O sujeito nos «100 poemas»

 

Sabes tu, soubeste alguma vez

Como me descobri?

 

(«Carta do Afogado»)

 

 

 

Segunda hipótese de trabalho

 

A criatividade, em Psicologia, pode-se definir como consequência do aparecimento “na acção de um novo produto relacional que provém da natureza única de um indivíduo, por um lado, e dos materiais, acontecimentos, pessoas ou circunstâncias da sua vida, por outro”. Baseando-se principalmente em Henri Poincaré, e sem citar esta definição, António Damásio avança com uma hipótese especificadora dela em O Erro de Descartes, acrescentando-lhe a ideia de selecção, pois não se trata apenas de um novo produto relacional, mas da selecção entre vários novos produtos possíveis, anulando-se aqueles que não teriam interesse artístico.

Em literatura, os “materiais” pertencem à língua, e os “acontecimentos, pessoas ou circunstâncias” são chamados «motivos», sejam eles da vida do autor ou não; o “novo produto relacional”, o produto da inovação, é o poema, a obra, filiado enquanto “produto” no retrato de uma figura paterna, o criador, que relacionaria as coisas de uma dada forma (ou de várias formas) inevitavelmente inovadora, e seleccionada em face das ofertas e dos valores do panorama cultural em que vive. Como disse no capítulo I, na lírica subjetiva a proposição da figura autoral funcionaliza os motivos enquanto fontes de predicação e localização imaginárias do sujeito, portanto como construtores da sua figuração textual. A selecção dos motivos é, por sua vez, funcio­na­lizada pela economia de significação da obra: para acedermos ao seu significado basta perguntarmos porque foram seleccionados aqueles e não outros que, pelas referências propostas, podiam perfilar-se.

Sendo um dos nossos objectivos o de estudar os passos através dos quais se opera a configuração do sujeito na obra lírica em verso de M. António, teremos de ver, ao longo dos 100 poemas (onde se reúne a quase totalidade da sua primeira década de publicação), como o locutor é delineado pelos motivos interiorizados que o definem, e que são figurados pelo entrelaçar dos versos a título de importantes mo­ti­vações dos poemas que eles compõem.

O facto de a personalidade do locutor ser estudada a partir do meio que ele nos propõe motivante e identificador, embora se deva à própria estruturação dos poemas que suscita – pelo elevado grau de referencialidade – essa leitura, também está de acordo com a descrição psicológi­ca do sujeito noutras áreas das Ciências Humanas.

Em Piaget, por exemplo, notamos a tomada de consciência de si pela auto-localização como “um objecto entre os outros num universo formado de objectos permanentes, estruturado de maneira espácio-temporal e sede de uma causalidade ao mesmo tempo espacializada e objectivada nas coisas”.

A par desse processo inicial de auto-conhecimento (próprio do nível sensório-motor), a afectividade “procede de um estado de não diferenciação entre o «eu» e todos os elementos físicos e humanos que o cercam para construir, em seguida, um conjunto de trocas entre o eu diferenciado e as pessoas (sentimentos inter-individuais) ou as coisas (interesses variados conforme os níveis)”.

Trata-se de uma hipótese que, especificada na Psicologia, vai encontrar-se diversificadamente nas outras disciplinas das Ciências Humanas – ainda que nem sempre de forma tão definida.

Na Linguística, por exemplo, Benveniste afirma – estudando os pronomes pessoais e o conceito de subjetividade – que o «eu» e o «tu» não se concebem um sem o outro, concluindo ser “numa realidade dialéctica englobando os dois termos e os definindo por relação mútua que se descobre o fundamento linguístico da subjetividade”, ou seja, da “capacidade do locutor se colocar como sujeito”, como «eu».

A hipótese de Piaget-Inhelder completa-se numa tradição já antiga em Filosofia. O espiritualista brasileiro Vicente Ferreira da Silva subli­nha, por exemplo, que houve diversos filósofos que tiveram a “cons­ciência de que a nossa conexão com os outros homens, de que o vínculo do eu e do tu transcendem o facto da justaposição espacial, da mera interacção externa ou mesmo social, erguendo-se ao nível de conexão ontológica do nosso eu”. Se, aparentemente, se contrapõe o “vínculo do eu e do tu” à “justaposição espacial” e à “interacção externa ou mesmo social”, esse vínculo não deixa, significativamente, de surgir como o momento superior ou transcendente da interacção a que é contraposto. Mais adiante, mas ainda na mesma página, o filósofo paulista reafirmará ainda que a “interacção das consciências, em seu esforço de afirmação e de reconhecimento, é o momento morfo­genético essencial do nosso ser”. A pp. 149 ele citará ainda uma frase lapidar de Hölderlin sobre o assunto: “Nós somos um diálogo”. Veremos concordan­temente que o “esforço de afirmação e de reconhecimento” entre os outros é fundamental para a construção da personalidade que a antologia irá compor.

Foi talvez a “consciência” da importância que reveste o “vínculo do eu e do tu” que levou José Marinho, já em 1931, a falar na “socioeducação” como o ideal didáctico para um sistema de ensino normal (ou seja, que exclua os autodidactas e os mais dotados para aprenderem). Por isso ele diz: “quando pela primeira vez se reuniram discípulos, quando se formou a classe, a aula, progrediu-se na solução do problema pedagógico”. Esta “socioeducação”, ou seja, educação pelo diálogo e pela relação com os outros, dado ser mais falível o conhecimento de outrem que o de nós próprios, volve-se, “pois, em autoeducação”. Fechando assim o círculo sobre a primeira pessoa, o filósofo português reintegra a aprendizagem pelo diálogo, ou pelo con­fronto com os outros, no processo de composição (ou conhe­cimento) de uma identidade própria, como já percebera Ferreira da Silva e como vimos que fazem os autobiógrafos.

Concordante com a asserção de Ferreira da Silva, mas estribando-se numa semântica extremada, e transferindo o problema da relação «eu-tu» para a relação mais ampla «personalidade-comunidade», é a noção de “identidade concreta” na filosofia da justiça de Michael Walzer. Segundo ele, “os homens e as mulheres devem as suas identidades concretas à maneira como eles recebem e criam, portanto possuem e empregam os bens sociais”. Mais justa, porque menos redutora, pa­rece-nos a perspetiva de Gusdorf segundo a qual o “passado subjetivo não se opõe ao passado objectivo. Antes o retoma e o organiza” construindo assim “a estrutura mesma da vida pessoal”, que se cons­tituiria, não entre o «eu» e o «tu», mas “sob o regime da colaboração entre o interior e o exterior, entre a primeira pessoa e a terceira”.

Também a partir de uma interpretação transcendental da Crítica da Razão Pura, como lembra Eduardo de Soveral, se concebe que “a objectividade gnosiológica do sujeito só poderia operar-se” por três “exclusivas” vias, entre elas a segunda sendo, precisamente, a do sujeito do conhecimento “como correlato dos objectos que conhece”, ou seja, pelo menos em parte, como correlato da terceira pessoa (que é a “não-pessoa” de Benveniste). A terceira pessoa assume, neste quadro conceptual, uma abrangência maior do que a segunda. Porque ela per­mite englobar as relações pessoais, as relações com os outros (de que a relação com o outro é uma especificação), e as relações objectuais, ou relações com os objectos, na mesma perspetiva de construção do «eu». É dentro da relação «eu-ele(s)» que a relação «eu-tu» vai adquirir um significado especial.

Em qualquer dos textos citados, pensa-se que a autoconfiguração de um «eu» se deve a uma íntima correlação entre a pessoa e o que a rodeia, assumindo papel especial no trânsito e recurso entre os dois pólos o relacionamento com um ser que nos está próximo e que, na Poesia, é designado por «tu».

Esta correlação, envolvida pela questão da justiça, foi desenvolvida de maneira mais produtiva e completa no trabalho de Ricoeur (citado, aliás, por Soveral), através do qual podemos encontrar um signi­ficado concordante entre a identifica­ção de um sujeito construída no decorrer de uma narrativa e os processos líricos de recuperação dos motivos formadores utiliza­dos ao longo dos 100 poemas, nomeada­mente pela funcionalização específica dos sonhos, da saudade e da poesia. Estes três elementos (no capítulo seguinte cuidarei de lhes definir em pormenor a funcionalidade) servem na diegese como fontes de recorrência, através das quais se restabelece um meio pelo senti­mento desse meio, reinstalando assim uma identidade cindida pela se­paração, no tempo, entre o «eu» e o «ele(s)», entre o “menino de olhos muito abertos” e as “eternas moças de muro”.

A consciência de si “como correlato dos objectos que conhece”, e dos sujeitos que a rodeiam, é um momento inicial de um longo processo, que encontra depois sequência na “necessidade que todo o homem tem de se identificar com outros homens” (primeiramente, “os seus pró­prios familiares”) “nas expressões culturais, de pertencer a uma asso­ciação específica”, enfim, de se enculturar e socializar, conforme nota a antropologia. Portanto, o processo de formação da identidade – já por si construída, como Piaget a explica, a partir dos objectos e seres exteriores – não está completo sem a posterior identificação com­portamental num meio próximo, através da integração e da aceitação dessa integração pelos outros, a qual passa largamente pela noção de justiça – ou, ao menos, pela noção mais moderna de “justeza”.

O conceito de “identificação do indivíduo entre os outros” leva-nos a recorrer à noção de pessoa, que conotaria “a grelha de representações que permite, no seio dum dado grupo e a esse grupo, pensar a passagem «natural», não contingente, não aleatória, do indivíduo ao grupo e reciprocamente”. A noção de pessoa tem, portanto, como refe­rência, “o quadro normativo da sociedade”.

Seria porém mais completo referir o carácter cultural a par do carácter normativo desse quadro. Segundo Mischa Titiev, que também considera o aspecto normativo, “os antropólogos estão firmemente convencidos de que a personalidade de um indivíduo só se compreende se se conhecer, tanto quanto possível, todo o sistema cultural em que ele vive”. Dado que o “sistema cultural” integra e gera o “quadro normativo”, permitindo explicá-lo, seria pois de pensar no trânsito e recurso entre o indivíduo e a colectividade em que se integra em termos culturais e não apenas morais ou jurídicos. A. C. Gonçalves aproxima-se de uma tal perspetiva quando lembra que “as memórias individuais (...) relacionam as histórias pessoais e familiares com a memória histórica e com a memória colectiva”. Isso acontece, quer por integração identitária, quer por “assimilação” dos acontecimentos biográficos ao código (de valores e normas), ou vice-versa (a “assimilação” no sentido piagetiano). Se os valores e as normas remetem para a moral e para a justiça, a “memória histórica” e a “memória colectiva” estão muito para além disso.

Esta abordagem é, para nós, fundamental, na medida em que o ins­tru­mento da relação entre os diversos níveis (indivíduo, família, comuni­dade social e comunidade histórica) é a narrativa (“histórias”), ou seja, um género literário muito próximo dos 100 poemas, segundo a organização que iremos fazer das suas referências. E a narrativa, não somente é o utensílio de comunicação entre os níveis, ela também liga o indivíduo às memórias identitárias, ou simplesmente colectivas, aos valores e às normas ao colocá-lo em diálogo (daí que se justifique falar, a título de conclusão, também numa ética da identidade do locutor, numa ética transculturada, e não somente numa estética da crioulidade).

Ao sistema cultural recorre por isso o texto literário para retratar o seu «ego», de forma única mas também de modo a que outros possam nele projectar – e através dele julgar – a formação de uma “consciência de si”. Isso foi observado pelos teóricos das espécies subjetivas intimistas, como Michel Beaujour, ou Georges Gusdorf. Lembra Gusdorf, a dado passo, que, “o que há em nós de mais fixo, a nossa realidade pessoal, aparece não como uma linha firme, mas como uma zona de troca, um lugar de passagem. Com efeito, as influências do meio, aquelas que agem do exterior sobre o interior, têm uma importância capital na formação da consciência de si.” E ainda: “os eventos servem-lhe de mediação entre ele e ele mesmo, de uma excitação ao ser”. A noção de pessoa como lugar de intercâmbios entre o “íntimo” e o “meio”, sustenta a ideia de um conhecimento de si “transitivo, incoativo”, não “directo”. Mas, construindo-se em e por interacção com o meio, a noção de pessoa nunca poderá dispensar a sua dimensão cultural (como sublinha Beaujour para os “auto-retra­tos”) e, dentro dela, o eixo axiológico em torno do qual se estrutura a relação com a norma e a própria legitimação das normas.

A noção de pessoa tem, portanto, uma componente ética decisiva para distingui-la da noção de indivíduo, que “estabelece com o seu meio e com os demais indivíduos unicamente relações de facto; não com­preende um «dever ser» para além do que efectivamente é. A pessoa, por outro lado, interessa-se antes de mais por tudo o que deve ser, tanto para valorizar o que é quanto para aspirar ao que não é de todo”. Face à lírica de M. António, mais do que à noção de indivíduo, é à de pessoa que teremos de nos agarrar. Porque ela joga, a todo o momento, com a tensão entre o que é, o que foi (que lhe circunscreve o que deve ser) e o que se deseja ver concretizado, ou harmonizado, na sua relação com o mundo.

A confrontação da história pessoal do locutor com a história social, estudada por Paul Connerton, ou A. C. Gonçalves, que o próprio texto nos dá por referência (como lembra Berrio na Teoría de la Literatura), e que se figura em poemas como «Quinze de Agosto», ou «Anti-Heróica», transforma a recordação biográfica ou auto-biográfica, feita por qualquer pessoa, no instrumento privilegiado de passagem entre o «ego» e o mundo, ou vice-versa. Por isso muitos psicólogos recomendam vivamente uma “auto-análise”, em que “avaliamos e equilibramos a responsabilidade pelo prazer que tiramos da vida com a responsabilidade que temos perante os outros”.

Deriva daí também a função do discurso autobiográfico citada por Salvato Trigo e José Carlos Venâncio para as literaturas africanas, e a angolana em particular, função que mais remotamente terá sido notada pela primeira vez por Dilthey. Isso permite ainda compreender em toda a sua profundidade a proposta de que a autobiografia possa conceber-se, como Lejeune o faz, narrando a construção de uma personalidade, e não exactamente a vida de alguém que nos é apresentado como o autor, ou seja: o locutor e o sujeito público que se responsabiliza juridica­mente pela obra. Quer dizer que a autobiografia centra-se em torno de um conceito intermédio entre o indivíduo e o meio, que é o que remete para a noção de pessoa.

Esse trânsito entre a história individual e a história social, regulado pela noção de pessoa construída por uma auto-biografia, e dado que esta noção é fundamentalmente de natureza e definição ética, faz a ponte entre a literatura e a teorização da filosofia e da psicologia. Por­que a aspiração ao que não se é – mas se pensa como dever e se deseja ser – estabelece na biografia da pessoa um programa narrativo que é a expressão e a consequência do seu fundamento ético, bem como a via que ela estabelece ou prevê para a respectiva socialização. A existência de um “programa narrativo” é, por sua vez, fundamental no conceito de personagem, sendo que o programa narrativo de uma personagem coloca sempre ao leitor a questão de reflectir acerca da qualificação moral dela, bitolada pela adjectivação – entre o bem e o mal – das intenções, das falas, das acções, e das consequências. Portanto, aquilo que num caso (o não-literário) é expressão de fundamento ético, no outro (o literário) é condição para a existência semiótica da per­so­nagem – é uma condição estética.

As descrições acima recordadas (e oriundas de campos afins ao dos estudos literários, como sejam a Psicologia, a Filosofia e a Antropo­logia) – intimamente articuladas, como acabamos de ver, à teorização do conceito de personagem – reportam-se a processos básicos aos quais está condicionado o funcionamento da personalidade e o conhe­cimento condiciona­dor do artífice ou escritor. Estão, portanto, inte­gra­das nas limitações com que inevitavel­mente operará qualquer autor – ou seja: naquela categoria de elementos que são os únicos que, vindos do sujeito transcendental, limitam necessariamente a criatividade.

A hipótese de trabalho que estabeleço agora é, consequentemente, a de que o modelo descritivo de Piaget, a necessidade sumariamente apontada por Bernardi, e a noção de pessoa de Michel-Jones (clari­ficada pelo personalismo de Francisco Romero e de outros filósofos, e ampliada por antropólogos como A. C. Gonçalves), constituem qua­dros teóricos que podemos comparar ao que é possível exaurir da con­figuração do sujeito no percurso cronológico que pudermos fixar a partir da leitura dos 100 poemas – tanto no que respeita ao auto-co­nhecimento, quanto no concernente à afectividade. É a “pessoa” cons­truída nesse processo que vai “experimentar-se”, posteriormente aos 100 poemas e a Era, tempo de poesia, perante os espaços estranhos àquele em que se formou.

Esta hipótese ficará ainda enriquecida se fizermos a sua tradução para a literatura aproveitando as “vias” de auto-conhecimento apontadas por Eduardo de Soveral no texto acima citado, e que são três: “a) Por virtude do ato de reflexão; b) Como correlato dos objectos que conhece; c) e como autor, ou co-autor, da própria objectividade que enfrenta”. A terceira “via”, precisada pela interpretação narrativa de Ricoeur, é a da própria autobiografia concebida enquanto ato imita­tivo desse processo de objectivação auto-reflexiva, ou homonimia.

 

A transferência para o campo literário dos princípios gerais e básicos apontados acima leva-nos a pensar, como atrás observei, em “pro­gramas narrativos” que permitem estabelecer entre si relações de com­plementaridade, e que passaremos a estudar a partir do presente capí­tulo. São eles o descrever o mundo e o «eu» no mundo, cumulativo da composição dos retratos de «outros» e do «eu» face aos «outros». Mas, também, a passagem do individual ao colectivo e vice-versa, através da objectivação auto-biográfica, ou homonímica – por opo­si­ção à heteronímica; e a representação de uma busca actualizadora dos valores escolhidos como superiores, conjugando-se à fixação de uma identidade aplicada sobre o meio, qualquer que ele seja.

Estes programas narrativos – pela natureza da narratividade – não são simples, redutíveis a uma linha de progressão única – muito menos quando se escondem sob uma sequência lírica. Eles pressupõem avanços e recuos – principalmente caracterizados pela relação entre a permanência e recorrência de um «eu», ou seja, pelas diferenças que esse «eu» apresenta em face de si próprio e da iconização dos seus valores, diferenças que surgem ao longo da sua reiteração, ao longo de um percurso que finca a continuidade ininterrupta da sua presença textual.

Diferenças idênticas se podem verificar em relação às pessoas que o rodeiam, generalizando-se o processo figurador da personalidade do locutor explícito para os seus imaginários interlocutores. As pessoas e “objectos que conhece” estão dialecticamente construídos pela oposição entre o mesmo (“Aí estais vós, / Reais, presentes: / Eu é que sou outro”) e a perspetivação (embora projetiva) da sua alteridade (“Este Quinze de Agosto já não tem / (Já não tem o quê, Toneca?) / Já não tem a beleza do outro tempo / o movimento, a cor”).

Para a segunda categoria (a do “outro”, a da segunda ou da terceira pessoa), porém, o “romance lírico” do “autor” reservará uma esma­gadora maioria de situações em que ela permanece idêntica a si própria, por oposição à mudança do «eu» e definindo-o assim dia­cri­ti­camente. Esse será um dos eixos sobre os quais, a partir da dicotomia «eu» / «não-eu», a personalidade do locutor vai configurar-se.

 

A identificação do sujeito

 

Começo, em consequência de quanto já foi dito, por encontrar duas linhas principais de leitura nas composições escritas até à publicação dos 100 poemas, inclusivamente: uma baseada nas passagens em que o locutor é figurado como referenciando o mundo, no qual entretanto se apresenta a si próprio (correspondente ao primeiro tipo de lírica definido no início do capítulo anterior); outra fundamentada nos momentos em que ele aparece estabelecendo ligações inter-pessoais, e denunciando pontos de interesse, que afectiva e efectivamente consolidam o mapa traçado pelos extractos do primeiro tipo, objectivando a pessoa do locutor na comunidade, que é a referência diegética da obra, e delimitando os percursos da “procura de si” nas rotas traiçoeiras da existência.

As passagens que se centram sobre figuras ou objectos através dos quais o sujeito focaliza o seu mundo inicial, ou a origem dele, definem os seus grupos de pertença e referência, o “ovo” onde cresceu e vai tomando consciência de si. Ou seja: o quadro que vai desenhar a sua adolescência e a razão de ser da sua identidade. Poderíamos, portanto, chamar a tais passagens «momentos identificadores».

Os momentos identificadores, como vamos começar a ver, servem primeiramente para recompor uma filiação, que os antropólogos denominariam cognática, indiferenciada ou bilateral; tais momentos igualmente servem para determinar um espaço que é o espaço privilegiado pela história dessa filiação, e aquele onde ela desemboca e fica, portanto, ilustrada, a par da rememoração do passado pessoal de quem fala.

A coincidência entre a localização da aprendizagem do protagonista e o meio onde se desenvolve a genealogia, que parcialmente o explica e institui, relaciona desde logo heranças culturais e genéticas – também funcio­nando como identificador.

Deveremos, pois, acrescentar, à existência de momentos (espacio-temporais) de identificação, a de elementos e relações identificadoras que os constituem. Os sentimentos inter-pessoais e os interesses de que fala Piaget servem de ilustração geral para factos e ligações identificadores.

 

Origens e afinidades

 

Predominantemente, as afinidades do sujeito locutor estratificam-se pelo retrato de personagens que lhe são adstritas por explicitação de laços de sangue, ou por identificações rácicas – e não só pelo estabelecimento de identidades culturais e territoriais. Tende a só haver identificação de ordem cultural onde houver afinidade pelo sangue ou pela cor da pele.

A linhagem do ego centralizador das referências está fixada em figuras femininas: a «Avó Negra» do primeiro poema (1950), que se amplia nas “«Donas do outro Tempo»“ (de 1959), nenhuma delas no entanto podendo garantir a transmissão de uma sabedoria em suas “filhas de hoje”, tão personificadas na mãe quanto na mulher-esposa do locutor.

A fixação genealógica pelo feminino é compaginável a outros dados que os textos vão fornecendo, como sejam o desaparecimento prematuro do pai («Beijo de Mulata», «Retrato»), a sua irónica abstracção para um Deus colectivo («Filhos que Somos todos de um só Pai»), a neutralização do seu papel como educador («Drama»), ou o repetido facto de, quando as mulheres antepassadas surgem, as figuras masculinas estarem ausentes ou neutralizadas (nunca se ouve falar do avô, negro ou branco; os homens “do outro tempo” apenas emolduram o quadro central do poema que às “Donas” se empenha). Suscita-se-nos, portanto, uma interrogação recorrente: porque motivo insistirá o texto em neutralizar, encobrir ou enublar a visibilidade das personagens masculinas da sua genealogia e do ambiente constitutivo da personagem?

A primeira hipótese que me ocorre, por causa das leituras citadas ao longo do capítulo I, prende-se com uma  interpretação psicanalítica que permitisse analogizar o fenómeno com uma qualquer espécie de «complexo de Édipo». Uma tal hipótese reforçar-se-ia na conjugação dos modelos descritivos freudianos a uma análise sociológica da narrativa, tal como a que atribui à “morte do pai” na literatura africana o símbolo da morte do colonizador. O facto de o pai ser o primeiro a desaparecer parece indiciar um relacionamento problemático entre os dois e confirmar assim a hipótese, a que nem Barthes seria estranho.

Mas a possibilidade de haver uma explicação, poética, para cada caso (o do avô negro, o do pai e o do avô branco, por esta ordem) aconselha-nos a não associar todas as figuras masculinas à de um “Pai” tal como o define a simbologia psicanalítica, na vulgata europeia ou na torsão negritudinista. Para além disso o pai é, nesta lírica, a fonte aceite e amada da identidade do filho, que se figura assumidamente na sua continuidade, mesmo de estilo. Ora, estes dados não apelam à alegoria edipiana, em que a morte paterna é provocada pelo filho (ainda que involuntariamente, pelo menos a um nível explícito. Mas inconsciente, não involuntária, na leitura de Freud).

Outros dois modelos extra-literários que podemos importar para explicarmos este facto são o do matriarcado e o da matrilinearidade, fornecidos pela Antropologia.

Como é sabido, nas sociedades tradicionais da África Central, e de parte de Angola, o sistema de parentesco (no sentido de Fortes e Evans-Pritchard) é genericamente marcado pela matrilineari­dade, não tanto ou não somente  no que diz respeito à definição dos antepassados, ou às funções políticas a exercer por cada membro, mas sobretudo no que se relacione com a formação de cada um dos indivíduos da linhagem e a distribuição dos papéis no seio do sistema. Essa formação reserva comummente ao pai apenas algumas funções simbólicas, cabendo à mãe e tios maternos os principais papéis enculturadores, como se a educação espelhasse a herança genética. Uma hipótese estimulante, que podíamos colocar para fazer a leitura do apagamento das figuras masculinas, era a de o sistema de parentesco tradicional estar presente no desenho da genealogia identificadora do locutor, que dá maior importância às figuras femininas por ter sido criado por elas ou com elas, ou quando muito por familiares masculinos definidos no âmbito da linhagem materna.

Podemos explicar a sua presença socorrendo-nos da ideia junguiana de “inconsciente colectivo” (tão do agrado de António Quadros, de Gilbert Durand e de outros estudiosos do imaginário), complementarmente socorrendo-nos da ideia (na circunstância, talvez mais apropriada ao nosso campo de estudos) de uma influência estruturadora dos propósitos e objectivos negritudinistas, que levariam o autor a compor uma filiação típica da sua ascendência banto.

Mas, destas duas hipóteses, a última não concorda com o facto de a genealogia ser “indiferenciada”. Se houvesse um propósito, consciente, de compor uma genealogia típica, ela deveria ser unilinear – ou, se tanto, bilinear, mas não «indiferenciada», termo que Bernardi faz equivaler a «cognática».

Na verdade, se há manuais que fazem equivaler a linhagem bilateral, cognática, e a indiferenciada, face ao material de que dispomos teríamos que dis­tinguir entre uma linhagem definida pelas ascendências paterna e materna cumulativamente e outra esboçada com elementos indiferenciadamente recolhidos de uma ou outra linha ascendente. Nos 100 poemas deparamo-nos com uma genealogia indiferenciada neste último sentido – mas onde, por isso mesmo, nada nos diz se ela é cognática ou unilinear.

Uma vez que, nas sociedades tradicionais africanas da zona circundante a Luanda, que é o centro do mundo composto pelo autor, a definição da linhagem é unilinear ou cognática, mas nunca indiferenciada, parece-nos que não podemos trabalhar com a hipótese complementar de haver um propósito negritudinista consciente na promoção de uma linhagem onde os homens estão, por assim dizer, neutralizados. Mesmo no que diz respeito à primeira hipótese (a que recorre à noção de «inconsciente colectivo» e de «estruturas antropológicas do imaginário»), só podemos trabalhar com ela postulando a possibilidade da sobrevivência articulada de frag­mentos de um imaginário anterior, ficando a fragmentação explicada pela vivência multi-cultural que adiante observaremos, numa situação em que a cultura estruturante passasse a ser não-banto.

Suspeitaríamos, então, de que se tratasse aqui da sobrevivência de uma estrutura de matriarcado, ou pelo menos de uma estrutura resultante da «matrilocalidade», ou «avuncolocalidade», e não propriamente de matrilinearidade. A suspeita via-se reforçada pelo carácter crioulo desta genealogia, que parece refuncionalizar – a partir de Luanda – a estrutura arcaica. Como ficará demonstrado mais adiante, a definição da linhagem próxima do sujeito é determinada pela noção de crioulidade que se lhe pode imputar. Fazendo um breve estudo do papel da mulher nesse tipo de sociedades, podemos contextualmente explicar porque os homens ficam ausentes do retrato.

 

A educação tradicional na África Central e em Angola, como disse, deixa geralmente ao cuidado – primeiro da mãe, depois dos tios maternos – a educação do jovem. Durante o período inicial da sua vida ele está pois inserido no ambiente materno, como se o ventre se alargasse para incluir o microcosmo social que é a família próxima da mãe. É nesse período que, segundo a Psicologia, se condiciona ou determina a identidade das pessoas, e por isso as figuras maternas teriam desde logo um peso maior que as paternas sobre a ideia de si que tem qualquer filho.

Na sociedade banto espalhada pela África Central, a distribuição de papéis em geral reserva igualmente ao homem práticas como as da caça, da guerra, e da política (participar em conselhos, prepará-los, assessorar o chefe ou representá-lo); cabe à mulher assegurar a maioria das funções respeitantes à alimentação: ela é que cultiva (o homem prepara só inicialmente a terra), ela é que recolhe os alimentos, depois os prepara, troca ou apresenta.

Esse papel é ainda evocado em «Avó Negra», pois, na recordação que a configura, um dos principais atributos é o das mãos; em se tratando de uma personagem à qual o sujeito permanece ligado por fortes laços afectivos, seria de esperar que ele recordasse as mãos, também, por carícias ou gestos diretamente expressivos de amor maternal. Mas as mãos da avó surgem, primeiro, como “calosas da enxada”, com que preparava “mimos da nossa terra”; depois “desfiam as contas gastas / De um rosário já velho”. Ou seja, são nomeadas em frases onde a afectividade, que relaciona o locutor e a avó, depende da evocação do trabalho e das preocupações dela – de um trabalho típico da distribuição de papéis em grande parte das sociedades tradicionais bantos.

Baseados nesta passagem, podemos ver reforçada a hipótese de a distribuição de papéis tradicional estruturar as figuras da linhagem e, por extensão, do próprio desenho social dos antepassados próximos, pois aí a mulher surge como a que trabalha a terra e prepara os ali­mentos, possuindo atributos parecidos com os que tem nessa dis­tri­buição tradicional. Tais dados podem ser reforçados com a história da criação de uma sociedade intermédia e miscigenada em Angola.

Na transposição da comunidade tradicional para um espaço urbano e administrado centralmente – como o que é focado nos 100 poemas – o homem, para continuar a ter um papel equivalente ao que tinha antes, passa a desempenhar um “cargo” na rede comercial de modelo europeu ou, de preferência, numa repartição estatal.

Se mantivermos como hipótese a persistência estruturante (num inconsciente colectivo) dos arquétipos iniciais, as novas responsa­bili­dades do homem tenderão a ser vistas em função do sistema simbólico anterior – portanto, de carácter representativo e político. O “emprego” é, pois (nesta hipótese), sinal de que a família está presente nas estruturas do poder, através das quais assegura a sua posição e li­berdade. É parecido o que se passa no segmento crioulo de outra república africana, a da Serra Leoa, onde o homem “está mais preocupado com a profissão e os clubes masculinos”.

Poderia argumentar-se que a crioulização na Serra Leoa não serve de exemplo, uma vez que resulta de um historial diferente do angolano. Em parte isso é verdade. Os crioulos da Serra Leoa filiam miticamente a sua ascendência nos antigos escravos britânicos libertados, en­quanto os crioulos angolanos podem ter as mais diversas origens. Concordantemente, a crioulização em Angola passou muitas vezes, como noutros pontos de África, pela herança e pela vida comercial, e não só pela escravatura, nem exclusiva­mente pela promoção social do escravo ou ex-escravo. Este crioulo é também o descendente de uma genealogia dupla, não o é apenas pela origem geográfica ou pela história de cada “ramo” de origem.

No entanto, há traços estruturais idênticos nos dois casos (da Serra Leoa e de Angola), ainda que o historial que a eles conduz seja di­fe­rente. Um deles é precisamente o da importância da mulher, que desempenha um papel primordial na manutenção das diferenciações próprias dos crioulos, “principalmente através da socialização da criança nos valores e símbolos do grupo, e através da socialização do homem no seu próprio costume”. Ou seja, um deles é precisamente o que nos importa para interpretarmos o “apagamento” das figuras masculinas. Outros seriam a integração profissional do homem, a manutenção – a cargo da mulher – das redes ou laços de trabalho familiares, e a emergência de lojas maçónicas onde o homem se integra também, para assegurar ou optimizar a posição social da família.

Portanto, num sítio como noutro, enquanto o homem está ocupado nas suas novas funções (emprego, clubes masculinos onde se mantém e afirma o status familiar), a mulher fica sozinha em casa. Por isso ela terá de garantir a educação familiar e trabalhar, agora já não no cultivo das terras, mas no comércio local (de “quitandas”, para o caso angolano), que lhe assegura o acesso aos alimentos. No caso de Angola, o diminuto ordenado garantido pelo homem da terra, num processo de proletarização acentuado como era o que gerava a pressão do sistema colonial no século XX, contribuía para a conveniência desta distribuição de papéis.

Daí que as fundadoras da crioulidade sejam vistas nos poemas como comerciantes. Daí também que aos homens caiba somente a sua representação social, figurada nos fatos “europeus”, contrapostos aos panos garridos das mulheres (como sucede em «Donas do outro Tempo»). Num quadro como este, a formação da identidade do filho fica na quase total dependência da mãe e, se ela for viva, da avó – que assume nestes poemas um papel matriarcal. O realismo dos retratos filiadores do locutor explicaria – face a estas características da socie­dade africana crioulizada – a pouca importância que neles assumem as figuras masculinas.

 

Não pretendo impugnar nenhuma destas hipóteses. Mas uma questão de método me obrigará a verificar primeiro a possibili­dade de uma leitura intrínseca, eventualmente concordante com esta – se se justificar o facto de ela confundir a presença de figuras femi­ni­nas, no desenho da filiação, com a matrilinearidade, ou a matriar­ca­li­dade, fixadas pelos antropólogos.

Precisamos de ver primeiro como é retratado no livro o ambiente em que surge o locutor e no qual ele se identifica; depois nos interro­ga­re­mos sobre a relação entre esse quadro, que nos referencia o “ovo” original, e a figuração do autor dos versos, para verificarmos se não foi a economia ou a estrutura de significação da obra que dispensou certas figuras masculinas. Só findo este processo teremos ocasião para nos perguntarmos se há motivos extra-literários que sejam necessários à explicação do “apagamento” das figuras masculinas na antologia, e se o tipo de ambiente construído como a referência dos versos coincide com as descrições antropológicas e sociológicas que tentei resumir nestas linhas.

 

 

A filiação próxima

 

A linhagem próxima do locutor é nomeada por uma avó, pela mãe e pelo pai. É na fotografia da avó que o livro começa, iniciando ao mesmo tempo a apresentação da família e a “autobiografia”.

Na verdade, o facto de o livro se iniciar pelo retrato da avó negra denuncia a sombra da estrutura autobiográfica da tradição literária europeia. Lejeune, falando acerca da “ordem” em Les Mots de Sartre, logo de princípio lhe anota uma estrutura aparentemente tradicional, invocando que, “como toda a gente”, o autor coloca no começo a sua árvore genealógica.

É claro que a marca lírica mascara a ordem cronológica linear e mais comum. Por isso, enquanto no modelo autobiográfico (e ainda segundo Lejeune), a seguir à genealogia pinta-se o nascimento do sujeito-locutor, aqui esse nascimento assume os contornos adolescentes de um acordar para o mundo, como custo a pagar à socialização na comunidade próxima ou envolvente. A dispersão lírica parece, no entanto, mais propícia a um escrito autobiográfico dedicado à infância ou adolescência, dado que, muitas vezes, a própria autobiografia não apresenta uma cronologia clara para esse período, recorrência também surpreendida por Lejeune. A dispersão lírica, pela sugestão de autenticidade que apresenta, pode retratar convincentemente, ambiguizando ao mesmo tempo a clareza do pormenor, aspetos muito particulares (mas muito significativos) de uma infância, ou de uma adolescência. A enunciação lírica permite ainda que o locutor fale do passado utilizando apenas as flexões do presente, e sem nos indicar que se trata de um “presente histórico” (aumentando, pois, pela sugestão diarística assim garantida, o grau de verossimilhança das “confissões” que retraça na poalha branca das páginas).

Pode-se argumentar que, no modelo autobiográfico, o começar pelos antepassados articula-se a práticas sociais que nos atrevemos a ter por universais (dando um sentido amplo ao sintagma “toda a gente”, usado por Lejeune). Efectivamente, em qualquer sociedade, a apresentação de uma pessoa passa pela nomeação dos antepassados ilustres, ou conhecidos no meio em que ela é apresentada. Se, em vez de uma apresentação, tivermos uma auto-apresentação, é igualmente muito provável que ela cite os antepassados, ou seja, que o locutor comece por afirmar que é filho, ou neto, de fulano, ou que é da família “dos”, “daqueles que”, etc.

Aí começa a ter pertinência uma particularidade característica das apresentações genealógicas, e cuja ocorrência nos 100 poemas é variamente produtiva em relação aos significados exauríveis. Trata-se de saber se é importante, ou se está codificado, o lado a que pertence o (ou os) antepassado(s) nomeado(s). Será que o hábito universal da apresentação vem ao texto por via de uma tradição local, ou, pelo contrário, tanto quanto os modelos autobiográficos, ele vai represen­­tar costumes exógenos, transcontinentais?

Na mesma passagem que acima citei, Lejeune fala no lado paterno e no lado materno da ascendência como sendo os dois listados e ilustrados pela imaginação do narrador. Mas no caso dos 100 poemas temos uma execução original: organiza-se uma genealogia sem se dar indicações sobre cada avoengo ser paterno ou materno, extremando-se mesmo ao ponto de não garantir (em «Donas do outro Tempo») ao leitor que se trate de antepassados de sangue. Concordantemente, o autor não assina a sua lírica com o nome de família, nem o da família paterna, nem o da materna, pois resume-o a uma inicial e a um nome próprio: «M. António».

Isso obriga-nos a concentrarmos na figura da avó a leitura de toda a carga simbólica necessária à significação e que normalmente se iria buscar a vários antepassados, ora matrili­neares, ora patrilineares. Por tal motivo é que a avó negra nunca se desvela paterna ou materna, porque nela se economiza tudo quanto se pudesse ir buscar para trás do pai e da mãe. Tudo e algo mais, visto que o pai e a mãe, por motivos diversos, não representam uma sabedoria condutora ou atractiva, pois perpassa na sua existência o predomínio de uma falha, de uma queda.

Passaremos a rever isso agora em pormenor.

A «Avó Negra» do primeiro poema reaparece em «A Morte Inex­pli­cável», de 1953, encarnando (como «Donas do outro Tempo») uma sabedoria que ficava para explicar todo o mistério, em vozes cheias de certeza – mediando a morte. Aí, a sua evocação serve igual­mente para confirmar o papel central que ela desempenha na iden­ti­dade afectiva do lírico sujeito. Trata-se da única personagem próxima que reúne os três atributos fundamentais da referência identificadora: o físico (é uma antepassada viva, presente), o cognitivo (transmite sabe­doria) e o afectivo (faz-se sentir).

De entre as figuras da consanguinidade citadas como filiadoras no tex­to ficam depois, como dissemos, a materna e a paterna, com as quais o locutor estabelece uma relação profundamente marcada por uma afec­tividade bipolar que, nos dois casos e por diferentes motivos, lhe im­pede uma aprendizagem como a que idealizara com a «Avó Negra».

Em torno da figura do pai cresce uma aura de admiração e amor en­sombrada pela morte, contra a qual o filho se revolta, como se pode ler nos dois poemas tipificados pela imagem paterna: «Beijo de Mula­ta», de 1952; e «Retrato», de 1959. A revolta neste caso resolve-se pela verificação em si de uma continuidade (mais uma vez assente na consanguinidade), cuja citação fecha o segundo desses poemas.

A delineação de um relacionamento torturado entre o «eu» e a mãe, contrapolarmente, imita uma afectividade complexa. Um verso que, na «Carta do Afogado» (de 1960), se isola graficamente exemplifica bem o tipo de relação a que me refiro: “saí do teu ventre para nos ignorarmos”. Na mãe situa-se a origem de um sentimento de rejeição, apesar do amor filial que se lhe predica, e no qual radica também a fidelidade a um relacionamento que é, naturalmente, fundador e contraditório. Pois por outro lado, a par da rejeição, separa-os ainda o desconhecimento materno sobre a vida íntima, e até pública, do filho. Tal desconhecimento encena-se como insensibilidade lamentada, e generalizada mais tarde para a própria cidade materna – sediando, aliás,  uma tripla figura que envolve a mãe, a amada e a mátria [68].

 

A «Avó Negra»

 

A curta rede genealógica foi coerentemente relacionada com dois aspetos complementares.

Em primeiro lugar, com o motivo pelo qual se resume numa avó (que nunca se esclarece paterna ou materna) a imagem da sabedoria em relação à qual o neto procura, por si, enculturar-se, ilustrando a afirmação que nos garante que “a dinâmica da norma (...) tira a sua eficácia da própria necessidade que todo o homem tem de se identificar”.

Se a pessoa do pai não poderá funcionar enquanto modelador por ausência (morte), e a da mãe também não perfaz as condições necessárias para “acudir se se cometia qualquer erro”, dada a sua insensibilidade, fica pois instituída a figura familiar mais próxima como principal elemento de enculturação do protagonis­ta, fornecedor de normas e da consequente segurança, num quadro também ele previsto pela Antropologia. O retrato da avó será por isso equiparável ao de um “destinador” numa narrativa: ela representa o saber que o sujeito erige em valor a conseguir. Como sucedia nas genealogias medievais europeias, ou nas narrativas históricas de várias comunidades bantos.

Daqui duas conclusões se tiram: o começar pela genealogia só consegue ter significado genológi­co, pois antropologicamente ela é indefinida (pode vir da Europa ou de África, do pai ou da mãe – não equivalendo o pai à Europa ou a mãe a África). Uma das nossas hipóteses há-de ser, pois, que devemos explicar em termos artísticos tal facto, antes de nos debruçarmos sobre similaridades étnicas ou de outra espécie transbordante.

A segunda conclusão é a de que estamos perante um retrato primordial para analisarmos a arquitecturação semântica da figura do sujeito – na medida em que a configuração de uma identidade passa pela valori­za­ção condutora das acções e pelas afinidades com as emoções de alguém por tais processos erigido em modelo.

Se, por um lado, o retrato da avó é importante porque nos permite fixar o tipo de saber procurado, por outro lado abre também caminho para a determinação do meio histórico e social a que se identificará, consanguínea e biograficamente, o sujeito-locutor dos poemas (e, nesse meio, à ascendência caracterizada da mesma forma que ele).

Como veremos, o meio adjectivar-se-á desvirtuado ou desqualificado na passagem do tempo das avós para o das suas filhas – o que permitirá ao leitor aceitar naturalmente a posterior oposição mãe-filho no processo de aprendizagem, ou a oposição marido-mulher em «Amor de Funcionário», já no final do mesmo percurso de formação. O filho-marido ressentirá a queda revoltando-se contra ela, ou seja, contra a mãe-mulher.

O artifício montado pela caracterização problemática das relações com a mãe e o pai abre depois a via para a optimização de um modelo cultural que parece a resposta à desqualificação do meio, que seria própria da geração dos pais na adolescência do locutor. Estando longe no tempo a experiência inicial e fundadora da avó negra, ela admitirá mais facilmente uma relação criacionista, remodelizante, de que o retrato da avó beneficia. Ou seja: a distância temporal possibilita uma referência conveniente – para além de valiosa – com a vantagem legitimadora de ela se centrar numa figura dada como originante do processo que integra, explica e identifica o percurso do autor.

Fixada por todas estas funções, não admira que a personagem fundadora da avó seja a metonímia de um modelo e da comunidade que melhor permite exemplificá-lo. A sua constituição metonímica convida-nos a uma leitura generalizante, sugerida pelo próprio trabalho poético ao amplificar o retrato da avó para o das “donas do tempo antigo”, recolhidas num outro “retrato”, agora “amarelado”, e possivelmente familiar.

 

O retrato visível: terceira hipótese de trabalho

 

A progressão, na obra, do tratamento dado à avó é sintomática. Primeiro fala-se dela, do que a demarcou no meio em que vivia quando nova – focalizada no entanto a sua presença na depen­dência do protagonista e locutor: “Minha avó negra”; depois fala-se dela quando morre, ou seja: no irreversível instante que a transformará de referência presente em referência recordada, garantida pela memória; finalmente, a sua caracterização semântica reaparece no quadro colectivo das “donas do tempo antigo”, justificada realisticamente a recorrência através da motivação que constitui uma velha fotografia.

De passagem – e antes de nos centrarmos com maior detalhe na figura da avó negra – é de registar este primeiro sinal de como o realismo parece estar interpretado na obra. Só se fala da pessoa concreta quando ela é visível, ou quando algo a torna visível; só se fala do que vem aos olhos do sujeito. Quando a avó já não pode, por ter morrido, constituir um motivo central, visto que deixou de ser visível, utiliza-se o artifício da fotografia (do quadro), para justificar a reevocação do que ela representava – artifício já descrito por Aristóteles na Poética ao falar nos tipos de reconheci­mento.

A importância dada à classificação do motivo era tal que, numa pri­meira versão publicada em livro, o título inicial do poema era «Sobre uma Velha Fotografia», e não «Donas do outro Tempo». O primeiro título chamava a atenção para o meio usado para guardar a memória, e ao mesmo tempo para o alibi do poema; o segundo chama a atenção para a referência que tal meio guarda. O título inicial, ao remeter para a fotografia (o meio, o tipo de fixação utilizado), podia ser lido enquanto evocador da grafia poética, também ela se estruturando sobre velhos materiais e também ela sendo uma forma de fixar as referências que as amarelece. “Donas-do-outro-tempo” é, cumulativamente, a refe­rência da fotografia e a do poema; a linguagem deixa, aí, de ser re­cur­siva, auto-referencial, para se intensificar a focalização sobre as “Do­nas”. Ou seja, a mudança de título acompanha, com o seu “realismo”, a sua concentração na designação das referências visua­li­zadas, um tipo de realismo que estrutura toda a composição.

Para observá-lo, convém notar que o texto mantém-se fiel ao que diz que lá está (na fotografia e nos versos). Trata-se de uma fidelidade estruturante: fala-se no plural, porque se disse que a fotografia continha várias mulheres, e fala-se no plural porque se disse ter morrido o singular vivo que podia funcionar, em termos de iconicidade, como aquele plural retratado.

A presença do realismo sente-se ainda pelo recurso a um outro pro­cesso que é o do retrato por metonímia e não por metáfora. Trata-se de um recurso utilizado principalmente quando ao sujeito é as­sa­cada a responsabilidade pelas caracterizações da mulher: a avó representa as donas do seu tempo; a filha as filhas delas; a mulher, as mulheres desenculturadoras como a mãe e as de sua geração (veremos isso em pormenor nas secções respectivas).

O mesmo tipo de processo vai ser utilizado quando se inscrever a figura paterna. Ela é recordada junto à campa (o último espaço físico, visível, ocupado pelo pai, que metonimicamente o representa); ou a partir de um retrato, cuja visualidade é acentuada pela dupla referência aos olhos e aos óculos: “Olho e vejo através dos óculos / A escura face com óculos / Desse teu retrato antigo”.  Repare-se que, para além do verso com os olhos e os óculos, cada uma dessas referências está repetida por duas vezes: “Olho e vejo”, no início, “óculos” a terminar os dois primeiros versos.

Mesmo na evocação junto à campa, aquilo a que, por falta de outra palavra, chamaríamos a visibilidade do pai, marca, também duplamen­te, o início do poema (e, portanto, da imitação da retrospectiva): “Pai, / Olho o teu rosto fechado / Nas letras apagadas dessa campa / A tua / (No quadro dezasseis / Do Cemitério Velho)”. Digo “também duplamente” porque ele é visível fisicamente a partir das letras, onde se escreve o nome, e visível socialmente por esse nome e pela identificação do lugar onde encontrou o eterno repouso (o “quadro dezasseis / Do Cemitério Velho”).

Por fim, convém repararmos no facto de estarmos, tanto em «Avó Negra» e «Donas Do Outro Tempo», quanto em «Beijo de Mulata» e «Retrato», perante as duas principais figuras na identificação positiva do locutor. Com efeito, como iremos ver um pouco mais à frente neste mesmo capítulo, a avó simboliza a sabedoria que o neto busca, enquanto o pai simboliza o sonho que lhe estruturou a infância – e lhe desestruturou uma socialização desculturadora ou alienante. Ou seja, os motivos que exigem a visibilidade para serem referidos são aqueles que identificam o sujeito positivamente. São motivos identificadores.

A hipótese que podemos estabelecer, a partir destas observações, é a de que a selecção dos principais motivos identificadores que irão figu­rar nos poemas é feita, não só pelo papel que tais motivos desem­pe­nhem na composição do rosto do locutor, ao se assumirem metonímias convenientes dos tipos e meios que representam, mas também por uma interpretação do realismo que determina o visível como condição do dizível, e o dizível como condição de identificação. Isso não significa, naturalmente, que o poeta tenha visto o que diz, mas que os elementos principais da sua composição semântica nos são apresentados como tendo acedido à percepção visual do locutor. Acorda-se desta forma a técnica de composição, utilizada por M. António para os identificadores do seu sujeito, à imposição da ocularidade como um dos “três aspetos perceptivos” obrigatoriamente constitutivos das imagens ou símbolos, apontados por Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do Imaginário.

Mas, mais do que essa integração numa regra genérica, interessa-nos o particular funcionamento que lhe é imposto no sistema de significação da obra. Se o que é dito o é principalmente por causa da identidade do sujeito, e se as ocorrências estão condicionadas pela visibilidade, então podemos avançar com a hipótese de ser a visibilidade dos motivos identificadores uma das condições estruturantes da identificação do su­jeito nos 100 poemas – ou em toda a obra assinada por M. António – desde que participe da composição de uma autoria lírica de que o seu nome garante aquilo a que podemos chamar uma “realidade pública”.

Isso traz-nos duas implicações metodológicas: por um lado, fazer a leitura metonímica das figuras identificadoras; por outro, aurir a fundação da atitude interpretativa na confirmação da visibilidade dos motivos organizados no texto.

O leitor poderá verificar ainda, nos capítulos seguintes, relativamente ao campo de abrangência da nossa hipótese, que essa condição de visi­bilidade desenhou as opções estéticas atribuídas ao autor, levando-o a privilegiar uma retórica da projecção, e, ao mesmo tempo, as técnicas ver­sificatórias que tornassem visível, ou que figurassem na sua na­tu­re­za, o que semanticamente se propunha (a cisão e a saudade, o trânsito e o recurso entre dois tempos e duas identidades – ou duas leituras).

 

A fundação da crioulidade

 

A «Avó Negra» caracteriza-se como tendo, por iniciativa que lhe é atribuída (“rompeste”), iniciado um processo de aculturação que a afastaria da tradição africana, aproximando-a da europeia – con­tra­pos­tas as duas, principalmente, pelas práticas religiosas, através do binó­mio (também linguístico) “xinguilar” / “rezar”. A aculturação voluntá­ria da avó tê-la-ia levado, mais tarde, a pelo menos parcialmente arrepender-se, o que se deduz da última estrofe do poema: “E penso que / Se pudesses / Talvez revivesses / As velhas tradições”.

Um tal processo, assim exposto, leva-nos a pensar numa aculturação problemática e desperso­nalizante, que deveremos discutir.

É comum, quando se fala na literatura angolana, importar das litera­turas africanas francófonas a problemática do intelectual aculturado, que se dilacera entre o que aprendeu (no ensino formal) e o que deixou de saber (o que saberia pelo ensino tradicional). Não se imagina que o processo possa filmar-se com outro cenário e outra intriga, por isso não se opõe aos dramas francófonos, tantas vezes artificiais, a ideia de transculturação, especificada para a África de língua portuguesa (especialmente para Angola) por José Carlos Venâncio, e para o caso cabo-verdiano por Alberto Carvalho.

A ideia de aculturação, ou assimilação, torna-se clara pelo significado que lhe define Titiev: “processo de mistura de culturas”. O próprio Titiev nos fornece, porém, um motivo para recusarmos o termo. Deriva do facto de ele ser “mais geralmente aplicado ao estudo da influência da cultura euro-americana num grupo não letrado e relativamente isolado” – o que desvirtua a significação mais larga de “mistura de culturas”. O conceito de aculturação incluiria ainda a recorrente dominância da “importação” de objectos materiais, em vez de outros. Ou seja, a influência ou a mistura viriam sobretudo pelo comércio de bens de consumo.

Ainda que se trate de uma área de estudo que não é a minha, permito-me, face à lírica de M. António, apresentar algumas reservas a esta utensilagem teórica. Desde logo porque a aculturação começa muitas vezes por via religiosa ou afectiva. É simultaneamente pelas duas que ela se esculpe no poema – e livro – disperso Nossa Senhora da Vitória.

Se, nesse hino fundador, a via para a crioulização é ao mesmo tempo a religiosa e a afectiva, nos 100 poemas encontramos apenas a opção religiosa, havendo-se por heroísmo de ideias de cariz religioso a «Avó Negra» afastado das tradições. Complementarmente, mostrando-nos que se trata de um tópico de autor, num livro em prosa de ambivalente qualificação genológica (Memórias & Epitáfios), “minha avó”, “filha de soba”, abandona a aldeia e vai “viver com o branco”, retomando-se dessa forma, ou nesse momento (estamos em 1974), a descrição da via afectiva miticamente burilada em Nossa Senhora da Vitória. Os livros da responsabilidade de M. António assinalam, pois, vias de crioulização que foram apenas entrevistas pela sociologia francófona como distorsões geradas a meio do processo e não como saltos ori­gi­nais, fundado­res de uma cultura e de uma comunidade em direcção a uma hipótese nova de relacionamento interpessoal.

Paralelamente, a influência dá-se também pela expansão de novos transmissores culturais, sobretudo nas zonas urbanas, mas também nas aldeias. Tal facto é referido nos 100 poemas quando, em «Pla­nalto», se fala na “voz de um rádio que grita”. O rádio, aqui, não é somente um objecto material, muito menos um utensílio, mas um instrumento de propagação. A influência cultural está igualmente re­presentada na lírica de M. António, em Lusíadas, quando nos versos desfilam vários «nomes vazios» que os jornais, os livros e os cinemas divulgaram. Marcando a autonomia deste tipo de influência ou mistura, há referências culturais de países de onde não importámos nenhum objecto material significativo que não fosse acima de tudo um objecto cultural (é o caso dos filmes).

Como última reserva, aduzo ainda o seguinte: é que não podemos reduzir os processos de “mistura de culturas” à propagação da mentalidade europeia e norte-americana para grupos isolados e “não-letrados”, porque a existência de tais grupos é mínima, e porque assim não daríamos conta dessa mesma influência nas comunidades urbanas e letradas, que é precisamente o caso daquela que os versos dos 100 poemas dizem ter sido a da infância do locutor. Portanto, se o termo [aculturação] é de recusar de per si, a sua conceituação entre os antropólogos torna-o redutor e não pertinente para a leitura que estamos a levantar.

O termo e o conceito de «aculturação» que estou a criticar foi perfilhado, e o processo que tem por referência consequentemente mal conotado, pela vulgarização da negritude. Alicerça­vam-se os divulga­dores ou seguidores dessa corrente cultural e política numa leitura da organização da sociedade colonial que a estratifica em negros não-assimilados, negros assimila­dos, estrangeiros não-europeus e colonos europeus. Num tal quadro não existe nenhum segmento verdadeira­mente sincrético, mas apenas contaminações colaterais, adstráticas. Não há segmentos intermédios entre o branco, o estrangeiro e o negro, pelo que ela dificilmente se aplicará ao caso proposto na lírica em estudo, onde uma das componentes étnicas é, precisamente, a camada intermédia da substrução biológica, social e cultural angolana.

Visto que as descrições da sociologia negritudinista e francófona não se adequam à referência artificiada na antologia inicial de M. António, para podermos fundamentadamente precisar o tipo de “mistura de culturas” em jogo nos 100 poemas convém observarmos como na tessitura das imagens em tela surge caracterizada cada uma das componentes étnicas em causa (a que veio pelo mar, a que se modificou radicalmente no seu próprio território, e a que se manteve próxima da tradição, ainda quando contaminada pelo rádio de pilhas).

O rompimento com a tradição, na inaugural autobiografia da avó negra, dá-se num lugar que a ela (tradição) pertence (o quimbo), no seio de um povo que fala uma língua própria (o que as palavras “xinguilar” e “quimbanda” sinalizam), e que vivia o culto segundo regras inscritas nos padrões de cultura (Benedict) que a identificavam (como as mesmas palavras denunciam). Estão, pois, presentes aí “os cinco segmentos que determinam a actualidade de um país em força:” um território, habitado por uma população, que fala a sua língua e se ritualiza num “culto inserido numa cultura que lhe é própria”.

O rompimento da avó negra instaura ontologicamente as condições fundadoras de uma nova comunidade, pois troca por outro o culto, acumulando novos costumes e diferente língua, e vivendo numa nova organização do território, marcada pelas “feiras e presídios”, pelas “kitandas” e “discípulas”, como nos confirmará depois em «Donas do outro Tempo».

A nova organização do espaço ocupa um território definido principal­mente pelas operações económicas e funções sociais dos seus ocu­pantes, pelas novas solidariedades que os unem, diferentes das que os enquadravam nas suas comunidades de origem. Laços que darão lugar a uma urbanização típica, a das “eternas moças de muro”, dos “musse­ques”, dos “moleques” – e, mais uma vez, das “discípulas” e das “quitandas”.

As novas solidariedades ocupam um lugar periférico interseccionado entre os valores e padrões coloniais e os valores e padrões tradicionais bantos. Elas residem mesmo, muitas vezes, na periferia das cidades e dos campos (nos “musseques”), numa zona intermédia que é a definição espacial da sua condição transculturalizadora.

O seu relativo isolamento permite a equiparação funcional do lugar em causa ao que terá sido o território de Cabo Verde para os europeus e africanos aí residentes no início da colonização do arquipélago. Para qualquer dos casos, em qualquer dos grupos em contacto, a imaginação do espaço em causa torna-se nova, não propriamente no sentido físico (ainda que o seja para escravos e colonos no caso cabo-verdiano), mas pelas múltiplas relações por fixar, indetermi­nadas, e pela constituição de um segmento intermédio que será a expressão antropológica disso mesmo e que tem, nos pidginscrioulos, ou nas variantes do português, a sua concreção linguística – tanto nas ilhas de Cabo Verde, quanto na referência construída pelos 100 poemas, quanto ainda noutros locais onde se estabeleceram comunidades crioulas (caso da “Senegâmbia”).

A comunidade transculturada em que se filiará o «ego» dos textos não resulta, portanto, do simples apagamento da cultura africana de origem na cultura europeia de chegada – de uma assimilação, para usar termos comuns. Certos costumes gostosamente subsistem da vivência anterior (neste caso banto), enquanto outros não podem ser imputáveis à portuguesa, seja qual for o rótulo de origem. Vejamos alguns casos.

No poema «Avó Negra», para dar um primeiro exemplo, tais costumes estão resumidos à preparação dos “mimos da nossa terra”, que marcam a sobrevivência de traços culturais africanos através da culinária. Em «Donas do outro Tempo» – para dar um segundo exemplo, menos linear – mantém-se a figura da aculturação religiosa (A nova fé vos destes, confiantes), mas, ao nível dos hábitos, a nova prática religiosa apresenta alguns sintomas que, se se acordam a uma religiosidade popular portuguesa, subsistiam também na tradição africana (Há sopros maus no vento! Gritos maus / No rio, na noite, no arvoredo!). Ainda nesse poema, lendo-lhe o quadro dos costumes, das roupas e das actividades económicas da nova comunidade, alguns dos indicados não são imputáveis, também, diretamente ou exclusiva­mente à presença portu­guesa (vejam-se os versos que falam dos panos garridos das mulheres, em «Herança Estética» associados ao jovem suburbano, que são lidos hoje como tipicamente africanos, seja qual for a sua origem remota; os do sentar sobre as esteiras, que é típico da vida em muitas aldeias tradicionais de Angola; os da promoção de negócios e quitandas a cargo das mulheres – actividade característica do segmento “assimilado” segundo a tradição francófona; os da existência de moleques e discípulas, que atravessa a comunidade intermédia e o sector colonial [para o que diz respeito aos “moleques”, não às “discípulas”, que eram mais pobres]).

Teremos, portanto, de aceitar que a decisão da «Avó Negra», de romper com a velha tradição, tem como consequência um processo de desculturação parcial. Tal como vem pelo nosso poeta figurado, nele é abolido o alembamento (“preço da noiva”, traduz Bernardi), a par de algumas práticas religiosas e, como veremos, depois, da cerimónia de iniciação – numa espécie de eco retroactivo.

A referência ao “alembamento” evoca o problema do casamento. Uma das vias mais comuns de miscigenação é a do alargamento do chamado «círculo de casamento», que é inicialmente o círculo no interior do qual os membros de uma ‘raça’ casam sem se misturarem. O êxodo rural para a cidade é um dos movimentos que levam a romper o «círculo de casamento» – e isso parece ainda mais decisivo quando se trata de um país como Angola, em que a ideia de urbanidade passou a ser dominada pela de transculturalidade expansiva, visto ela expandir a dinâmica de uma sociedade centralizadora caracterizada pela mistura de referências culturais.

Nos nossos versos, porém, o alargamento do “círculo” dá-se sem referência a qualquer êxodo – porque não há ainda urbe. Ele não é uma consequência, mas uma causa. Como se confirma através da explicação mítica da fundação de Massangano, renovelada no livro-poema Nossa Senhora da Vitória, é a miscigenação sexual que dá ori­gem mais tarde à «urbe», sancionada e acompanhada pela miscige­nação religiosa. E essa não tem tradição: abole o alembamento e alarga o étnico círculo do casamento.

A figura da avó contextualiza-se, portanto, por extracção de um fundo africano que ela parcialmente rejeita sem que por inteiro adira à outra cultura em contacto, pois logo pela sua aproximação ao novo superestrato cultural estará a modificá-lo.

Isso acontece por decisão própria, não por consequência de um êxodo, ou de qualquer outra acção colectiva. Significa pois que, por um lado, releva de uma cisão voluntária com o seu meio de origem; por outro lado, constrói a imagem tipicamente fundadora da mestiçagem cultural, numa das suas duas componentes fundamentantes: a dos «filhos do país».

Esta mestiçagem cultural constitui o critério determinante na construção do “berço” identificador e da sugestão da sabedoria que se busca repetidamente, pelo que se torna cada vez mais importante para nós. Pois ela permite-nos ilustrar o conceito alternativo de transculturação, quer dizer, de mistura como repersonalização dinâmica e não como despersonalização.

Uma análise do poema «Avó Negra» em pormenor habilita-nos a uma decisão mais justa sobre a despersonalização ou não da fundadora do processo transculturador – e, por isso, da crioulização. Ela permitir-nos-á estabelecer se a iconização da sabedoria procurada se caracteriza pela desqualificação da vida da avó, ou se, pelo contrário, se adjectiva pela requalificação dos horizontes culturais e biográficos do seu tempo e lugar.

As recordações atribuídas à personagem são principalmente relaciona­das com os primeiros ciclos da vida (a “cubata onde nasceste”, os “sonhos do alembamento”). A descrição da figura posterior ao “rompimento” ou cisão retrata-a na velhice, pela referência às consequências de uma vida de trabalho e “esfriamento” (“Tuas mãos, ora tranquilas, / Desfiam as contas gastas / De um rosário já velho”; “Teus olhos perderam o brilho. / E da tua mocidade / Só te ficou a saudade / E um colar de missangas”). Podemos, portanto, pressupor que a assunção da avó como heroína de ideias se deu na passagem para a idade adulta, como conclusão do último estágio da sua aprendizagem do mundo. Trata-se de algo que surge como acrescentamento ao que se tinha antes, aquisição que faz passar a uma nova maturidade.

Se nos lembrarmos de que a decisão é sua, voluntária (feita em nome de “ideias”), isso permite-nos postular que a cisão com o meio de origem não nos é apresentada como despersonalizante pelo texto, contrariando assim a sociologia de Rocher. Pelo contrário torna-se veículo de personalização ao mesmo tempo face à comunidade tradicional e face ao mundo onde vai entrar a “avó negra”. Uma personalização face a um colectivo fortemente condicionador, como o é qualquer colectivo de comunida­des pequenas e tradicionais; uma personalização retratada, portanto, como individualizadora, consequência de uma decisão pessoal e não imposta, a qual se nos molda como resultante de uma percepção do mundo que permite registar afinidades com a do perspectivismo.

Ao nos iniciar na sua filiação por um antepassado que decidiu – perante duas culturas em contacto – mesclar elementos de uma e outra rompendo com o meio de origem, o texto monta pois uma ideia de “aculturação” algo desdramatizada, e que se completa na hipótese “directriz” de Piaget em Biologia e Conhecimento, segundo a qual “os instrumentos dos conhecimentos” funcionam “como os orgãos especializados da regulação no seio das trocas funcionais entre o organismo e o meio”. Socorrendo-nos dos vários prefixos ao nosso dispor, poderíamos distinguir então entre a- e trans- culturação, confor­me falemos na adopção forçada e despersonalizan­te de uma cultura estranha, ou na integração auto-regulada de elementos de várias culturas num novo magma civilizacional. No primeiro caso (aculturação) o «eu» vai de uma cultura para outra, importando dessa outra os elementos que poluem a sua pureza original; no segundo caso (transculturação) o «eu» atravessa as várias culturas apanhando de uma e outra os elementos que julga mais úteis à sua relação com o(s) meio(s). O colonialismo português regista frequentemente os dois tipos no interior das cidades angolanas, mas a autobiografia fala-nos apenas de um, só lhe interessa um, o não-violento. Isso conjuga-se, vê-lo-emos no final, a uma cultura de paz e de amor.

Pela conjugação dos traços conservados e das adaptações concretiza­das, os 100 poemas configuram à leitura atenta o símile de um pro­ces­so pessoal de desenvolvimento, em alternativa ao de uma mera trans­formação desestabili­zadora e desequilibrada. O “processo pessoal de desenvolvimen­to” opera, nesta situação específica, pela redefinição funcional dos conceitos de ori­gem, completada (e eventualmente pro­vocada) pela funcionalização especificadora de traços culturais “no­vos” (aprendidos por mimetismo ou por intelectualização); dessa forma se faz a transposição cultural de instrumentos de aprendizagem e execução de co­nhe­ci­men­tos, quer de origem africana quer de origem europeia, para o novo es­paço urbano. É a essa transposição cultural que chamamos “transculturante”.

 

Para que o processo possa ver-se desta forma temos, porém, que jus­tificar ainda que uma personagem mergulhada no seio de uma tradição tenha liberdade efectiva para, no seu processo de amadurecimento, optar entre a aceitação ou a recusa do que é tradicional.

A possibilidade teórica da existência da capacidade pessoal de optar no seio de uma tradição é concebível no século XX, e a partir de vários autores. Entre eles, Gadamer. Apelando para a distinção entre autoridade e obediência, ele realça o facto de a autoridade e a preservação da tradição se sustentarem sobre um “reconhecimento” que as valida. É pelo processo que alicerça o reconhecimento no sentido de Gadamer que, em situação multicultural, a jovem adquire a possibilidade de mudar os ensinamentos recolhidos, adoptando outros cuja eficácia é mais evidente ou que por qualquer motivo diferente lhe pareçam melhores.

Essa possibilidade pode fundamentar-se também no conceito de raça de alguma antropologia americana – conceito que inclui o de tradição. Baseando-se no trabalho de Coon, Garn e Birdsell, L. C. Dun afirmou, em 1962, que “os autores em questão reconhecem, portanto, que a raça não tem nada de fixo e de imutável, mas é, antes, uma etapa do processo pelo qual as populações humanas se adaptam a condições específicas”. As condições novas, criadas pela chegada de povos europeus a África e pela organização de urbes coloniais, conduziram os europeus e os africanos a adaptarem-se à nova situação, abrindo-se dessa forma a possibilidade de cada um misturar os conceitos, os corpos e os instrumentos que, viessem de onde viessem, prolongavam de uma forma nova e mais eficaz a existência no terreno.

A associação entre filosofia e antropologia para consolidar o conceito em causa vê-se reforçada pela sua conjugação com os dados oriundos da psicologia de Piaget, referentes à relação corpo-meio mediada pelos instrumentos do conhecimento, e fixada em Biologia e Conhecimento, que citei já. Verifiquemos agora um último impedimento a que tudo se articule no poema em causa.

É que «Avó Negra» nos situa univocamente a fundadora da genealogia num quadro africano típico da cultura banto da África Central. Isso podia impugnar o nosso argumento, na medida em que ele se baseia no pressuposto da existência de uma situação multicultural. Mas a pas­sa­gem à crioulidade, o rompimento com as velhas tradições que substitui o “xinguilamento” pela “reza”, implica o conhecimento, pela prota­go­nista, da existência de outra cultura. Ainda que essa cultura não ocu­passe o espaço que imediatamente circunscrevia o quimbo e suas la­vras, ela estava presente o necessário para, pelo menos, fazer rezar.

O simples facto de saber que “a vida é larga e vária”, motivado pelo conhecimento de que havia outra civilização ou cultura, coloca a protagonista do poema num quadro psicológico no mínimo próximo da “multiculturalidade”. O facto complementar de ela se poder oferecer “a nova fé” confirma que o nível atingido pela presença dessa outra cultura é maior do que faria supor o quadro inicial do quimbo.

O símile da crioulização como processo transculturante e transcul­tu­ra­dor sairá reforçado, ainda, pela situação do rompimento na biografia da personagem se a localizarmos numa adolescência em que se cruzam conceitos de mais do que uma cultura. O texto leva-nos assim a conjugar os dados oriundos dos processos de aprendizagem individual aqui representados com aqueles que podemos recolher pelo estudo da formação social de algumas “élites” crioulas – por exemplo os que nos foram fornecidos por Gilberto Freyre.

O afastamento face à tradição não resulta de nenhum mecanismo exte­rno regulador, cognitivo ou social, que se imponha como que “de fora” e a posteriori ao discernimento da personagem (seria o caso, por exemplo, de aculturação pelo sistema de ensino, ou pela proletariza­ção, na passagem ao ambiente urbano, ou pela escravatura em tempos recuados). Os mecanismos reguladores resultam eles próprios, como processos de adaptação e conservação, de um tipo de conhecimento “auto-regulador” que, por isso, não afectará a representação do sentimento de identidade da protagonista – mesmo quando se lhe retratem saudades de uma infância mítica, tão mítica quanto a do próprio poeta.

Por causa do tipo de conhecimento concebido (auto-regulador), cuja autonomia se garante pela atribuição do poder inicial de optar entre uma e outra das culturas em contacto, a formação da genealogia crioula – indo a par da formação do seu fundador – não é (na anto­lo­gia) em si própria despersonalizante ou desintegradora, mas repersona­lizadora e tendencialmente etnicizante, no sentido de uma etnicidade situacional. Isso confirma-se pela estruturação e percepção inicial do espaço apresentada como própria do sujeito-locutor, que é a de um “espaço estrutural, afectivo, ecológico e descontínuo”, dado como próprio das sociedades tradicionais.

Tal facto poderá ficar a dever-se a uma realidade vivida pelo autor – se acreditarmos nas diferenças entre a colonização portuguesa e as ou­tras, para que apontaram Gilberto Freyre e, mais recentemente, Carlos Pacheco e José Carlos Venâncio. Isso articular-se-ia às opções “luso-tropicalistas” do ensaísta Mário António Fernandes de Oliveira, ampliando a figura do locutor para a do sujeito público.

Sabemos, pelos seus estudos, que não é obrigatório pensar de acordo com a sociologia de Rocher, de Dozon, e de outros, que está natural­mente fundada nas abstracções por eles feitas a partir das colonizações francesa e inglesa (ou belga) em África, que foram diferentes da por­tuguesa em vários aspetos estruturais e estruturantes. Por isso concebem somente processos de assimilação despersonalizantes, concretizados através da proletarização e do ensino laico, ou seja, processos típicos das colonizações forçadas do século XX. Isso é visível em passagens como esta, de um outro autor, Houis, reportando-se aos problemas linguísticos na África negra: “com uma lógica im­placável, as políticas de ensino inglesa e francesa instauraram um bilinguismo cuja origem e manifestação estão principalmente associa­das à escolarização”. A sociologia de Rocher conhece apenas estas abstracções, mas o processo de “crioulização” (de que o bilinguismo literário é apenas um dos momentos, momento que já não faz parte da definição do locutor) naturalmente se efectuaria também por outras vias para além da via da escolaridade e da via da proletarização, como seja a do comércio entre partes iguais feito pelos pombeiros com os sobas, e a que gera a própria definição ambígua da palavra pombeiro.

O que faz a lírica dos 100 poemas é concretizar, ou configurar, ou imaginar algumas dessas outras vias, de modo a que à definição de “crioulo” não falte nunca a de uma identidade própria e autónoma, no sentido de auto-regulada, que mais adiante permitirá ao locutor descobrir-lhe novas funções em contextos extra-africanos, ou na procura de formas literárias diferenciadas e exclusivas. A visão do processo transculturante em causa encontra, pois, razão de ser no sistema de significação que a totalidade da lírica autobiográfica assinada por M. António acabará por constituir.

 

Generalização

O retrato através do qual o locutor criouliza a «Avó Negra» confirma-se na sua generalização para as «Donas do outro Tempo», que se apresentam já como fazendo parte de um extracto social, cultural e económico diferente do tradicional, denominado “gentio”, e do dos colonos recentes, ainda não “integrado no mundo africano”.

A ocorrência da palavra gentio é muito significativa neste contexto. Dadas as conotações que manteve com o termo “pagão”, ela não implica necessariamente uma oposição sabedoria / ignorância que leve a pensar que “o outro é em primeiro lugar aquele que não sabe, que não pode saber”. Uma tal afirmação coloca-nos face a uma dupla negação do outro no interior da esfera do saber: na primeira nega-se que ele saiba; na segunda que possa saber. A palavra pagão – no uso cristão que determinou o seu significado em África – não nega necessariamente o saber ao outro, não lhe reconhece uma parte desse saber (ele está corrompido e decaído) que é dada pela consciência do significado e pelo conhecimento da história de vida e das afirmações atribuídas a Cristo. E muito menos nega que o outro possa saber, pois o propósito evangelizador (cuja consequência cultural o poema «Avó Negra» realça) age esperançado na crença, católica, universal, na capacidade de o “outro”, muito precisamente, reconhecer o “erro” em que vive. Age guiado pela fé na possibilidade de o outro “saber”.

Embora não implique necessariamente a oposição redutora que citámos acima, a integração textual da palavra gentio não deixa de atribuir, à personagem colectiva que são as “«Donas do outro Tempo»“, uma visão distanciada da tradição africana e do agregado humano que lhe corresponde. Tal visão, ao englobar todos os outros num substantivo abstracto, indiferencia cada africano “tradicional” num colectivo despersonalizado, denunciando a perspetiva que a sociologia anti-colonial achava própria apenas de europeus.

Para continuarmos a sustentar a generalização, da «Avó Negra» para as “Donas do outro Tempo”, é preciso no entanto verificarmos se, no primeiro poema da antologia, o extracto banto surge também focalizado com distância pela anciã.

A única figura que, do “gentio”, se individualizara nesse poema, fora a do feiticeiro, nomeado pelo termo quimbundo (“quimbanda”). O feiticeiro (englobando nessa designação genérica profissões que se especificam) desempenha na sociedade africana tradicional um papel duplo: ele viabiliza o mal ou o bem; isola-se ou é marginalizado. No entanto, constitui uma referência fundamental e reguladora da vida colectiva. Por isso é também fonte de segurança, ao mesmo tempo que uma personagem atemorizadora.

Poderíamos portanto pensar que ele surgia no texto por ser a figura mais marcante para o autor, o protagonista e o meio que se procura re­tratar. Mas a personagem do quimbanda, associada como está à menti­ra, exerce aqui duas funções: serve para o locutor construir o seu dis­tanciamento face a um mundo “puro” – bloqueando assim qualquer leitura negritudinista que os últimos versos podiam sugerir – e serve para localizar a opção religiosa da avó no cerne da cisão entre ela e o meio, opção já sublinhada pela rima opositiva entre xinguilar e rezar, tão ao gosto da sociedade crioula do século XIX angolano, dada a significativa conjugação do quimbundo com o português.

Podemos, por isso, concluir que a emergência de uma figura indivi­dua­lizada associável à comunidade tradicional se deve à economia interna de significação do poema, taxando simulta­nea­mente a personagem destacada com distância face ao autor e à protagonista. Pelo que ela não desmente a hipótese de o novo segmento, crioulo, focalizar uma das etnias de origem de forma abstracta e global, como se sugere pela referência genérica a costumes próprios do «gentio», com o qual a «heroína de ideias» rompera.

 

A localização da troca religiosa no cerne do percurso divergente da avó segue de acordo com as interpretações de Gilberto Freyre. Segundo elas teriam resultado, da colonização portuguesa, “no Brasil e nas Áfricas, sociedades cristocêntricas nas suas predominâncias de comportamento, embora de modo algum de todo portuguesas na composição étnica das suas populações ou sequer das suas élites ou na consubstanciação das suas culturas, de formas iniciais ou básicas abertas a substâncias diferentes das europeias”.

Por outro lado, a opção religiosa, colocada no cerne da viragem misci­genante da avó permite iconizar através dela uma sabedoria mais completa que a simplesmente prática, pois abarca a praxis mas também explica os mistérios da morte, como sublinham vários versos de «A Morte Inexplicável». Ao centrar a transculturação na adop­ção de uma fé nova, e ao relacionar a sabedoria da personagem que se transculturou com a morte, o texto propõe-nos para ela uma forma de conhecimento não só diferenciada face às fontes mas acima de tudo holística, jogando com noções de religião como as que situam a sua experiência numa proximidade com o mistério da passagem do outro mundo a este e deste a outro. Visto que a mixagem crioula não se recorta como um corpo de conhecimentos meramente práticos, extraídos da experiência imediata, mas como um conjunto cultural e cultual de conhecimentos próprios, ela permitirá retraçar o segmento crioulo, pelo menos, como etnicamente esboçado.

No sistema de significação da obra há ainda uma outra razão para, logo em «Avó Negra», se colocar a opção religiosa no cerne da cisão com o meio tradicional.

Disse atrás que se cultivava aqui a imitação de um processo transculturante visto como resultado de aquisições culturais auto-re­gu­ladas e personalizadas. Por isso se dá o rompimento na adoles­cência, que é a idade em que mais facilmente mudamos de estatuto. Invoquei igualmente o conceito gadameriano de licitação das tradições por um reconhecimento que as avalia e valida. Ora, tal reconhecimento, se, numa sociedade de religião escrita, só em último grau de cisão porá em causa ditames religiosos, numa sociedade de tradição oral – e especificamente nas religiões africanas – não impugna necessariamente os mitos e a palavra fundadores ou canónicos quando se desvia deles, porque eles são de uma extrema flexibilidade, flexibilidade que se generaliza para as “crenças e práticas religiosas, tornando-as abertas a mudanças internas bem como a importações externas”.

A miscigenação centrada no aspecto religioso – numa opção fundada, segundo o texto, no saber que “a vida é larga e vária / E vários e largos os caminhos possíveis” – reforça, portanto, a sugestão do carácter pessoal, harmonizado e construtivo do processo de transcul­turação concretizado pela avó.

A leitura que fazemos parece esbarrar apenas num obstáculo, que tem a ver com uma sensação de queda acompanhando a passagem e com a afirmação do cristianismo. Ao reler «Avó Negra» e «Donas do outro Tempo» podemos evitar esses dois equívocos que fundam o nosso obstáculo. O primeiro é o que torna equivalentes a passagem para outra religião e o sentimento de perda que parece acompanhá-la; o segundo levar-nos-ia a pensar que a religião praticada pelas personagens fundadoras era coincidente com o cristianismo europeu, implicando a sua prática a eliminação dos cultos ancestrais.

Em «Avó Negra» parece a composição sugerir explicitamente uma perda na passagem do xinguilamento à reza. Essa perda, que uma leitura negritudinista podia ser tentada a associar a uma revalorização de crenças tradicionais (contrariada na referência às “tentadoras mentiras do quimbanda”), essa queda é, como veremos adiante, a perda da infância, que se repetirá também dolorosamente nos auto-retratos dos 100 poemas. Não deriva diretamente das opções de fé.

Quanto ao segundo equívoco, a religião praticada pelas “donas do tempo antigo” não é – como supõe Dozon para o quimbanguismo – fundada no “sacrifício dos valores tradicionais”. Se o xinguilar desaparece com as “algazarras dos óbitos”, há práticas que se mantêm – e que se acordam ao cristianismo popular português e brasileiro. A “santa milagrosa” é por isso tão “tosca” na escultura como na crença, “tornada cúmplice de pragas”, ou “carregada de ofertas”. E a par das rezas na capela subsistiam ouvidos sábios atentos aos “sopros maus no vento! Gritos maus / No rio, na noite, no arvoredo!”.

A mistura de práticas religiosas de origem diversa (e talvez não muito contraditória) conjuga-se à ideia expendida por Jorge Dias sobre a “área cultural luso-brasileira”. Segundo o autor, a tolerância religiosa, a par da “crença alegre” e da “ausência de misticismo exaltado”, seriam características da “área”. Tal tolerância, juntamente com a ausência de uma disciplina estrita que o misticismo exalta, licita e propaga, permite que a mistura religiosa possa emergir em regime de relativa liberdade, originando miscigenações idênticas à sugerida nestes versos.

Num livro-poema disperso que já várias vezes citei (Nossa Senhora da Vitória), cuja assinatura e cuja motivação fazem a ancoragem do locutor ao sujeito público antologiador dos 100 poemas, é-nos retratado o mesmo tipo de religiosidade popular, a par de uma figura fundadora idêntica, estruturada abstractamente mas concretizada num retrato singular – por uma característica já descrita para a lírica assinada por M. António, e que se prende ao seu intenso fulgor descritivo, bem como à regra da ocularidade.

Nesse livro, há uma mulher africana que livremente se entrega e ama um forasteiro. Ela é primeiro equiparada à Virgem, e depois reconhece na Virgem, de acordo com a sua cultura religiosa, um espírito poderoso (“Nzambi ionene”, literalmente “Deus grande”). Assim fica narrado o início de um percurso de miscigenação que – tal como o da «Avó Negra» ou o das «Donas do outro Tempo» – não surge por mutilação cultural, explicando-se por um processo pessoal que, por aquisições cognitivas, por auto-regulações garantidas na reinterpretação dos elementos em jogo, pelo estabelecimento de laços afectivos novos, vai alterando as concepções de origem.

Tal como a avó negra e a protagonista de Nossa Senhora da Vitória se destacam do “fundo” representado colectivamente pela tradição, e metonimicamente pelo feiticeiro, assim também se procura diferenciar o extracto constituído pelas “donas do tempo antigo”. Isso é conseguido com maior nitidez através de processos identificadores que, também eles, remetem as origens étnicas para uma alteridade marcada pelas diferenças religiosas e sociais em face das comunidades menos miscigenadas. Ao mesmo tempo que se personaliza a crioulidade, atribuindo-lhe uma sabedoria própria que passa pelo ser de cada um(a), pelo “íntimo” afectivo e religado, oposto à exterioridade do “fundo” original, que acede à visão atribuída às antepassadas como extático e colectivizado, como se elas dessem razão a Durkheim, quando ele etnocentricamente sugeria que a personalidade não existia nos povos “primitivos”.

A afirmação pelo íntimo é fundamental na passagem de uma comuni­dade onde os valores se pretendem colectivos (como a que propõem o cânone literário neo-realista e o negritudinista) para outra que se irá particularizar pela situação específica entre as representações da Europa e as da África. O intimismo permite, ainda hoje, fazer a diferença da crioulidade face à negritude ou ao europeísmo, mesmo nos países antilhanos (lembro-me de Glissant e do manifesto da crioulidade, de Patrick Chamoiseaux, Jean Bernabé e Rafael Confiant). Essa passagem pressupõe, nas narrativas, a intermediação de alguém (o protagonista-herói) que se individualiza diferenciando-se perante a sua comunidade de origem para alcançar e impor novos valores que a transformarão, a ela ou a um segmento dela. É o caso, superior, da narrativa que nos conta a pregação de Jesus Cristo sobre a terra.

Aqui, o papel individualizador e renovador foi confiado à “avó negra”.

 

Natureza social do segmento intermédio criado pela avó negra

O extracto diferenciado que a avó negra primeiramente representa no meio familiar próximo é, também, etnicamente concebido. No que nega as imagens de uma sociedade periférica e desequi­librada propagadas por sociólogos francófonos.

Não se trata aqui apenas de uma espécie de retrato a preto e branco, de uma fotografia de contraste, de um tipo de caracteriza­ção que nos remeteria para a ideia de “evoluído” tal como delineada por Guy Rocher, ou referida por Dozon e divulgada por Kabengele Munanga. O termo “evoluído” (tal como está aplicado nesses textos), em confronto com “assimilado” (mais comum nos estudos de língua portuguesa), aponta desde logo uma referência colonial diferente em que não podemos deixar de reparar. A caracterização metonímica da geração fundadora da crioulidade aproxima-se, nestes versos, mais do retrato diferenciado que para a comunidade “luso-tropical” esboça Gilberto Freyre, falando num “terceiro tipo de cultura ou civilização”, caracterizada pela “participação” de “povos de cor e das culturas não-europeias”.

Ao anotar estas proximidades quero sublinhar que aproximo retratos, ou resultados. Estou ciente de que a fundamentação de Gilberto Freyre não pode ser integralmente comparada à que tentássemos extrair aos 100 poemas, por razões que explicitarei no princípio do próximo capítulo. Mas parece-me evidente que não podemos apenas explicar uma “comunidade luso-tropical” a partir da genética, da socialização e da espiritualidade caracteristicamente coloniais, europeias ou portuguesas, em choque com as africanas – e isso acontece porque houve canais integradores abertos entre os dois sistemas prévios (a escravocracia cristã e a escravocracia animista). Como vimos ao falar em religião, há traços culturais dos povos bantos que são decisivos para que a miscigenação ocorra da forma como o texto a caracteriza. E o texto, como veremos também nesse capítulo, chama a atenção do leitor para a componente africana tradicional, de entre as duas de que teria saído a terceira vertente, a que se diz crioula, intermédia ou miscigenada.

Em consequência das diferenças entre as sociedades coloniais (não as colonizadoras) de referência, temos um significado social unívoco para o “evoluído” (que se considera superior aos outros por se ter descul­tu­ra­do ou aculturado), e um significado social ambíguo para o “as­si­mi­lado” (que pode caracterizar negativa ou positivamente a assimilação ou aculturação, conforme as suas opções pessoais e a convergência dos seus interesses com os dos diversos grupos em contacto).

O tipo “evoluído” define-se, na perspetiva de Rocher, Dozon e outros, em função da dicotomia estrita colonizado / colonizador, aculturando-se uma fracção da sociedade colonizada pelas relações de trabalho e pelo acesso ao sistema de ensino laico dos europeus, como acima notei. Ora, no retrato da «Avó Negra» – e também no das donas do tempo antigo – não há qualquer referência à aprendizagem no sistema de instrução europeu. Nem à organização, do segmento social em que se integram, em função de qualquer “lógica da escrita”, tal como exposta por Goody, e que inevitavelmente irá dominar os “evoluídos” enquanto funcionários letrados da estrutura colonial. A par disso, as “donas” são retratadas como burguesas, “senhoras”, algo que não parece previsto na Sociologia Geral de Rocher, nem no estudo de Dozon, onde os “evoluídos” são burocratas coloniais, ou neo-coloniais, antes e não depois de serem comerciantes ou iniciados nas artes do comércio.

No caso da genealogia exposta como a que “ancestraliza” a imagem do sujeito-locutor no texto (a das “donas do tempo antigo”), ela constitui, para além de um extracto burguês que tira proveito do seu carácter intermédio para só mais tarde condicionar ou aproveitar o funcionalismo público, “um agregado biologicamente unido por laços consanguíneos”, que permitem diferenciá-lo pela contínua mestiça­gem do sangue num e noutro sentido; complementarmente, retrata-se um grupo com “uma história própria”, cujo resumo poético se faz em «Donas do outro Tempo» e cuja rememoração passa por cerimónias públicas como a do “15 de Agosto”, com seu empalidecimento lamentado pelo sujeito-locutor, que também assim religa a sua imagem à da comunidade ancestral. O extracto crioulo possui ainda o requisito de “uma língua comum” (crioulizando lentamente o português, afastando-se da norma de colonização); uma “visão do mundo” (identificada à sabedoria das personagens, que o locutor procura obter, e especificada para a “área cultural luso-brasileira” por Jorge Dias); uma “sensibilidade axiológica e um estilo peculiares”, supostamente comuns também. Trata-se, em conclusão, de um grupo que preenche as condições necessárias para que o leitor informado possa atribuir-lhe o estatuto de “etnia”, ou de “etnicizante”, não de “uma sociedade periférica, desequilibrada e inibida”.

 

Mãe e Pai

 

A função desculturadora da mãe

 

A figura materna define-se, ao longo dos poemas da antologia, por duas funções: uma referente ao seu papel na estrutura da “intriga”; ou­tra ligada ao seu papel na identificação do sujeito que o texto vai construindo.

Estas duas funções encontram-se de tal forma implicadas que não é possível estudarmo-las em separado. Mas elas adquirem uma importância maior ainda por se ligarem a uma terceira função, a qual se relaciona com a continuidade da presença materna ao longo do trecho de vida referenciado nos 100 poemas (ela é a personagem não-autoral mais presente na diegese).

Com efeito, se as três condições básicas da identidade não problemá­tica (enquanto “mesmidade” e ipseidade) são, segundo afiança Ricoeur em Soi-même comme un autre, a permanência, a similaridade (defi­nida pela constância de carácter) e a presença ininterrupta], a mãe é – a par do locutor – a única personagem que preenche essas três condi­ções: não morre, é sempre igual a si, e, ao longo da antologia, a sua figura viva é retomada em diversos poemas como se nunca tivesse deixado de estar no mundo em que o sujeito aprende (ainda quando ignora facetas da vida do filho). Ela é mesmo uma personagem mais coerente que a do locutor, que sofrerá uma cisão extrema no seu carácter. É-o devido à natureza estática da sua definição, mas também pelo papel de referência contrastante que terá ao longo da obra e em face do su­jei­to. Por isso ela vai ser fundamental ao processo de identificação dele: é sempre o outro que permanecerá para que o «eu» se lhe compare e oponha. É sempre aquele outro para quem “estranhas foram / As coisas que no mundo me prenderam / A mim próprio devolvendo-me”.

Se a «Avó Negra» ou as «Donas do outro Tempo» figuram uma sabedoria personalizada, etnicizando-se no duplo distanciamento pe­rante o meio de origem e os modelos europeus, e constituindo-se em valor que o percurso narrativo do sujeito buscará, a passagem do testemunho para as gerações seguintes não se efectuará, pelo menos integralmente – abalando o programa narrativo inicial. Marcando a sucessão geracional com o ferrete da descontinuidade, o texto repete nessa sucessão o facto que lhe dera início: um rompimento com o passado. Só que, nesta segunda cisão com o meio, a genealogia corre o risco de se despersonalizar – símbolo que é de uma cisão no que já de outra cisão resultara.

Personificando a cisão na cisão (mas não a cisão da cisão), a figura materna é evocada como agente desculturador em relação à componente africana e à representada pelas avós. Isso figura-se principalmente através da fascinação pelos graus de ensino, que ela procura transmitir ao sujeito: “Ai a voz de minha mãe: / - Meu filho vai ser doutor...”. Trata-se de uma fascinação que passa pela ideia de posse de um título de prestígio, deslocando o cerne da cisão da esfera religiosa para o campo das ambições mundanas que a laicizam.

Tendendo a conduzir o sujeito na direcção de uma educação formal e sistematizada, a mãe cumpre um papel enculturador em face da socie­dade que promove tal ensino, determinando decisivamente a aprendiza­gem e a personalidade do locutor. Concretiza-se dessa forma a sua figura modeladora, explicitamente caracterizada assim na «Carta do Afogado»: “Para que ainda o modele [ao corpo] / Em beleza e sossego, o teu amor. / (Nunca aceitaste o ser com que saí / Do escuro do teu ventre? Pobre mulher / Mas tão rica de mim!)”.

A imagem da modelação do filho pela mãe, intimamente associada ao “ser com que saí / Do escuro do teu ventre”, retoma-se no final do poema, dando uma dimensão trágica ao projecto enculturador: “E era quase o milagre. Era quase o milagre: / Erguer-se puro e vivo, com as linhas / Modeladas pelos teus dedos, o teu filho querido. / Não o queiras, porém. Tu não o queiras: / Só assim, corpo morto, será teu”.

A oposição «vida / morte» é fundamental em todo o poema que temos agora em mente. À morte se associa a modelação do corpo do filho pela mãe, ficando a vida no outro lado. O outro lado é o da escrita, dos “ruídos de dactilografia”, sustentados pelos “sonhos puros, vivos”, através dos quais o poeta se afirma como homem no meio em que surge. Logo no título, aliás, emergia a imagem da escrita pela figura da carta, a par da figura da morte, imaginariamente referida pelo adjectivo «afogado». A carta (escrita) do afogado (morto) é a derradeira mensagem da sua vida.

Se a morte se associa à pertença ao programa narrativo idealizado pela mãe (“Só assim, corpo morto, será teu”), e a vida aos “sonhos” que se transmutam em poemas pelos quais a pessoa do locutor se afirma, fica na dualidade estruturante do poema inscrita ainda uma outra que já se estabelecera em composições anteriores, como adiante veremos: a dualidade «desejo / imposição», que integra o sema da autenticidade no pólo do desejo. Daí que a morte figure a possibilidade de pertença à mãe, pois com ela deixa de haver o choque entre o desejo (que vive) e a ordem exterior, estranha, que ela quer incutir.

A concepção de morte que o poema funcionaliza é, no entanto, mais uma característica a distanciá-lo das tradições bantos, para as quais a vida post-mortem não implica, nem o fim dos desejos, nem o fim da ordem, que é ao mesmo tempo a visível e a invisível, a dos mortos e a dos vivos. Esse dado poderá conectar-se a outro que nos é também trazido pela antologia e que passo a considerar.

Como foi visto pela sociologia e pela antropologia, e também no texto, o ensino substitui a iniciação tradicional, ou aquela feita ao ritmo das necessidades, dos acasos e dos desígnios, e que teria sido a dos antepassados mais próximos, como a avó negra.

O rumo destinado pela mãe ao menino reconhece o estatuto formal da educação, levando-a a actuar em conformidade com um sistema familiar de controlo imperativo que, por definição, não respeita as características identificadoras do “regulado”. A figura da mãe serve para propor assim um segundo programa narrativo, em que o sujeito adquire saber pelo sistema oposto ao da sabedoria que elege como valor, iconizada na avó. O papel da mãe é, portanto, o de obstaculizar a concretização de um programa narrativo inicial, delineado e desejado pelo protagonista.

Dada a particular situação “colonial” onde se enquadra a família, tal atitude pode perspetivar-se como derivando de uma intenção mimética por parte da mãe, o que acentua o seu papel desculturador perante a crioulização protagonizada antes, e onde ela foi (ou terá sido) educada. Ela, ou as “vossas filhas de hoje”, através das quais o texto – que generalizara da avó para as “donas do tempo antigo” – generaliza da mãe do protagonista para as mulheres de “segunda geração” da crioulidade. De tal modo se funcionaliza a figura da mãe enquanto metonímia do grupo etário e social em que se integra, mais próximo já do europeu, tentando por isso aceder aos meios formais de educação seguidos pelos filhos dos colonos, ainda que a custo de uma desqualificação da sua vida quotidiana, e de uma potencial “deportação da (...) criatividade” do sujeito locutor.

A atitude mimética da mãe tem uma dupla valência: por um lado prolonga a forma de aprendizagem do “outro” realizada pelas antepassadas, que não acederam à escola e, portanto, aprenderam por imitação; por outro lado aponta ao filho o rumo de outro tipo de aprendizagem (o formal). Esse tipo que, a ser seguido, poderá transformar a crioulidade (atingida por um processo de mimetização auto-regulado) em aculturação despersonaliza­dora (aprendizagem técnica de traços civilizacionais alheios), mas vantajosa, em face de uma situação colonial em que a nomeação pública dos lugares é detida por um segmento escolarizado e estrangeiro (v. «Rua da Maianga»).

A mudança de rumo que a mãe quer impor é, simultaneamente, uma mudança na natureza do programa narrativo inicial, não somente uma mudança no interior ou “conteúdo” do programa. É que, se em ambos os casos o programa envolve a aquisição de saberes, no primeiro podemos falar em um programa que visa o saber pelo saber, enquanto no segundo se deseja o saber pelo que ele poderá trazer a quem o detenha. Um programa narrativo cognitivo transformar-se-ia assim num programa narrativo pragmático, perturbando o desempenho e a competência do sujeito relativamente ao que para si próprio estabelecera, à partida, como meta.

As proibições da infância, protagonizadas pela figura materna e citadas no texto, afastariam o locutor, naquela que seria a sua fase de formação, da vida mais livre dos outros meninos do mesmo meio ou da mesma origem. Nessa outra vida, a nomeação do espaço por oralidade suplanta a que foi institucionalizada pela escrita e, cumulativamente, aprende-se por mimetização. Ou seja, o “grupo de brinquedo”, como o caracteriza o ensaísta Mário António Fernandes de Oliveira, apresenta várias características que permitiriam instituí-lo enquanto elo no prolongamento da crioulidade do tipo ancestral, e no concernente ao processo de aprendizagem. É por isso contra tal grupo que a proibição materna incidirá.

Ao colocar a figura da mãe na função de oponente ao seu desejo de socialização através dos amigos, o texto confirma também a imagem dela como modelizadora ou mimetizadora da figura correspondente na família da “classe média, estreitamente regulada pelos pais”. Mas, acima de tudo, confirma a mãe no papel de “anti-sujeito”, que obstaculiza o alcance da competência positiva e da realização bem sucedida do herói no programa narrativo que ele se propõe percorrer (lembremos que, embora condicionada por circunstâncias explicativas, é uma escolha sua a da avó como enculturadora).

No caso vertente, a mimetização da classe média equivale a um re­for­ço da assimilação cultural. Ao longo do poema «Fuga para a Infância», de 1951, a reiterada oposição entre o desejo do filho e o controlo pela mãe desenvolve paralelisticamente a oposição entre uma iniciação e infância típicas do meio e aquela perfilhada por um projecto des­cul­turador. Desse modo fica igualmente marcada a função obstaculizante da mãe (a acentuar a narratividade tendencial da antologia), e salvaguardada uma das características do processo miscigenador tal como aqui retratado: a preservação do poder inicial do sujeito de optar entre duas culturas (liberdade que a mãe pretende abolir).

A figura materna, cujo recorte psicológico está marcado pela descontinuidade face à geração anterior, confirma-se portanto como desculturadora na formação do sujeito, corporizando na genealogia a possibilidade de deslocação da “etnia crioula” rumo a um segmento social mais europeizado.

Trata-se, pois, de uma pessoa que força o protagonista à escolha entre a sua origem de “assimilado” e a possibilidade de se converter num “evoluído”. Aquela escolha que – afastando-o do programa narrativo inicial (adquirir a sabedoria da avó) – o levaria a mudar de carácter, como de facto fará mais tarde, por pressão social, ao passar à identidade adulta (quando tem que arranjar emprego e casa, para constituir uma família).

A função desculturadora da mãe, pelo “realismo” de conduta que a institui, equivale a um papel enculturador do sujeito que escreve – enculturador, claro está, em face do tipo de sociedade que os domina. Representando o pólo oposto ao desejo – como confirmaremos de seguida – ela concretiza a função de interdição, de que fala o vocabulário de Propp. A personagem da mãe cumpre, portanto, a função de fazer optar o protagonista, dando-nos a oportunidade de vermos o locutor, mais uma vez, miscigenar as hipóteses (neste caso em confronto, noutros em convívio) como forma privilegiada de permitir o avanço da “narrativa”, ou seja, de desbloquear o processo de formação da identidade.

O papel da figuração da mãe, a partir do momento em que ela surge como obstáculo, é também o de sinalizar a possibilidade do que mais tarde – por pressão social – irá inevitavelmente acontecer: a perda (cremos que provisória) de identidade, derivada de uma “divisão crónica, de modo que um grupo de interesses oblitera os outros durante um certo período” – podendo esse grupo de interesses ser o de outros que não o do «eu».

A escolha destinada pelo texto ao sujeito é a de ele, embora estudando e acabando por aceitar o desígnio materno (em vez de se “rebelar” ou “evadir”), ao mesmo tempo manter o grupo “de brinquedo” – que era o da sociedade urbana de Luanda – como grupo de pertença, socializando-se também através dele à semelhança dos filhos proletá­rios. O grupo de pertença integrava-se no que acima chamei a “etnia crioula” – onde incluí a avó negra – que por sua vez se manterá como o grupo de referência ao qual o texto repetidamente vai, por isso, regressar.

Esta escolha é duplamente significativa.

Por um lado, ela permite-nos atribuir ao locutor uma forma de com­promisso considerada já própria da “identidade adulta” que, para man­ter a sua integridade, se conforma com os desejos e conveniências das outras pessoas. Ela reconhece, também, a importância funcional da Escola na apropriação de um saber alheio, dada a sua acei­tação do sistema, bem como a prossecução nos estudos – suposta nor­mal por não conter o texto referências a qualquer “fuga” ao sistema escolar.

Esta prossecução nos estudos determinará, no entanto, uma forma de evolução que já não se assemelha à da avó, porque necessariamente a aprendizagem escolar influirá sobre o rumo do desenvolvimento da personalidade, e sob várias formas, das quais nos interessam algumas.

Em primeiro lugar pela determinante influência da escrita sobre o desenvolvimento, comparada por Vigotskij à importância do advento da fala no desenvolvimento psico-intelectivo. Vigotskij dirá mais adiante, a pp. 39 da obra que estou a citar: “o processo de começar a escrever é bem diferente. Algumas pesquisas demonstraram que este processo activa uma fase de desenvolvimento dos processos psico-intelectivos de todo nova e muito complexa e que o advento de tais processos comporta uma mudança radical das características gerais psico-intelectivas da criança; tal como o começar a falar marca um estádio fundamental na passagem da infância à primeira adolescência”. Na mesma página o autor se reporta a pesquisas que determinaram a relação, direta, entre as mudanças provocadas pela aprendizagem e o desenvolvimento do sistema nervoso central. Quando as mudanças atingem um tal nível, é inevitável que se integrem naquele tipo de factos psicológicos que, por serem condicionantes de toda a actividade do sujeito, marcam a sua personalidade e limitam a criatividade. Não poderemos, pois, deixar de “importar” aqui os dados trazidos pelo estudo psicológico da aprendizagem da escrita.

Ela permitirá ao sujeito construir uma duplicação, baseada na capacidade que o texto escrito e literário tem de funcionar, fora do contexto em que foi produzido, como se ele não deixasse de se ler em função desse contexto. É a característica básica da arte literária para a qual chama Lotman a atenção. Ela está surpreendentemente bem articulada com a intriga autobiográfica, pois é por uma poética duplicação que o sujeito mais tarde, após a cisão na passagem à maturidade, vai recuperar e refuncionalizar uma identidade inicial.

Em segundo lugar – e amplamente relacionado com o facto que acabo de expor – a preparação de textos escritos, pela qual obrigatoria­mente passa o ensino em causa, torna-se fundamental para a memória voluntária e a reevocação. Como diz G. S. Kostjuk, os “métodos para a elaboração do material verbal, e em particular dos textos escritos, desenvolvidos sob a orientação do professor, são sucessivamente gene­ralizados, com a passagem a um novo estádio de actividade escolar, e tornam-se para o aluno um instrumento para o pensamento, a memória voluntária e a reevocação”. Isso será determinante para compreen­dermos a função que é atribuída à poesia no processo formador do sujeito dos 100 poemas, como veremos adiante.

O segundo significado da escolha em causa deriva de ser ela fundada (pelo menos parcialmente) no desejo que – opondo-se à desculturante “proibição da infância” – se legitima enquanto critério de autenticidade, reforçando a componente lírica dos textos e preparando já o leitor para a ampliação trágica do problema que se propõe na «Carta do Afogado». A noção de autenticidade fica sugerida pela vivência dada como espontânea, através de semas que remetem para a “nudez”, oposta à “prisão”, em poemas que na antologia aparecem um a seguir ao outro (no mesmo ano), estruturados sobre motivos iguais.

Dessa forma se traça um quadro em que o sujeito-locutor readquire parcialmente o controlo da sua identidade, embora seguindo a im­pe­ra­tiva orientação materna. O choque entre o “regulado” e a mãe gera assim um processo também ele misto de socialização, aprendizagem e identificação – recuperando a característica básica do conceito cultural de crioulidade: a mistura a partir de uma cisão, envolvida pela duplici­dade cultural, que divide o sujeito afectando o desenvolvimento cogni­tivo à Escola e à vida prática, e o desenvolvimento afectivo e moral apenas à vivência nos grupos de pertença e referência.

A função desculturadora – ou enculturadora por desculturação – é poeticamente reforçada por aquilo a que, num sentido físico, podíamos chamar a diminuição da visibilidade da mãe face à avó. Com efeito, depois de ler os 100 poemas, qualquer leitor comporá com mais facilidade um retrato físico da avó do que um retrato físico da mãe. O retrato materno é sobretudo psicológico, se não meramente “fun­cional”: ele cumpre o papel de encaminhar o sujeito na direcção oposta à que o locutor valoriza. Se a visibilidade é, como disse, uma condição na escolha dos identificadores, conforme ela for diminuindo assim irá diminuindo o papel identificador do motivo em causa. Devíamos, aliás, para sermos aqui mais precisos, imitar o crítico francês Beaujour e falar em «ocularidade», em vez de visibilidade. Porque a mãe está sempre presente, mas não se visualiza, a sua caracterização não contempla os olhos do leitor, apenas os seus sentimentos e pensamentos (ou a ausência deles) o perturbam. Concordantemente, a mãe contacta com o filho pela voz, que se transcreve (“Ai a voz de minha mãe”), ou pelo tacto («Carta do Afogado»), e pode olhá-lo, mas ele nunca a retrata como se a visse, o que faz com o pai e a avó, descrevendo-lhes o rosto e a indumentária, ou as “mãos calosas da enxada”, “mãos de dedos encarquilhados”.

A relação entre ocularidade e identificador é verificável por outra via, se compararmos o estudo que fizemos da presença textual da avó e o estudo que fizemos da presença textual da mãe. Aquela metonimiza um modelo que permanece para além da sua morte; esta figura outro que se rejeita mesmo quando o poeta concretizou a inserção no sistema de ensino (na medida em que o seu grupo de pertença continua exterior à Escola). Aquela, mais visível, visualizada mesmo após o desapare­cimento físico, é o identificador positivo do sujeito; esta, mais presente mas menos visível, é o desidentificador – papel a que logo a remetia a função metonímica por ela desempenhada.

Entre a avó e a mãe há ainda uma diferença de cor, visto que a pri­meira é negra e a segunda mestiça. Isso quer dizer que, pelo menos um dos avós do sujeito no qual estão centralizadas as filiações, era branco (a narração típica do início da mestiçagem na lírica assinada por M. António é construída a partir da união de uma mulher negra a um homem branco). Sendo-o, constrói o texto um casal fundador típico do género de mestiçagem que se deu nos países colonizados por Portugal ao Sul do Equador.

O facto de o avô ser branco vai permitir-nos explicar, no princípio do próximo capítulo, porque é que ele não é referido. Se, para além dele, há um avô negro que não foi representado, isso acontece porque o par fundador da mestiçagem está já concebido: a sua duplicação não teria nenhum interesse para a interpretação da rede de significados da obra. Com efeito, se o locutor é retratado enquanto mestiço, à composi­ção da sua genealogia basta figurar a componente negra e a branca uma vez. Literariamente, bastam-lhe um avô e uma avó para ter pai e mãe.

O apagamento do avô, sendo ele branco, podia-nos conduzir a esti­mulantes leituras extra-literárias (mas psico-culturais) em que, por exemplo, associaríamos modelos fornecidos pela psicanálise às tabelas de leitura da negritude. Como disse, porém, é possível encontrar uma explicação poética (no sentido etimológico da palavra) para tal apagamento, o que farei quando abordar com maior atenção a situação da crioulidade no texto.

 

A função neutralizadora do pai e a ficção identificadora do poeta

 

Quanto à personalidade paterna, ela está sempre envolvida por um halo de sonho, incompletude e mistério, que lhe tolhe a possibilidade de ser diretamente relacionada com a enculturação ou desculturação do locutor.

A presença de um rosto cumulado à referência paterna deve-se, em meu entender, à estruturação da obra pela «ocularidade» e pelo princípio realista aludido na terceira hipótese. O rosto do pai não é propriamente o rosto do pai, mas a face do seu retrato antigo a partir da qual o texto poderá designá-lo porque ele torna-se visível.

É significativo lembrar um antepassado literário dos 100 poemas que o ensaísta Mário António bem conhecia. Trata-se de O Segredo da Morta. Na “Advertência” onde introduz a obra, o seu autor, identificando-se ao autor da narrativa, diz que, depois de ouvir diversas vezes a história que vai contar, ouvindo-a novamente perante a fotografia da protago­nista, não resistiu mais a escrevê-la. O motivo despoletador é a fotografia, mais que o domínio da intriga. Enquanto não teve perante si o rosto visível da “heroína” o autor não foi capaz de compor a sua ficção. Do mesmo modo M. António vai colocar a necessidade de um retrato como condição indispensável à produção textual, mesmo de um poema sobre o pai, dando continuidade a uma tradição ‘realista’ local.

A proposição de uma reduzida presença textual para a figura paterna gera, por sua vez, a abstractização neutralizadora dessa personagem visualizável. Somente por uma noção de continuidade consanguínea, já acima aludida (processo concreto e inegável, tanto quanto visível para o meio que recebe o sujeito como «filho de fulano»), a imagem do pai se transportará para a do filho, que se nos apresenta, ele também, dizendo à filha que “só coisas impossíveis te sei dar”, como se a qualidade de sonhador, atribuída ao pai logo em «Drama», se pudesse propagar na linhagem e fosse, por consequência, hereditária.

A continuidade estabelecida pelo sonho, pelo atributo de sonhador, é reforçada por um recurso tipicamente literário. Nos dois poemas (aquele em que o pai é dado como sonhador, e aquele em que o locutor se reconhece como tal perante a filha), há um verso que se repete. A repetição efectiva-se, quer através da duplicação do adjectivo (“impossíveis”), quer através da duplicação da rima (com um verbo da primeira flexão, no infinitivo). Comparem-se os dois textos:

 

“Paragens impossíveis de al­cançar” («Drama»)

“Só coisas impossíveis te sei dar” («Familiar»)

 

A conotação poética entre as duas composições confirma-se ainda pela métrica, pois estamos perante dois decassílabos heróicos. A con­ta­minação representada no estilo aproxima os poemas reforçando a nossa atenção rumo às coincidências semânticas advindas da carac­terização das personagens (cheias de impossibilidades esperançosas).

Lendo na figura paterna o exemplo e a antecedência do traço sonhador constituinte do carácter do locutor, não só precisamos um dos aspetos do alcance da continuidade hereditária proposta em «Retrato», como também podemos reafirmar a neutralização da imagem do pai en­quanto elemento enculturador ou desculturador. Isto, que pode não pa­recer evidente, torna-se inegável quando recordamos que a preservação de uma cultura, ou a adopção de outra, pressupõem o exercício cultivador e a identificação através de uma norma, pois o sonho surge no texto como responsável pelo afastamento face à normatização.

A neutralizada figura do pai vai, numa fase inicial, colaborar como neutralizador da identidade do filho, a quem “humano segredou / Pa­ragens impossíveis de alcançar!” Os “sonhos” (deduz-se que incutidos pelo pai) onde o locutor era suposto representar os projectos de vida (programas narrativos) que valorizava (corporizados em «Drama» na união amorosa com a menina burguesa, travestida a figura do autor no papel de Cinderela, concretizar-se-ão somente no “monte de pa­péis”, nos poemas escritos e guardados – já que algo vai desgarrar a personalidade prometi­da à infância do restante percurso de vida suge­rido pela antologia.

O sonho burguês do locutor-autor, tal como representado no poema, é também sintomático da duplicidade que, por imposição materna, implica a escolarização da aprendizagem: ao propor-se um programa (que abandonará mais uma vez) conotado com o desejo mas a motivar-se e desenrolar-se no “colégio”, o enredo que a leitura descobre en­ca­ixa o legado paterno (onírico) sobre o sistema formal que marcaria o percurso programado pela mãe (numa simbiose que será levada ao ponto de o sonho passar a ser escrito, passar a poema). Se o locutor, por um lado, casando-se com a menina burguesa e branca, colega de estudos, confirmaria o papel de “doutor”, “evoluído”, por outro lado está reconhecidamente movido a isso pelos impossíveis que lhe foram segredados (e pelo exemplo da avó), que desconhecem ou “apagam” as fronteiras estruturais da realidade social (as “regras”). Por causa dessa ignorância, o programa narrativo que ele escolhera será forçosamente excluído, como totalidade, do percurso global da narrativa que a sua vida vai cumprindo, falhando o sujeito parcialmente a ambição de reapropriar o sistema que a mãe lhe tinha imposto.

A referência à perda de programa coincide, mais uma vez, com a fi­gu­ra da cisão no processo identificador. Através da cisão no interior da biografia do sujeito, ele confrontar-se-á com uma imagem de si que está desculturada em relação ao auto-retrato inicial, que mantém função identificadora. De tal consequência nos ocuparemos no capítulo IV, ao lermos a emergência textual mais precisa do momento da cisão.

Mas a espécie de presença ausente, a presença saudosa do pai, sendo responsável pela cisão ao dar-se como transmissora do sonho irrealizável, relaciona-se complementarmente com um processo unitivo que permitirá – no interior das sequências geradas pela cisão – reunir o sujeito separado. Um processo unitivo sustentado na ideia de criação literária, pois os versos atestam-se como seu reservatório.

Da passagem dos sonhos identificadores (e neutralizadores da encul­turação) a “monte de papéis” se deduz, portanto, uma outra função para a figura paterna. Trata-se agora de uma noção fundamental para a identidade do locutor, visto que o protagonista é retratado como autor dos versos. Se os sonhos são desculturadores por natureza, eles são dados como causa do nascimento dos poemas (o “monte de pa­péis”, “cheio de sonhos”, no “seu castelo de poeta” – afinal um quarto de menino pobre, a que fica reduzida a menção à casa, tradicional no “auto-retrato”. O nascimento dos poemas é também a afirmação do sujeito como poeta e como homem – portanto, a afirmação pública da sua identidade inicial pela da sua existência íntima, onde aquela se resguarda (“seu castelo”).

A figura do poema assume, por isso, no processo formativo que o texto constrói, um papel crucial. Os sonhos dão forma à identidade primeira e suas infelizes aspirações; o poema, como extensão do sonho, é o lugar onde a comunidade identifica a pessoa pela sua obra, pela forma criada a partir do sonho e de si, ainda quando o mesmo sujeito público, tanto quanto Valéry, afirme haver uma distância entre o homem e a obra (distância que não anula o facto de as palavras referirem a personalidade perdida da infância, o programa narrativo que a vida adulta na sociedade local obrigara a aban­donar, de acordo com uma das características apontadas ao escritor “intimista”).

A importância da obra de arte escrita no processo identificador acorda-se, por esta via, à formação e reformação da “consciência” e do “conhecimento” de si, por vários teóricos considera­das como típicos processos dos textos autobiográficos e das autobiografias.

Se o «eu» começa por tomar consciência de si a partir do exterior, conforme assegura a Psicologia, ele só poderá assumi-la (e afirmá-la) quando intervém nesse “exterior”. É pelo gesto que a criança repara na mão, e pela mão começa a perceber-se como ser próprio, diferenciado; pela mão, também, começa a manifestar-se e a tentar intervir no meio, ou a tentar a modificação dos elementos circundantes.

A obra em que o sonho ganha forma é a mão que a criança move para aparecer no meio. Ao desenhar um sonho – e, portanto, ao propagá-lo – o poema, enquanto artefacto, é o objecto onde está, em termos sociais, o ícone pelo qual se garante o reconhe­cimento do locutor. Ele vê-se entre os outros através des­se objecto e é, para qualquer um, o que fez aquilo. A identidade que os outros lhe reconhecerão, a partir daí, será determinada pela identidade que ele construiu no poema ou pelo poema. E, ao mesmo tempo em que o reconhecimento social aparece, garantindo-lhe um lugar definido na comunidade, o locutor reorganiza e reavalia o conhecimento e a consciência de si, concebendo ou percebendo que ele é também o que fez aquilo e que, ao se tornar no que fez aquilo, assumiu um compromisso (Ricoeur diria: uma promessa), do qual não se conseguirá livrar. A partir daí, tudo o que ele publicamente fizer – e tudo o que publicamente se souber que ele fez – será lido em função de se ter escrito aquela obra. É por esse motivo que nunca chegamos além do sujeito público ou textual, mesmo que pensemos ter atingido a intimidade de um autor.

O carácter neutralizador dos sonhos (e, por arrastamento, da figura paterna que os representa e lega) – não enculturando o sujeito – abre caminho, portanto, a um processo identificador novo, que passa pela afirmação dos mesmos sonhos, da identidade radical do locutor, através dos poemas que lhe garantem – no mundo que a cindiu – o re­conhecimento de um lugar próprio.

Rechaçado que foi no mundo real, o programa narrativo ingénuo que o texto chama de “sonhos” permanece na memória saudosa como resíduo da identidade primeira, destruída pela entrada no mundo adulto – marcado este pelo trabalho (emprego) e sua procura, pelas dificuldades em arranjar casa e, mais tarde (após os 100 poemas), pela chegada a horizontes novos, que relançarão processos de aprendizagem e reidentificadores – para reaparecer depois como artefacto salvador. O poema, como texto escrito especialmente preparado, trabalhado, obriga assim a memória – sem dúvida voluntária – à reevocação e reapresentação do mundo no qual se fixou o envolvimento condicionador da personalidade afectiva do sujeito.

Desta maneira (como quando misturam o sonho ao ambiente colegial) os 100 poemas transfor­mam um instrumento tipicamente escrito, escolar (conotado com a mãe e a desculturação da crioulidade) num instrumento ao serviço das primeiras escolhas do sujeito, num meio caracteri­zado pela oralidade, escolhas que se chocaram com a imposição do ensino formal. A conotação poeta / sonhos é, portanto, a conotação entre marcas do programa narrativo que a mãe queria impor e sinais da personalidade afectiva inicial que o rejeita, e se vê re­chaçada perante o mundo. Ela reafirma o cruzamento de referências a que a escolha do locutor o conduz, mantendo assim a matriz da crioulidade, a sua essência definidora.

A conotação poeta / sonhos não é afirmada por mim apenas, é processada em diversas composições da antologia. Ela é claramente assumida na fala da mulher-amada, através da qual – uma vez mais – a figura feminina faz o contraponto enculturador à masculina: “Mas isso é falso, amor! – / Os teus olhos sorriem a dizer. / – Deixa de sonhos, poeta! / O mundo é esse que aí temos!”. E reforçar-se-á depois, quando a Poesia reaparecer em contraposição ao “Mundo”: “Era, a realizar-se, / A Poesia / Contra o Mundo”.

O título do poema primeiro citado («Amor de Funcionário») e a der­ra­deira estrofe (que se segue à que transcrevi) confirmam (deprecia­tivamente) o sentido enculturador das afirmações da mulher: “E tens razão, querida: / Amor de funcionário / Não tem mais que a largura do BO”. A conotação “oficial” e “funcionária” de tal sentido reafirma igualmente o carácter desculturador (alienante) dessa enculturação promo­vida por figuras femininas próximas ao sujeito e devotas do mundo real.

Em contraste, a conotação poeta / sonhos e a identificação do locutor e da figura paterna com esse par funcionam como garantes de identidade, quer pela similaridade de carácteres que promovem (“E, prolongada na minha, a tua poesia” – como se diz em «Retrato»), quer pela reiterada adscrição do conjunto (poeta / sonhos) ao locutor no correr dos 100 poemas.

Um momento particularmente importante na adstrição em causa, pela intensidade com que a promove, é aquele em que, na «Carta do Afogado», de 1960, os poemas são vistos como “roubos” feitos ao seu autor, roubos que a mãe – atenta à vida prática (e só nisso próxima da avó) – não permitiria que sucedessem. A equivalência dos sonhos aos poemas é estruturadora da secção do poema em que se integram os versos que tenho em referência. Os poemas são “sonhos vivos, puros” que, de cada vez que eram dados, faziam com que o locutor se sentisse “um homem”. Os “roubos” eram também “dádivas” (“De cada vez que dava (me roubavam)”). A conjugação dos sonhos e dos poemas com a imagem do roubo e da dádiva acentua, num processo de adscrição, a ideia de autenticidade testemunhal do escrito que, por sua vez, tornará mais forte essa mesma adição do par poeta / sonhos ao sujeito-locutor. Para além disso, ela reinsere o texto na linha do «diário íntimo», ao acentuar a distorção «eu» (“dava”) x «meio» (“me roubavam”), e a representação autista do «eu» – dessa forma nos recordando o quanto o texto se estrutura por tópicos genológicos de matriz europeia.

A importância da conotação sujeito-locutor / poema / sonhos, intimamente ligada à ideia de continuidade do pai no poeta, revitaliza-se na ideia de reconhecimento e projecção do «eu» pela poesia. O reconhecimento e projecção do «eu» pela poesia faz-se também pela demarcação de um terreno próprio, perfilhado por esse «eu», no mundo das letras e da cultura. Tal demarcação fica assinalada pela citação de outros poetas, ou escritores – na sua maioria líricos e intimistas. É o caso de Couto Viana, de Rimbaud, de António Nobre – no qual se deve radicar, a nosso ver, e a par de Manuel Bandeira, o tom de auto-comiseração utilizado frequentemente e, por vezes, pungentemente – o que exemplifca, mais uma vez, a «Carta do Afogado». Assim se justifica a citação constante de nomes públicos vindos desse campo da cultura, logo iniciada na nota de abertura da antologia, e refuncionalizada nos livros de itinerância, como no capítulo V havemos de ver.

A “Justificação” inicial da antologia começa por citar um poeta, António Manuel Couto Viana, cujo nome suscita no leitor angolano e português informado uma série de sugestões que, por sua vez, irão completar as indicações de leitura dadas no texto. Era conhecida a viagem de Couto Viana a Luanda, a sua amizade com o sujeito público Mário António, a forte ligação de Couto Viana à Távola Redonda, onde M. António virá depois a colaborar. Tudo isso nos remete para o contacto com a recuperação de um lirismo tradicional português, de cariz intimista, e com um conceito de poesia que solta a criação poética da obrigatoriedade de transmitir uma direta mensagem política ou partidária (bem como da obrigatoriedade de o não fazer). A noção tradicional e aberta de poesia, que assim se recomenda como critério de leitura, fica reforçada pelo tópico, antigo, do acordo íntimo do poeta com o cosmos e o lavrador, exposto a partir do verso de Couto Viana ali citado.

A deriva citacional pelo campo da arte literária seguirá depois por duas linhas: uma mais forte, onde se destaca a figura de Rimbaud, explicitamente nomeado várias vezes. Outra menos nítida, que se prende com a noção de «crioulidade» e nos conduz, também explicitamente, a uma narrativa de Jorge Amado.

Em qualquer dos dois casos, porém, a citação serve para apropriar a referência - e, portanto, o lugar por ela ocupado no seu quadro de origem. De Rimbaud se diz “Ó meu Rimbaud”, antes da transcrição em francês, num poema fortemente autobiográfico já várias vezes comentado («Carta do Afogado»); de Jorge Amado, após a transcrição de um título (“Jubiabá”) se recria uma personagem, António Balduíno, alargando o âmbito da apropriação, depois, ao primo (transformado, de Zé Camarão, em Zeca Camarão), ao cenário e ao episódio.

Destas duas citações explícitas, duas linhas de leitura nos ficam indicadas: uma concorda – quanto ao intimismo – com a citação inicial de Couto Viana; outra remete para a teorização da crioulidade. A primeira vem da Europa, como se de lá se tirasse o modelo intimista a partir do qual devêssemos ler autobiograficamente a antologia; a segunda vem do Brasil e remete para um cenário de «farra», de adolescência e de conquista amorosa que, apesar do realismo referencial, se subordina ao modelo intimista pela sugerência da inadequação do sujeito-locutor ao mundo – contraposta à adequação e eficácia do primo, traço que não reflecte a figura de Balduíno na fonte.

A relação da lírica dos 100 poemas com Jubiabá deve ser ainda mais esmiuçada. Não se trata, contrariamente ao que tendemos a pensar, em função de sabermos profunda e reconhecida a influência da literatura brasileira nesta área, não se trata de uma imitação passiva do modelo baiano. Há, antes, imagens que, oriundas de episódios de Jubiabá, se transplantam para a lírica da antologia do abc transformando-se em referências próprias, diferenciadas – o que na maioria dos casos implica a sua distorção, ora estrutural, ora episódica.

Já em «Rua da Maianga» podemos notar a relação intensa da lírica de M. António com a narrativa de Jorge Amado. A certo passo de Jubiabá uma das crianças de rua, das que fizeram parte do grupo de António Balduíno, é atropelada e morre, desaparecendo assim da infância do protagonista. Em «Rua da Maianga», um dos poemas que monta um ambiente que evoca a Baía de Jorge Amado, passa-se o mesmo com um amigo do locutor, Nené. A proximidade estrutural entre as duas imagens (um companheiro de infância mortalmente atropelado por um automóvel) é disfarçada pelo recurso à visibilidade sugerida para o acontecimento, inclusivamente pela repetição da palavra “olhos”: “Meus olhos encontraram Nené morto // Meu companheiro de infância de olhos vivos”.

Mas não se ficam por aí as imagens baianas que poderão ter estruturado algumas das passagens da lírica de M. António. A fantasmagorização da “branca”, menina de família, que o sujeito-locutor projecta sobre as mulheres de sangue africano que ama ou possui, pode radicar-se no amor de Balduíno por Lindinalva, filha de um português, cuja sombra se atira sobre as mulheres mestiças e negras com que dorme o terno e violento protagonista de Jubiabá.

Como disse, as imagens dos episódios de “origem” não se transplantam tal qual para os 100 poemas. No caso de «Rua da Maianga» há pormenores que diferem, como a referência à ida para o Hospital e a já notada visibilidade do acontecimento pelo amigo-locutor. No segundo exemplo (o do amor racializado) há, na poesia do angolano, uma complexidade e uma intensidade maiores, e a funcionalização do problema, em termos de significação da obra e de composição da personagem prin­cipal, é central, o que veremos mais adiante neste mesmo capítulo. Por outro lado, ainda relativamente ao aspecto amoroso, não deparamos com a sugestão de ironia que subtilmente emerge em Jorge Amado em alguns dos momentos em que refere o problema da fantasmagorização da “branca”.

Quando importa a figura de Balduíno (e de Zé Camarão), o poema «Canto de Farra» faz a mesma cuidada e diferenciada mudança de traços de carácter e sociais. O António Balduíno deste texto não é campeão de briga e de mulher, não é o melhor discípulo de Camarão na capoeira e no violão, não é pugilista nem assassino. É seu primo (como não o era no livro baiano) e é tímido; só numa coisa fica parecido com o António Balduíno de origem: admira o outro (mas, no seu caso, por nele compensar a sua falha). E Zé Camarão não só se torna Zeca Camarão, vira também o protagonista (em vários sentidos da palavra). Semanticamente, o parentesco entre as figuras de «Canto de Farra» e Jubiabá funciona ainda por um outro motivo: tanto num caso quanto noutro Zé(ca) Camarão é o detentor e transmissor de uma sabedoria prática intrinsecamente oral. É o transmissor da crioulidade mais antiga e regula­da por si própria.

A semelhança imagística, e a idêntica funcionalização semântica – entre os passos citados de «Rua da Maianga» e de poemas como «Canto de Farra» e «A Sombra Branca», por um lado, e os episódios que referi de Jubiabá – demonstra que não é por desconhecimento ou leitura superficial que se muda o nome de Zé para Zeca, ou se transforma Balduíno em pouco mais do que um moço tímido e só. Se António Balduíno fica aqui a olhar para a moça que o primo levou é porque outro modelo poético, outro quadro-tipo se imiscuiu, palimpsésticamente interferindo com o da narrativa de origem. Esse outro modelo e a sua intersecção com Jubiabá explicam-se, a meu ver, por motivos genológicos. Trata-se do modelo dos protagonistas dos escritos íntimos autobiográficos, que são paradigmatica­mente inadaptados e solitários, a recobrir o dos heróis épicos reboante nas histórias de Jorge Amado.

O trecho que se vai reportar a Jubiabá é, pois, um trecho que, pela contraposição que estabelece perante a fonte, permite representar diegeticamente a interiorização, e a dificuldade de relacionamento entre o sujeito e o meio, que são características do “autor” de um «Diário Íntimo». Daí dizer eu que a linha intimista é “mais forte” que a outra, no que diz respeito aos modelos literários pelos quais se figurará a personagem do autor – o que é também, ainda quando não seja só, consequência de opções genológicas anteriores.

Outras semelhanças entre Balduíno e o locutor da lírica em estudo são o facto de ambos comporem (um sambas – portanto, poemas e músicas; outro, só poemas), a preocupação que o jovem (locutor ou Balduíno) tem de identificar valores cognitivos e persegui-los, bem como a noção que se lhe imputa de continuidade em face do pai e dos modelos, e a ausência prematura do pai. Mas também nestes casos muitas diferenças se interpõem. Os sambas compostos por Balduíno são comprados por um poeta que os apresenta como seus, pelo que não o definem inter pares, e não podem ser reclamados como o retrato do sujeito no grupo de origem. O autor dos sambas desconhece por completo o mundo literário, tal como não sabe que toda a gente o ignora, ou que é roubado; ora, os poemas escritos pelo sujeito-locutor da antologia citam largamente outros poetas, apropriam-se deles, e são simul­taneamente o seu cartão de visita: é por eles que na diegese ou intriga o autor se afirma e vê reconhecido na comunidade que nos propõe ser o seu berço social, dando-se a conhecer assim. Para além do mais, ele redimensiona o problema do roubo, ao ambiguizá-lo com a noção de dádiva.

Para além da identificação locutor / poeta / sonhos, também no que diz respeito à ideia de continuidade pai-filho ela assume aqui traços íntimos próprios, como pas­saremos a ver, traços que a distinguem de Jubiabá. Um deles, o mais importante em nosso enten­der, é o de que essa continuidade se atinge pela poesia. Outro, muito ligado a este, é o tipo de modelo que o pai constitui (um ingénuo sonhador, homem bom, contracenando com o tipo “mau” do pai de Balduíno).

A ideia de continuidade pai / filho, integrada num complexo de elementos identifica­dores, onde a poesia tem um papel central reforçado pelas citações literárias, é no entanto limitada pela ausência física do pai, que não permitirá ao filho aprofundar a imitação ou sequência. E, neste caso, não há, como em Jubiabá, outras figuras do meio que podem substituir a do pai enquanto modelos e mestres (tirando o primo, para assuntos específicos...), o que amplia a imagem de ruptura que se nota na passagem do pai ao filho. Essa ruptura, e toda a figura da cisão, ganham forma quando o sujeito público – aquele que existe porque escreve, e escreve prolongando a poesia paterna – assina «M. António», ou seja, eliminando qualquer referência aos nomes de família, ou apelidos (este facto, mais tarde, tornar-se-á funcional outra vez, na medida em que permite ler o sujeito como identidade em si, solta face à filiação que o explica mas o circunstancializa, e nessa medida universalizando-se).

Apesar de rompida ou limitada, a continuidade entre pai e filho não deixa de contar com o empenho do filho. O empenho posto na identificação poeta / sonhos / pai contracena com a complexificação desestruturante das afecções trocadas entre filho e mãe. Se o pai neutraliza o processo enculturador – pela propagação, que a sua figura promove, do elemento onírico, o qual afastará o filho de uma enculturação mais eficaz ou estrita – a mãe (como outras figuras femininas) está por sua vez neutralizada, no processo identificador promovido pela conotação poeta / sonhos, na medida em que o sonho, que identifica o poeta, ficará por ela ignorado ou será por ela combatido. Há, portanto, uma simetria clara entre o pai e a mãe, que reforça o papel da personagem materna como oponente ao percurso narrativo idealizado pelo sujeito, e que o identificaria. Só mais tarde, “nos jornais”, ela sabe que os ruídos de dactilografia que lhe tiravam o sono eram poemas. O seu mundo não é, referencialmente, esse.

Este jogo tenso entre a figura do pai e a da mãe já coloca o protagonista dos 100 poemas mais longe do de Jubiabá.

 

A cisão face à identidade inicialmente imaginada para o sujeito – que vai gerar a personalidade a quem é atribuída a função de a descrever, e em torno da qual se estrutura a diferença de relacionamento no triângulo familiar – pode ser estudada a partir do levantamento de algumas das extensões semânticas do “sonho”, legadas pelo pai.

Ela dá-se a partir do choque entre sonho e visão: “Ai dele que abriu os olhos e que viu!” O verso constrói uma perífrase que podia não ser tomada como tal numa leitura imediata (pois eu posso “abrir os olhos” e não “ver”). Mas “abrir os olhos” não indica, nesta passagem, o ato visível e físico – por assim dizer, «ocular»; a expressão recorre ao significado cognitivo de “despertar”.

O “abrir os olhos” é também o momento em que a criança começa a aperceber-se do mundo no qual e a partir do qual descobrirá depois a sua presença. Neste caso concreto, a expressão indica uma espécie de segundo nascimento para o mundo, porque ele permitirá que à visão do sujeito sejam depois associados retratos da sociedade e de si próprio que nunca antes mostrara ter. Portanto, a consequência do “abrir os olhos” é “ver”, no sentido de se aperceber de uma estrutura social em cujos contornos não reparara. O verbo (“viu”) e a expressão (“abrir os olhos”) possuem o mesmo significado: “apercebeu-se de”.

Construindo a figura da perífrase sobre as metáforas cognitivas de “ver” e “abrir os olhos”, o texto alerta-nos para a visão como sentido físico “investido da dignidade de paradigma do próprio conhecimento”, o que de resto se acorda à notável recorrência a palavras abran­gi­das pelo campo semântico de “ver” (óculos, olhos, face, rosto, retrato [fotografia]). Vemos, por isso, também reforçada a hipótese acerca do realismo presente na obra.

A evidência da regra social envolvente, para a qual o locutor “abre os olhos”, desestrutura a identificação inicial. Permanecendo como ele­mento fundamentador da identidade, a visibilidade leva assim a con­figuração do locutor a alternar-se. E é para tal evidência que apontam as afirmações atribuídas à mulher em «Amor de Funcionário», ao aconselhar o “poeta” a abandonar os sonhos que o ligavam à infância e ao legado paterno.

Temos, em resumo, uma tripla oposição entre “ver” e “sonhar”: na sua primeira vertente, é uma oposição semântica vulgar (entre ver e imaginar); a segunda é fundada no facto de o visível funcionar como enculturador e o sonho como desculturador face à comunidade mais marcadamente europeia; na terceira, a visão opõe-se ao sonho no seio do processo identificador, na medida em que o ver identifica cindindo e o sonhar identifica reunindo o sujeito à sua primeira configuração.

Trata-se de uma oposição fundamental para descodificarmos ou confirmarmos o papel neutralizador da personagem paterna sobre o processo de aculturação do locutor lírico, e o seu complementar papel identificador face à imitação do processo autognósico.

A função neutralizadora, que principalmente configura a imagem do pai, contribui para reforçar a leitura de um sentimento de cisão interior ao sujeito, de uma cisão parcialmente desculturadora, que ao mesmo tempo alonga e distancia a tradição crioula na qual se teria gerado. Mas também o leva a afirmar-se como poeta – aspecto que, a par da saudade, será o único a permanecer e, portanto, a garantir a ipseidade do «eu» locutor ao longo de toda a obra lírica. Ou seja, ela permite erigir e manter funcional, no seio da cisão, a união, no seio do trânsito, o recurso, para usar termos caros à filosofia de José Marinho.

Cumulativamente, a detecção de uma alteridade no interior da personagem auto-bio-gráfica – indiciada a partir da presença indireta do pai através dos sonhos incutidos no filho, que não o realizam por não se realizarem – conduz-nos a uma situação limite no processo identificador. Tal situação foi descrita por Paul Ricoeur, a propósito da narrativa, em Soi-même comme un autre. Ela pode resumir-se ao facto de, por um lado, o carácter da pessoa mudar, mas a sua promessa (própria do carácter anterior) manter-se. A manutenção ou reafirmação de uma promessa é a reiteração de uma presença, através da qual alguém nos diz “eu, que falo agora, sou aquele que antes disse que ia fazer isto”. Ela garante a ipseidade do locutor. A mudança de carácter diz-nos que o sujeito que fala, ainda que seja o que falou, já não é o mesmo que falou. Ela põe em causa a mesmidade do locutor. A mesmidade e a ipseidade são os dois pólos identificadores da pessoa, ou da personagem, ou, ainda, do “sujeito semiótico” (se quiser­mos, [carácter] e [permanência] podem substituir os termos originais ricoeurianos].

O exemplo imaginado por Paul Ricoeur é o de um locutor que já não prometeria o mesmo no momento em que reafirma a promessa com que deixou de se identificar. O dos 100 poemas é de certo modo in­ver­so: o de um locutor que permanece identificado com a promessa que a si próprio fizera mas reconhece ter alterado o seu carácter, acuado por uma “des­funcionalização vital” do pri­meiro auto-retrato que nos apresenta.

Em qualquer dos dois casos as promessas-sonhos equivalem a pro­gra­mas narrativos, cuja sequência vai sendo alterada pela imposição (a partir das referências) de outro “modo de vida”, de um percurso também narrativo que pressupõe – e tende a impor – programas alternativos. A subsistência de um percurso identificador pela cons­tância do carácter inicial (de herança paterna) torna-se possível apenas na medida em que se transfere a similaridade psicológica (sustentada na oralidade) para o âmbito da escrita, onde o sonho e a saudade confluem para manter o mundo inicial identificador – e, por consequência, a identidade primeira do sujeito dessa escrita (desse papel da saudade e da poesia nos ocuparemos em pormenor no próximo capítulo). Por isso também, a dádiva dos poemas aos amigos o fazia sentir-se “um homem”: porque ela tornava pública e fixa a via de manutenção do percurso narrativo inicial, ela tornava-o positi­vamente realizado ao provar aos amigos a continuidade do pai e dos sonhos no filho, e ao fixar isso para um universo de leitores indefinido, como o é o de toda a obra de arte literária [200]. O poeta não era só o que fez aquilo, mas o que, fazendo-o, continua a comunidade de sangue e devaneio, a linhagem que é reconhecida como sua por todos, e que ele faz reconhecer como sua por todos os que sabem de si e do pai.

Desta forma, a cisão característica da personalidade crioula pode manter-se sem que isso implique a absoluta despersonalização do locutor, que o descaracterizaria. Pelo contrário, ela re-instala-se como identidade na tessitura semântica dos textos escritos, ao fazer progredir a sua formação por uma cisão face ao meio e pela mistura do que ficara dividido.

Tudo isto nos mostra que a lírica de M. António é, desde o início, um caso muito complexo na composição da crioulidade e na definição de um locutor típico de um certo tecido social e histórico de Angola. Tecendo uma rede imagística e genealógica de vários níveis, ela vai misturar, sempre que o resultado seja belo, o que for característico de um nível ao que for do outro, ou também do outro.

 

O berço social

 

O meio familiar em que o sujeito-locutor se apresenta é caracteristica­mente o do tecido misto urbano de Angola, percebido no refor­ço da sua aculturação através de cisões geracionais, ao mesmo tempo viabilizadas e contrariadas pelo papel inibidor da neutralização da figura paterna. Trata-se da mesma definição que vem a caracterizar o meio envolvente não-familiar ou não-consanguíneo – pelo menos no que respeita à componente crioula da perso­nalidade urbana.

As recordações pessoais que os poemas seleccionam centram-se exclusivamente nesse ou por esse mundo, que serve de segundo berço ou colo onde se vai situar, identificando-se ou alienando-se, o sujeito poético. Ao fazê-lo, ele estabelece uma relação com o “exterior” correlativa da relação consigo mesmo, traço reconhecido como próprio dos escritos intimistas, dos quais assim de novo se aproxima.

Pela popularidade, generalização e evidência das marcas especificado­ras contidas em poemas como «Noites de Luar no Morro da Maianga» [201], «Rua da Maianga» [202], «Canto de Farra» [203], «Linha Quatro» [204], desnecessário se torna fazer aqui o levantamento dos tra­ços que, nesses versos e noutros afins, confirmam o retrato rigoroso de uma ca­mada social, cultural e etnicamente intermédia. O realismo do retrato e a origem dos comentadores serviu, de resto, para al­guns ‘mensageiros’ defenderem a lírica inicial de M. An­tónio. Mas não era o mesmo, o que eles pregavam e o que M. António realizava. A lírica do nosso poeta obedecia já a um projecto pessoal. Sublinho apenas que tais composições são datadas, neste livro como nos anteriores, dos primeiros anos de escrita poética. A sua ordenação na sequência da antologia coincide com a referência inicial a um “berço”, a um meio que nos explica. Depois de configurada a avó, esboça-se o meio da adolescência – sempre na dependência da relação do sujeito com ele. Só mais tarde nos será contada a sua vida adulta. Como se a progressão assentasse numa “estrutura profunda” que obedecesse ao propósito de contar o curso “normal”, cronológico, de uma vida, propósito apontado por autores expressivistas à biografia e à autobiografia, como vimos no capítulo anterior.

Menos despiciendo que fazermos o levantamento dos traços “am­bien­tais” que fixam esses poemas, afigura-se precisar agora o espaço de situação do sujeito pelo reconhecimento dos lugares cuja nomeação promove um processo identificador pela negativa, pela consciencialização da existência de outros espaços além do seu, onde subsistem personalidades culturais, ou bio-culturais, que só diacri­tica­mente podem configurar o «eu».

A primeira das composições em que explicitamente se nomeia outro espaço é o «Poema Marítimo numa Cidade do Sul», primeiro também de uma série dedicada a lugares “do sul”, que se vê imediatamente sequenciado pelo «Poema para Benguela», e por «Planalto». Ao situar no “sul” a cidade de que fala, ou o planalto, e ao prometer na composição intermédia o seu regresso a Benguela, o locutor contrapõe-lhes a existência de um espaço que não é esse e no qual se centra, pelo menos habitualmente.

Levando em conta o facto de o texto nos situar em Angola – pela toponímia citada – alguma surpresa nos podia tolher ao repa­rarmos que os espaços nomeados (Benguela, o Planalto) se localizam no Centro e não no Sul do país. A palavra “Sul” tem portanto que ser lida relativamente ao local onde o locutor focaliza a sua identidade: Benguela e Huambo ficam a sul de onde ele reside, mas o berço e a residência funcionam para ele como o centro do mundo.

Nos dois primeiros poemas da sequência, o sujeito-emissor ainda en­contra elementos identificadores que permitem assimilar esse espaço ao seu, seja o mar (no «Poema Marítimo numa Cidade do Sul») ou o mar e a mestiçagem (em «Poema para Benguela»), ou a urbanidade subjacente aos termos cidade e Benguela. Na terceira composição, porém, acentua-se o processo diferenciador – ainda que se mantenha a simpatia face ao lugar – que vai culminar no pedido final:

 

Sul

Assim me entrego a ti pra que me dês

O ardor que esta cidade me não deu

Dela conserva-me apenas a poesia

Desse outro infinito que não tens

 

Kalunga, o Mar!

 

“Esta cidade” – onde o poema tem o seu registo oficial de nascimento e, com ele, o seu sujeito – é a capital, como se confirma nos lugares dela nomeados (Maianga, p. ex.). Os outros espaços (que não o berço ou colo do locutor) são constituintes de uma outra identidade, própria de outra gente: “Ó Sul, / Deixaste a tua marca em tua gente!”. É produtivo notar, ainda, a mudança que o poema sofreu, de Chingufo para a sua reapresentação na antologia do abc. Em Chingufo estava ainda pouco diferenciada essa terra, pois o mesmo verso tinha outra formulação: “deixaste a tua marca em tanta gente!”. Tal formulação permitia incluir na gente aqueles que – como o poeta – não eram dali. Quando, ao passar para a antologia, tanta se transforma em tua, e gente fica a designar apenas os filhos do lugar, a predicação modifica-se de forma a distanciar o sujeito e a chamar-nos a atenção, por igual, para o parentesco semântico entre “gente” e “gentio”.

Também através do distanciamento face a outras pessoas ou gentes, como vemos, o locutor vai portanto assinalar a diferença da identidade no painel étnico, histórico e cultural com que depara no interior do espaço onde centraliza e radica a sua formação e a sua identificação.

Ainda em «Planalto» esse processo, definidor pela negativa, faz uma tripla aparição: como víramos, o verso “deixaste a tua marca em tua gente” afasta quem fala dessa gente; mas, antes dele, há “esse negrinho perdido” e, depois, “Vasco, filho de branco”, personagem que se distingue de “nós outros”, os da cidade, por não ser indiferente.

A diferenciação, porém, não se resume à bipolaridade urbano / rural. A tripartida e mais complexa oposição negro / mestiço / branco vai também marcá-la, permitindo agora ao locutor distanciar-se de cada um dos extremos do quadro. Ele não se identifica, nem com o “negrinho perdido”, nem com o “filho de branco”. O “filho de branco”, Vasco, pode não ser branco (daí o que há de comum com “nós outros”, os da cidade). Não importa para o texto se ele é branco, mas sim que seja filho de um branco. A nomeação distingue-o dos outros que, podendo não ser brancos nem negros, não são filhos de brancos. Por uma nomeação diacrítica o texto nos figura, pois, não só um locutor mestiço e urbano, mas um locutor cuja filiação mais próxima não inclui membros de outra cor: o pai e a mãe são mestiços também.

Na colectânea 100 poemas, a primeira composição já sugeria a mes­ti­çagem biológica do sujeito, pois, se se refere a “minha avó negra”, é por existir outra que não seja negra sendo igualmente sua. Con­fir­man­do uma identidade apresentada ao mesmo tempo como rácica, psico­lógica e cultural, os traços determinantes da mestiçagem vão ressurgir em toda a obra, e sempre associados ao «eu» que se apresenta como o organizador dessa linguagem. Tratando-se de iden­ti­ficadores, eles aparecem, ora como um estigma, ora apenas enquanto marcas próprias, o que iremos vendo ao longo do trabalho.

A relação entre a identidade biológica, a psicológica e a cultural, estrutura o desenvolvi­mento do tema logo no segundo poema da antologia, A História Triste, culminando na última estrofe: “Então / Vi que ela tudo sabia / E que / O que eu sabia de ter lido / Ela tinha gravado em sua carne!”. Este poema, pela contraposição «ela / avó negra», coloca desde logo o locutor numa re­la­ção cindida.

Essa relação reforça a consciência política do sujeito e a do leitor, mas ao mesmo tempo vai precisar o seu auto-conhecimento enquanto ser que não tem gravado em sua carne o mesmo historial – e, portanto, alerta para a composição da sua diferença face ao extracto negro da população, o dos estranhos tocadores de dicanza. Uma diferença que marca “na carne” a sua identidade.

Não significa isso que o locutor se retrate por inteiro alheio a tal ex­tracto. Ele simplesmente reconhece diferenças profundas, que se gra­vam na carne. Pois, complementarmente, por diversas ocasiões aquele que assume que fala sugere afinidades várias com a componente negra da população, utilizando para isso diversos tipos de identificadores: a consanguinidade, acentuadamente evocada perante a presença da morte («Avó Negra», “velhas mulheres negras do meu sangue”; a terra de origem [mas pressuposta ainda alguma afinidade rácica], determinando costumes e gestos [«Não me Beijes nos Lábios»]; e a contaminação da identidade do outro pela projecção direta do ego sobre elementos de um quadro recordado pela força do afecto).

Em «Enfermaria», poema datado de 1952, podemos estudar a contaminação da identidade do outro pelo recurso à projecção: “Lembrança de negrinhos brincando sobre a areia... // Afinal, estou lá sem saber: // Negrinho, na minha infância perdida!”. O locutor, que se vem apresentando enquanto mestiço, e não apenas crioulo, transforma-se em “negrinho”. O diminutivo e a adjectivação não nos parecem casuais. Eles fazem o contraponto de outro poema, no qual a distanciação entre o mestiço e o negro era marcada pelo mesmo diminutivo e pelo mesmo adjectivo. É, portanto, oportuno observarmos como o “negrinho perdido”, de «Planalto», se desdobra aqui no “Negrinho, na minha infância perdida!”, acoplando-se a “negrinho” o «eu» que dele se distanciara.

No pólo oposto, a rejeição de algumas incorrectas atitudes perpetradas ou permitidas pelo poder (simultaneamente seleccionadas pelo seu significado pessoal e social), vai possibilitar que o sujeito marque o seu distanciamento perante os colonos que representam a segunda componente da mestiçagem típica do lugar.

Logo na primeira estrofe de «Rua da Maianga» (de 1952), quando o nome dado oficialmente à rua não se transcreve por não ter sido aceite nem incorporado o seu uso pela comunidade, essa oclusão serve para identificar o locutor com o meio envolvente, ambos aparentados pelo desconhecimento de quem seja o “missionário qualquer”.

Mais tarde, em «Pedologia Africana» e «Dizem-te Bela», o pro­cesso de rejeição das atitudes estranhas e o de imersão do sujeito na comunidade dos filhos do lugar vêem-se confirmados e reformulados, assumindo âmbito mais preciso (a defesa ecológica e autêntica da terra, funcionando mais uma vez a autenticidade como identificador, lírico e romântico). É desse âmbito que ressalta igualmente o apelo à mulher africana, datado já de 1951, pois a terra determinaria um modo específico de amar, modo por isso autêntico.

A filiação dos gestos na natureza local (como se a geografia os determinasse com o tempo) repete-se igualmente numa composição de 1959 («Poeta, Alimentei-me de Conceitos»), logo na primeira estrofe. No entanto, também na natureza ao locutor se afiguram marcas de uma cisão que pode eliminá-la, ou que o fará dentro em breve. Atente-se no sexto verso da terceira estrofe da primeira das composições citadas: Como as vozes que ainda não morreram. / E vêm do fundo dos nossos rios / Das selvas, das anharas, dos desertos, / E nos comunicam um pouco / De sua pureza selvagem, sensual.... A sensualidade assacada à terra, também selvagem e pura, determina modos de amar específicos e, estando agora a terra em perigo, esses modos de amar estão igualmente em perigo. De onde a íntima relação entre a defesa de um ambiente local e a rejeição dos modos estranhos (“europeus”) de amar. A cisão social (entre uma maneira de viver própria do lugar e outra importada) conjuga-se à cisão com a natureza e à cisão entre o sujeito e o meio, que também sofre do peso de uma instituição cultural importada (a Escola, com a escrita e suas implicações, estudadas acima).

Tal como a diferenciação face ao elemento negro não evita que ele possa funcionar como identificador, ou como objecto da projecção do sujeito, assim também a rejeição de atitudes estranhas, facilmente atribuíveis ao colono de naturalidade ou ancestralidade europeia, não impede a assunção de uma origem branca.

A construção poética da identidade do sujeito-locutor passa também por aí, particularmente quando ele anuncia a sua chegada à Europa. Mas, ainda nos 100 poemas, o branco funciona como identificador e é assumido como tal, dada a condição que origina a existência de mestiçagens.

Onde a inserção do sujeito entre o par branco / negro atinge maior complexidade é, a nosso ver, no tratamento inicial da problemática do amor heterossexual. Em «Não me Beijes nos Lábios», como já vimos, supõe-se a existência de duas maneiras diferentes de amar: uma seria própria da terra, outra não. Esse poema é seguido logo, nos 100 poemas, por outro onde se contrapõe, à representação sexual dada ao afecto, uma expressão tímida, saudosa e terna para o mesmo tipo de sentimento, agora nutrido pelo “meu amor-menina”.

Os dois modos diferentes de amar pressupõem duas mulheres também diversas (no caso, uma prostituída, e outra pertencendo a um segmento melhor posicionado na hierarquia social). A distribuição dos elementos, que retratam as mulheres relacionadas com o locutor enquanto objecto de sentimentos amorosos, obedece, durante algum tempo, a um critério que é o de privilegiar figuras racicamente classificadas que representem, ora uma, ora outra maneira de amar.

À menina branca se colará a imagem da “donzela de olhos doces / De meigas falas leves imprecisas / Que tinha sempre um carro à porta do colégio!” («Drama», 1952); inevitavel­mente, como sucede na tradição literária europeia com os tipos masculinos caracte­rizadamente apaixonados pelas “donzelas de olhos doces / De meigas falas leves imprecisas”, a espécie de relação estabelecida caracteriza-se pelo fracasso, em contraponto à idealidade em que a mulher é situada (e distanciada).

À mulher africana se associarão a realidade e o amor sensual, explicitamente assim nomeado em «Não me Beijes nos Lábios». Apesar de situado ao nível da realidade e não da idealidade, nem por isso o “amor africano” se irá realizar de forma feliz, dada a fantasmagórica interferência de um tipo sobre o outro.

Porque estabelecido fica, por consequência, um triângulo interpessoal que irá impedir a aproximação do sujeito à mulher africana por interposição fantasmática da figura – idealizada por ele – da branca (v. «A Sombra Branca» e «Do Amor Impossível», ambos de 1952), que por sua vez não o realiza afectiva nem sexualmente. A antiga estrutura triangular da narrativa de amor europeia (em que A ama B que ama C, sendo A real e C impossível ou irreal tal como se idealizou), e que foi popularizada por Camilo no seu Amor de Perdição, adquire desta maneira funções novas, que justificam a sua actualização para a lírica do livro. Mas o mais importante para nós é que, sugerindo a triangulação referida, o locutor está igualmente a definir-se face aos dois pólos que seriam os constituintes de uma identidade por ele assumida como rácica, psicológica e cultural.

As mulheres amadas, que simbolizam inicialmente esses dois pólos, adquirem uma presença quantitativa e qualitativamente importante na antologia. Como acabamos de ver, é pela relação com elas que fica reconfigurado o sujeito enquanto ser intermédio. O seu significado, porém, não se reduz a isso.

Preenchendo a maior parte das vezes um «tu» que, nos 100 poemas, pode ser usado para personificar uma «não-pessoa» (por exemplo o mar), o motivo feminino irá também cindir-se em si, porque nele se inscreverão a mulher africana (que preferentemente preenche a forma vazia ou “itinerante” [Ricoeur] da segunda pessoa pronominal) a par da “sombra”, que instaura a alteridade no interior da figura interlocutora. Por essa multiplicação de espelhos duplos – sustentada numa diegese constituída por casos amorosos – todo o mundo linguístico de identificação do locutor parece esboroar-se tal como o imaginara Benveniste. Aparentemente, fica abalada a autorrefe­rencialidade (condenada a ancorar-se a dois sujeitos ao mesmo tempo: o que ama a branca e o que se identifica à de sangue africano) por o complementar interlocutor passar a ser uma e outra.

Por processos de repetição do “auto-recurso” (Romeu de Melo) aplicado a qualquer dos dois «ego», e pela reiterada atribuição do estatuto de interlocutor a qualquer dos dois «tu», entende-se que a duplicação das referências não afectará a sua “ipseidade”, embora possa afectar a similaridade (a “mesmidade” de que fala Ricoeur). Ou seja: há duplicidades na leitura do carácter das personagens em jogo, que implicam a pergunta sobre se serão as mesmas pessoas, visto que uma pode estar, animisticamente, na outra – ou ser “a outra”; mas não há duplicidade sobre a sua permanência (há, portanto, algo que, dessas pessoas – e sejam quantas forem – dura univocamente aos olhos dos outros, o que se representa nos poemas pela inquestionável ads­tri­ção do «eu» à personagem masculina cindida, e pela simetricamente inquestionável adstrição do «tu» às personagens femininas duplicadas pela cisão do «eu»).

É também por este processo que se torna possível ao crioulo confi­gu­rado como autor dos poemas manter uma identidade mínima, ainda quando ele sinta que não é o mesmo, ou que os outros podem não ser os mesmos. Ele é o mesmo na medida em que o discurso lhe reitera a filiação – discurso esse que, sendo poético, foi funcionalizado como redentor e depositário da identidade inicial; mas perdeu a unidade que o definia, adquirindo uma complexa junção de contrários (que sonhou mais o que deixou de sonhar) como identidade subs­ti­tuta. E outra cisão afecta a pessoa através da qual ele se reiterava também: a mulher amada é tanto uma quanto a sombra de outra, a “outra / Que tão estranhamente contigo se parece” («Do Amor Impossível», poema III). Isso permite confirmar a figura da cisão como o principal identificador da criouli­dade na qual emerge a configuração central do livro.

Após o período que serve para essa complexa e cindida identificação do sujeito – não nos outros mas, neste caso particular, entre si e os outros, envolvidos todos num processo que se caracteriza por des­mul­tiplicar as figurações originais – a temática do amor nos 100 poemas irá desenvolver-se mantendo a validade representativa das duas formas de irrealização amorosa (por idealização e por turvações de comu­ni­cação), mas alheando-se da correspondência entre a cor da pele e a expressão do afecto. Por isso as marcas que, no texto, sintonizam uma figura feminina com uma raça situada, vão desaparecer, chegando-se ao ponto de, mais tarde, poderem misturar-se a mulher branca e a sensualidade anteriormente atribuída à de sangue negro («Simples Poema de Amor», 1959).

A função da alteridade multiplicada é a de representar o alongamento que possibilita a figura da cisão – quer no crescimento da genealogia, quer na expansão da personalidade ao meio, quando ela com ele es­ta­be­lece os pontos preferenciais de interesse e a alteridade mais for­te­mente reguladora da identificação no período da “descoberta do amor” (que é a descoberta do outro absoluto: outro sexo, outra forma de pen­sar, por vezes outra cor de pele) [55]. Quando o outro em absoluto já não é necessário, tendem por isso a desgarrar-se nos versos as marcas duplas das ‘raças’ e os binómios da feminilidade.

Só quando, momentaneamente, o locutor rememora, recapitulando a biografia sugerida, reaparece a figura do triângulo rácico e de características como as acima apontadas para uma das fases da aprendizagem do sujeito. De resto, as relações amorosas ir-se-ão sucedendo ao ritmo de desencontro e espera, de fracassos, vazios, idealizações, realizações, silêncios e afinidades várias, como sucede nas duas antologias de contos assinadas por Mário António (Crónica da Cidade Estranha Farra no Fim de Semana), e independentemente da localização rácica das pessoas em causa, ou mesmo da sua personalidade específica – cada vez menos retratada.

 

Se até aqui tenho privilegiado os momentos em que o sujeito-locutor se identifica pela diferença ou na diferença, agora confirmarei resumidamente a conclusão que tenho tirado (a de que ele nos propõe a identidade crioula como aquela que explica e enquadra a sua personalidade), através do levantamento dos momentos em que ele se identifica pela semelhança – e também fora do meio familiar próximo.

Ao fazê-lo, temos que evitar a confusão entre momentos iden­tificadores e aqueles em que simplesmente o locutor se projecta sobre alguém, como sucede em «Rua da Maianga» ou em «Linha Quatro», em relação ao menino-vendedor ou ao namorado-operário (Zito).

Identificadores são aqueles poemas, estrofes ou versos em que o escritor, por exemplo, fica integrado no seio dos homens enquanto membro da mesma espécie («Além da Vida», 1958), ou enquanto habitante do mesmo lugar e defensor da sua terra (como vimos atrás e tendo isso consequências no amor), ou quando se auto-define como poeta («Poeta, Alimentei-me de Conceitos»); ou, ainda, quando uma semelhança cultural lhe permite associar-se a outro grupo, situado no mesmo lugar e também aculturado («Herança Estética»), ou oriundo de outro espaço, mas igualmente mestiço («Três Desejos para a Noite», poema II, 1952).

Para além desses momentos identificadores no outro ou com o outro, há ainda aqueles em que o sujeito, ao praticar a auto-referência, se inscreve numa genealogia ou numa tipologia que o definem diretamente enquanto ser mestiço, dividido («Casa Mortuária», «Carta do Afogado», «Anti-Heróica» – o tópico é também característico dos escritos intimistas e autobiográficos) e confluente («O Amor e o Futuro», «Anti-Heróica»), “cheio de ser e amar a negação”[56].

 


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