelece Fernando Pessoa uma escala determinada por um critério extrínseco ao lírico, e que visa direcioná-lo para outro registo, hierarquizando os tipos de “poeta” pelo nível de distanciamento dramático do autor em relação ao conteúdo do texto. Partindo de um primeiro estágio, em que o poeta “exprime espontânea, ou refletidamente esse temperamento e essas emoções” (as suas), chega-se ao ponto de “plena despersonalização”, que é já verdadeiramente dramático.

 

A prática enunciativa concretizada na Mensagem portuguesa permite ilustrara a conceção dramática reservada por Pessoa para o último grau da poesia lírica. Quando as personagens históricas são dadas por alguns poemas como seus locutores, falando sempre na primeira pessoa, apesar do radical de apresentação e da perspetiva do discurso serem os típicos da lírica, o contexto literário (a obra) em que os poemas estão inseridos e a memória histórica de referência forçam-nos a aceitar que se trata de composições dramáticas.

 

A apresentação dos sujeitos-locutores fictícios é subscrita aí por outro sujeito-locutor que, ao assinar o livro, se representa como causa deles. Um criador que manobra as enunciações, de forma a sugerir o tipo de subscriçção que melhor concorda com a mensagem, articulando-as como um poeta dramático modelando personagens pela fala que lhes admite à superfície do texto, ou seja, imitando estruturas do discurso dramático.

 

As relações de identidade entre a Mensagem e o género lírico não podem, portanto, manter-se numa perspetiva «expressivista», pragmática, ou mesmo estrutural – visto que não é o autor quem se exprime, é uma das personagens do livro. Mas, numa perspetiva construtivista, ou figuracionista, a Mensagem obedece ainda ao cânone lírico, porque o entrelaçado verbal – ao manipular todas as possibilidades enunciativas que a linguagem faculta para coordenar a forma e o referente, assumindo no meio delas uma autoria “real” (‘Screvo meu livro  à beira-mágoa) – constrói uma figuração autoral (equivalente à do narrador em ficção) indispensável para a interpretação. Estudando a configuração de um sujeito que se finge outros, atingimos ainda a razão lírica da Mensagem, que não saberíamos se procurássemos detetar os sintomoas do «eu» real e único em todos os poemas.

 

De facto, essa é a primeira condição (nem de longe exclusiva) que circunscreve a existência do género lírico. Ele define-se por estar centrado na construção de um perfil de sujeito-locutor, a qual é indispensável à descodificação das obras. A frequência da associação subjetividade-lírica-expressividade nos trabalhos teóricos, é a confirmação de que um dos traços básicos da lírica é a modelação da figura de autor através do que Romeu de Melo, introjetivamente, chamou de “auto-recurso”.

 

Nesta perspetiva, a Mensagem de Pessoa situa-se no ponto-limite da lírica. Se parece focalizar a nossa atenção para o retrato de personagens históricas, algumas delas apresentando-se como sujeitos da enunciação, a descodificação de um significado menos evidente passa pela conceção do processo alquímico de mutação constante do «eu». Através da sua transfiguração constante e da passagem de voz a outros – num esforço de transcendência mais amplamente realizado pela experiência com os heterónimos – o sujeito-locutor proposto pelo conjunto do texto exemplifica o trânsito do “nevoeiro” para “a Hora” (horaciano: realiza aquilo de que está a falar na própria linguagem que usa).

 

Além de nos ajudarem dessa forma como casos modelares, os poemas em primeira pessoa da Mensagem constituem também uma reativação da experiência do «referente total» (Lefebve, 1980 pp. 162-168) instituído como seu principal motivo e como sua causa. Ou seja: eles funcionam como autorretratos, em contraposição aos retratos patrísticos, icónicos também, das composições onde predomina a nomeação de uma segunda pessoa, constituída como referente e motivo principal do discurso. Ora o autorretrato, como veremos em seguida, é teorizado por Beaujour como uma das espécies de transição entre o género lírico e o narrativo ou o ensaístico. E o critério que nos fará distingui-la da narrativa levar-nos-á até à segunda condição que cirscunscreve a existência da obra lírica: a dispersividade, aleatoriedade (pelo menos aparente, ao nível da estrutura de superfície), na dispositio das obras tomadas como um todo macrotextual.

 


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