Conclusão: estética e ética da crioulidade

 

Como acontece em ciência,

não há aqui forma pura.

A forma não é indiferente ao fundo,

nem o fundo à forma

(Leonardo Coimbra, O Criacionismo)

 

 

A questão em torno da qual se desenvolveu o trabalho foi a de saber como se caracterizava o retrato de autor composto ao longo da obra lírica em verso publicada por M. António. A resposta a tal questão constituiu ao mesmo tempo um objectivo e um sentido unificador das interpretações.

Ela dividia-se em duas partes complementares – tanto quanto o sejam a «forma» e o «conteúdo». Era preciso saber de que maneira o retrato se tinha construído, atra­vés de que técnicas, seguindo quais códigos, estruturas e modelos literários, funcionalizando que tópicos e recursos retóricos; mas era também necessário verificar quem resulta dessa construção, qual o rosto que se esboça como sendo o do autor ao fim das leituras efectuadas, e que teorizações ele pode suscitar.

A constituição da pergunta que centralmente me orientou deveu-se à leitura da última antologia publicada em vida de Mário António, ainda revista e consentida por ele. Ou melhor, à comparação entre a recolha final e a selecção fundadora. De que darei conta agora com a brevidade possível.

Nos 100 poemas, era previsivelmente o mesmo sujeito público que organizava a antolo­gia das composições que escrevera. Essa obra tem, portanto, o valor de uma leitura autoral que reorganiza – pela articulação macro-textual – os materiais de que dispõe. Na antologia final os poemas foram reunidos e seleccionados por uma terceira pessoa da interlocução que estabelecemos com os textos (nem o que se reclama como poeta, nem o que, sem deixar de o ser, se nos apresenta como o seu próprio leitor). A terceira leitura ressalta de uma situação diegética (exposta numa nota introdutória) em que o sujeito público M. António, garante da autoria, começa a abandonar a sua prerrogativa de proprietário do sentido dela. Uma prerrogativa que o colocava na situação de preferencial orquestrador dos materiais.

Ele cede assim lugar a uma interpretação pela qual se não pode já responsabilizar – como sucederá após a morte, inevitavelmente – e que o “post-scriptum” da antologiadora procura firmar em notas que fixam as primeiras (abstractas) intuições de resposta. A aprovação que o poeta-sujeito público teria dado ao projecto final da antologia marca a derradeira intervenção do proprietário dos versos: a leitura não é sua, mas ele agradece-a, o que sinaliza o seu reconhecimento, por assim di­zer, notarial[109].

Na nota introdutória, porém, não se refere com nitidez o papel do sujeito público na preparação do livro. Diz-se que ele pediu, “em 1984, a Maria de Almeida e Sousa que lhe fizesse uma colectânea”; e, mais adiante, aponta-se que “o autor está grato” pelo “resultado”. Perante estas frases, somos induzidos a pensar que não houve qualquer intervenção, na produção da antologia, de quem se reclama a paternidade das composições.

A indução, porém, não se confirma. Porque também aqui há modi­ficações nos poemas e nos versos se os compararmos com as versões dos 100 poemas. Ora, não é plausível que a autoria dessas mudanças fosse da antologiadora, ainda que não seja de todo impossível, isso ou uma co-autoria das mudanças. Há, não só mudanças na derivação das palavras (por exemplo “provocas” na vez de “provocadas”, em «Simples Poema de Amor»), acrescento ou alteração nos artigos e preposições (“A rua da Maianga” em vez de “Rua da Maianga”; “As eternas moças do muro” em vez de “As eternas moças de muro”) e alterações de pontuação e de distribuição gráfica, mas também versos inteiros que não apareciam nos 100 poemas e surgem nestes 50. É o caso de “Como estranhas flores desabrochadas”, da «Carta do Afogado», verso que não aparecia na antologia do abc e surge nesta. Se mudanças como as que se prendem com a pontuação ainda se podem justificar fora dos direitos autorais em nome de qualquer espécie de “revisão literária”, as outras – e sobretudo o acrescento de versos – só dificilmente seriam imputáveis à antologiadora.

Portanto, é de concluir que, ou o poeta interferiu diretamente na antologia mudando os versos, ou cedeu a Maria de Almeida e Sousa as versões modificadas para que ela as inserisse na antologia. Em qualquer dos casos, a existência de mudanças demonstra que a obra não é ainda inteiramente alheia a quem se reclama a responsabilidade pelos versos dela – tanto quanto não é uma simples recolha de poemas publicados antes. E não o é, não só por modificar-lhes elementos, como também porque nela se publicam duas composições inéditas – uma («Conta») a abrir e outra («Milenka») a fechar.

Trata-se, portanto, de uma antologia que tem o valor da passagem de testemunho da “ditadura” do autor para uma liberalização controlada perante o leitor. Uma vez que estamos em face de uma liberalização controlada da leitura, esta segunda interpretação da lírica de M. António, que a selecção e disposição dos poemas pressupõe, é ainda transicional – e isso confere-lhe o valor suplementar de uma intersubjetividade garantida na troca de interpretações entre o leitor e o autor, ou entre o locutor e o interlocutor.

Por todos estes motivos, é importante confrontarmos a nossa visão da poesia em apreço com aquela que dos 50 Poemas podemos exaurir.

A ancoragem do locutor dos 50 Poemas aos livros anteriores é evidente logo desde a nomeação do pedido que o autor fizera para que lhe reunissem os textos. Os momentos mais significativos dessa ancoragem prendem-se com a relação entre esta antologia e aquela de onde extraímos a “narração” do período formador.

A ligação entre esta antologia e a do abc é várias vezes estabelecida. Em primeiro lugar pelo título, que sugere ao prefaciador (Eugénio Lisboa) a primeira (e talvez mais interessante) das suas observações, apontando uma “tendência para o silêncio” que, se não se confirma biograficamente[110], não deixa de se conformar ao projecto inicial (e final), bem como ao facto de, nos últimos anos, a produção assinada por M. António ter escasseado notoriamente, ainda quando não se desse por terminada (para além dos inéditos e dispersos havia uma obra projectada, o Cinquentão, de que saíram apenas três poemas, publicados numa pagela da Átrio, a editora dos 50 Poemas. A obra estava no entanto pronta a sair, segundo os testemunhos da viúva Maria José de Almeida e Sousa e do editor José Manuel Capelo).

O tópico biográfico irá depois emergir em diversos instantes que reme­tem igualmente para os 100 poemas (mas não só, como veremos). A leitura feita pelo autor da capa (Lurdes de Sousa) segue também no mesmo sentido biográfico, desenhando apenas uma vez o número dos anos e das composições, encimando o substantivo etário e sublinhando o nome catalogador o de­senho dos “50”, como se do calendário biográfico se desprendesse a folha outonal da poesia.

Na p. 6, uma desenvolvida notícia sobre a vida pública de “Mário An­tónio Fer­nandes de Oliveira”, se desfaz a ficção de um sujeito poético diferenciado (o que, na capa ainda, assina «M. António»[111]), confirma a nota justificativa inicial da antologia de 1963, ao dar a vida como sinal de leitura para a obra, melhor, como autentificador e legitimador da obra, cumprindo com o mito romântico do poeta e mesclando-o com a apresentação curricular típica dos trabalhos académicos.

Na página seguinte (p. 7) surge a “nota” em que se explica a origem da antologia. Ela desempenha, ali, uma função idêntica à da justifi­cação inicial dos 100 poemas – ou à da contextualização promovida por breves anotações em outros livros, como aquela que antecede as composições bilingues de Coração transplantado.

O prefácio de Eugénio Lisboa desempenha a mesma função que os dois escritos apostos à colectânea do abc e assinados por Alfredo Margarido e Amândio César – um papel mais timidamente observável em badanas e contra-capas nos livros de itinerância.

No final, o índice, apoiado na indicação das datas em que teriam sido compostos os versos (reduzidas ao número do ano, como nos 100 poemas), recupera um recurso peculiar à produção anterior aos livros de itinerância.

A estrutura dos 50 Anos 50 Poemas alerta-nos, portanto, para a da antologia do abc, sugerindo uma leitura comparativa das duas obras. A leitura comparativa passa necessariamente por duas fases: a da similarização e a da diferenciação. Se, até aqui, pudemos observar as semelhanças e reportá-las, agora anotaremos as diferenças procurando escrutinar-lhes a pertinência.

A diferença entre os 100 e os 50 Poemas não deriva só da redução do número de composições, que acentua o carácter biográfico da interpretação que se propõe ao leitor. A principal diferença está em que as datas assinaladas a cada uma das composições não de­termina já a sequência no interior da obra. Ou seja, o critério cronológico, ape­nas iludido nos 100 poemas, é explicitamente “rompido” na organização da antologia final.

Ele não deixa, no entanto, de estar presente. Como a “condição da ocularidade”, muda somente o seu papel na hierarquia das motivações, ou dos critérios.

Com efeito, a maioria dos poemas agrupa-se por “fases”: uma que engloba es­critos datados de 1952 e de 1953 (pp. 23-36, poemas 2 a 9. O primeiro poema da antologia leva o número zero); outra que inclui as composições datadas de 1954 a 1960 (pp. 38-48, poemas 10 a 18); uma terceira reservada ao livro de transição Era, tempo de poesia (com a única datação de 1963, pp. 49-57, poemas 19 a 26); uma quarta para Coração transplantado (pp. 58-62, poemas 27 a 31); uma quinta para Rosto de Europa (pp. 64-78, poemas 33 a 43); u­ma sexta para Afonso, o Africano (pp. 79-82, poemas 44-47); e uma sétima para Lusíadas (pp. 83-93, poema 48).

Como é fácil de ver, estas fases estão predominantemente marcadas pela crono­lo­gia. O que se torna produtivo é verificar onde, quando e porquê se rompe com o critério cronológico.

O primeiro e o último poemas eram até então inéditos, o que permite justificar a sua colocação como sinal de que a lírica do autor estava ainda por conhecer em alguns dos seus momentos – quer no que diz respeito a poemas anteriores à vinda a público da antologia inicial, quer no que diz respeito aos posteriores.

A inserção dos dois primeiros poemas assenta, paralelamente, em outra sugestão de leitura – o que institui uma duplicidade significativa para a inclusão do poema inicial.

A localização, no princípio, de «Conta» e de «Carta do Afogado», não se justifica pela cronologia, dado o facto de ser um de 1958 e outro de 1960 – e, portanto, de haver poemas mais antigos colocados a seguir. O que eles fazem é, diretamente, o retrato do “autor”. Postos no lugar da apresentação da obra e de quem nela surge como locutor, a sua pre­sença propõe-nos uma leitura da lírica de M. António como uma lírica na qual principalmente se constrói um auto-retrato – no sentido comum do termo, e não no significado específico de Beaujour.

Não se trata, portanto, de um retrato cujo delineamento não é determinado pela história da personagem, como parece pretender Beaujour para os “auto-retratos”. Em «Carta do Afogado» evidencia-se a componente narrativa do retrato, mas também em «Conta» – cujo título se duplica em “dar conta de” e “fazer a conta de” – o tempo estrutura a sequência estrófica.

É certo que tal estrutura pode não ser percebida ao nível de uma leitura imediata. Mas atentemos à flexão verbal: a primeira estrofe define o locutor como ele é (daí que só contenha verbos no Infinitivo e no Presente do Indicativo); na segunda estrofe faz-se a passagem da definição presente para a passada e retorna-se à presente (corres­pondentemente, a flexão verbal aparece no presente e no pretérito); na terceira faz-se a transcrição do que passou para o presente, como se tal processo descobrisse a realidade passada (“e era secura / (...) / – nada – de mim, o leito ido”); na quarta estrofe parte-se do presente (“Passa”) para o im­perativo, que, como pedido, aponta para o futuro (“Atira-me um pouco / Da tua vida gasta, do teu fumo / Do teu álcool, teus orgasmos – rumo / ao delirante sonho, puro e louco”).

Todo o retrato está, pois, subordinado a uma sequência Presente-Passado-Fu­tu­ro, que desde logo o delimita à noção linear do tempo (à sequência anterioridade-posterioridade), onde o presente é um centro – fugaz – de escolhas condicionadas.

Os dois primeiros poemas atiram-nos, pela fidelidade à sequência temporal realista, para um modelo genológico mais próximo da autobiografia do que do “auto-retrato”, confirmando assim os “recursos de capa”, os “envoltórios” com que a obra desde o primeiro momento orienta a leitura. Eles e o último são, aliás, “envoltórios”, no sentido em que servem para condicionar a compreensão da totalidade como se se tratasse de uma indicação geral, tão abrangente quanto a que é feita pelo título.

As restantes alterações à ordem cronológica na sequência da antologia são também fáceis de detectar a partir do índice: os poemas «Retrato» e «O Tocador de Dicanza», respectivamente de 1959 e de 1961, aparecem entre os da primeira fa­se; o poema «Os Domingos deles», de 1963 (incluído em Era, tempo de poesia), faz a transição entre os de Coração transplantado e os dRosto de Europa; finalmente, os livros de itinerância sequenciam-se invertendo a ordem de publicação, seguindo-se Rosto de Europa Coração transplantado e  Lusíadas a Afonso, o Africano.

Estas alterações albergam dois significados diferentes.

A última (a colocação de Lusíadas após Afonso, o Africano), pelas datas apostas aos poemas, visa repor uma verdade biográfica que o romance público do autor alterara, visto que se datam os poemas de Lusíadas de 1976 (o livro vem a público em 1978), enquanto os de Afonso, O Africano (publicado em 1980, com 2.ª ed. em 1981) surgem com datas de 1973, 1974 e 1975. Trata-se, por isso, de uma alteração que nos confirma o cariz autobiográ­fico da leitura antologiadora artificiada nos 50 Poemas.

A inserção de «Retrato» e «O Tocador de Dicanza» entre os poemas da pri­meira fase pode-se justificar por eles possibilitarem esclarecimentos úteis ao estudo de como se forma o autor. «Retrato» coloca – vimo-lo no Capítulo III – em termos significativos a relação de continuidade entre o pai e o filho, para além de constituir, na ficção proposta (onde a diegese e a enunciação coincidem), uma reflexão do filho sobre essa continuidade, uma reflexão também ela formadora. «O Tocador de Dicanza» fixa um elemento identificador, uma personagem e um “ambiente musical” que faziam necessariamente parte do berço inicial do locutor e cuja impressão no «eu» dos versos é marcada explicitamente no texto – desde logo pelo pedido com que se inicia o poema.

A deslocação de «Os Domingos deles» para a passagem de Coração transplantado a Rosto de Europa denuncia outra espécie de “correcção” da leitura autobiográfica ao romance do autor extraído a partir, unicamente, das obras. De facto, como vimos no início do capítulo V, trata-se de uma composição que pode ser interpretada como referindo diacríticamente outro povo onde o locutor se não integra; a referência diacrítica a outro povo é transposta, pela inserção dos versos entre os poemas da Europa, para a referência diacrítica a outro país (o que podia ser biograficamente legitimado, uma vez que, segundo a nota curricular impressa no início da obra, o autor “vem a Coimbra” em 1963 participar de um colóquio), e a descontextualização da referência permite que “eles” diga genericamente respeito aos das “cidades de hoje, no Norte”, que tanto se po­dem figurar em Londres quanto em Lisboa, ou em qualquer outra capital europeia. Daí que a antologiadora tenha colocado o poema a ligar (aquilo que só o leitor das obras anteriores sabe ser) uma deslocação a Londres com uma presença em Lisboa, reforçando o sentido de unidade de toda a lírica do autor, sustentada numa compreensão autobiográfica dela.

Já a troca entre Coração transplantado e Rosto de Europa contém um significado contrário ao do ajustamento autobiográfico. Mas ela revela, por isso mesmo, ao leitor atento, o quanto a narrativa autobio­gráfica é um modelo ao qual os diversos elementos (motivos) a tratar se ajustam conforme o desenho macro-textual que se pretenda esboçar.

A menção da ida a Londres, explorada em Coração transplantado, é ocludida pelo facto de os poemas que nomeiam a capital do Reino não terem sido seleccionados. Quando se lê essa parte dos 50 Poemas encontra-se uma sequência em que de repente o sujeito fala de um outro espaço, nunca especificado pela sua localização no mapa, ou pela sua denominação comum, civil. Só no final da sequência (que integra os poemas de Coração transplantado e de Rosto de Europa) surge a nomeação de uma cidade: «Lisboa, Deitada, do outro Lado do Rio». As referências anteriores apontam, ao leitor da antologia que tome pela primeira vez contacto com a lírica de M. António, apenas uma deslocação para a Europa, a qual inclui a passa­gem ou estadia em Lisboa. O pormenor de uma ida a Londres é excluído pelo tópico mais geral da deslocação (para a Europa) – como vimos despoletador da dialéctica de cisão e saudade que caracteriza os livros de itinerância.

Trata-se de uma alteração que destaca o papel intermediário da antologiadora: ela faz o acordo possível com a vida, e a leitura que lhe parece ser a consentida, ao mesmo tempo que abre ao leitor perspetivas de compreensão que resultam de uma análise própria do romance lírico por ela reorganizado (nessa análise, o que mais interessa é o desenvolvimento do tópico “deslocação”, “trânsito”, e a ancoragem de res­posta, ou o “recurso”. Por isso socorreu-se primeiro dos poemas que melhor o marcam [ao desenvolvimento do tópico da deslocação]; e, depois, dos que reaproximam um novo espaço do inicial).

É este segundo sentido o que também orienta outro tipo de modificação: a da sequência por que os poemas aparecem nos livros e na antologia, fenómeno en­glo­bante do que acabo de estudar.

Se compararmos a sequência dos poemas em Era, tempo de poesia, Rosto de Europa, Coração transplantado, Lusíadas Afonso, o Africano, facilmente verificamos que a sua posição foi trocada. Entre «Era, Tempo de Poesia» e «Tempo II» aparece, por exemplo, «E, no entanto, eu Sei», que no livro surgia muito depois de qualquer dos dois. O mesmo sucede com todas as outras sequências, reorganizadas num constante movimento de trânsi­to e recurso da ordem anterior para uma nova e da mudança para a repetição, quando momentaneamente se recupera a sucessão inicial.

A reordenação dos poemas, dos livros para a antologia, é facilitada pelo facto de eles terem saído do seu contexto e alerta, por isso, o leitor atento, para o significado «macro-textual» das obras. Postos numa totalidade nova, rodeados por outros mas nem por todos os que os rodeavam na origem, os textos poéticos terão que ser reagrupados em função da nova totalidade de sentidos possíveis.

A nova circunscrição do sentido possui a particularidade de ter de coincidir em grande parte com a intriga dos ordenamentos anteriores. A antologiadora terá que dar, em 50 poemas, ao leitor, uma autobiografia que toda a lírica dava no seu conjunto. O lugar de cada poema será, então, determinado pela necessidade de os ligar, em fun­ção da leitura autobiográfica, uns aos outros e sem os que os acompa­nhavam de antes. Ela terá de economizar episódios (elidindo a parti­cula­rização do tópico “viagem” em “uma viagem a Londres”, por exemplo) e, pelas conexões possíveis que for conseguindo estabelecer entre cada composição e cada uma das outras, proporá outros episó­dios que podiam ter sido extraídos também da leitura de toda a lírica.

Isso explica, por exemplo, a nova localização de «E, no entanto, eu Sei», poema que podia ter sido integrado na sequência «Tempo» logo no livro original, visto que fala, como os outros desse conjunto, da inclinação por uma determinada mulher. Ou seja, visto que se integra na mesma “história de amor” contada pela sequência.

Identicamente, a inserção de «São Ossos, Esqueleto» (de Coração transplantado) a seguir a «Arimo Quimbare» (o último poema de Era, tempo de poesia incluído na sequência respeitante a esse livro) permite reinterpretar os dois poemas e parece justificar-se pelos tópicos comuns (a Bíblia – dos bispos e do homem atrás do arado; o protesto isolado com que os dois poemas terminam), os quais possibilitam uma passagem imperceptível dos temas de um aos de outro livro.

Parece, portanto, dominar a organização de 50 Anos 50 Poemas, ao mesmo tempo, uma compreensão da obra como autobiografia, uma releitura e recomposição da autobiografia composta pela obra, e um propósito de demonstrar isso mesmo sublinhando a unidade intrínseca que ata os versos de todos os livros, como se todos os livros constituíssem apenas um, a aventura autobiográfica de M. António.

Promovendo uma interpretação do geral para o particular, a unidade de toda a lírica do autor é desde logo sugerida, no índice, pela ausência de separadores indicando de que livro são retirados os poemas; sequencia-se depois pela mistura de poemas de uns livros com os de outros, como sucede pela deslocação de «Os Domingos deles»; e confirma-se quando nos apercebemos de que as sequências de cada livro não foram respeitadas ainda quando as suas unidades estavam em jogo com as de outros.

Desta leitura da antologia final fica-nos, pois, a suspeita que permitiu esboçar os contornos da questão com que parti para a leitura em pormenor de toda a obra em verso de M. António: essa obra constituía globalmente um «macro-texto» que, na sua totalidade, se podia ler como uma espécie de “autobiografia lírica”.

Se a constituição da pergunta que centralmente me orientou resultou de uma apreensão própria da leitura que os 50 Poemas propõem, a resposta seguiu, por sua vez, as duas linhas de investigação apontadas ao princípio, uma procurando a “técnica” do artífice dos versos e dos livros, outra procurando o rosto que ele configura através dessa técnica e que a própria arte utilizada espelha.

No primeiro passo da inquirição os dois aspetos foram, tanto quanto possível, considerados em conjunto. É certo que, no primeiro capítulo, quando procurei definir a lírica na qual se integram estes versos, preferi um ponto de vista intrínseco segundo o qual não era decisivo o retrato que se fazia nos textos, mas o facto de o trabalho poético se centrar nele e a maneira como tal centramento se operava (o que também considerei no capítulo seguinte). No entanto, quando, no segundo capítulo, tentei situar os 100 poemas e a restante lírica no seio das espécies híbridas colocadas entre a Lírica e a Narrativa, concluí que a definição passava ao mesmo tempo por características técnicas e pelos tópicos a que recorria a figuração do retrato do autor. Esses tópicos, ainda que não deixem de ser características técnicas, configuram determinado rosto em relação com o mundo.

Durante os dois capítulos iniciais pudemos verificar, por essa dupla abordagem, a colocação da poesia em verso assinada por M. António de uma forma que se torna agora duplamente importante: em primeiro lugar porque permitiu estruturar um “projecto de leitura” da obra que era o inscrito no código do género; em segundo lugar – vê-lo-emos nas linhas que se seguem – porque essa colocação indiciava já uma definição da figura do autor que seria aquela que ressaltaria da leitura mais pormenorizada – e atenta ao conteúdo e à referência – de toda a produção em causa.

Vimos ao longo do Capítulo I que, do confronto entre a obra e os diversos géneros, resultava uma imagem da poesia a estudar que se acordava a uma definição construtivista e criacionista de Lírica.

Construtivista no sentido em que os versos constroem centralmente um retrato do que nos dão como seu autor, convocando para isso todas as referências textuais, subordinadas ao que nos é apresentado como a sua visão das coisas (como ele as concebe, como as sente, o que pensa delas, que memórias elas evocam nele). O construtivismo que perspec­tivei apoiava-se, pois, principalmente, sobre uma categoria da fo­calização: quem foca. Defendi que era através da focalização apre­sentada como a do sujeito que o leitor esboçava uma ideia do autor.

Criacionista na medida da inevitabilidade da reserva, para o leitor, de um “espaço de manobra” suficiente para reconstruir o sentido final dessa figuração. Mas também na medida em que é possível postular que, se alguma relação há entre o “autor empírico” e o textual, é uma relação de criatividade, em que cada um possibilita a modificação do outro a cada momento: o “sujeito real” inventa-se hipoteticamente na escrita e os seus conhecimen­tos artísticos e pessoais apoiam-no nessa invenção chegando mesmo a inventá-lo a si num efeito de ricochete.

Fundado nesta hipótese, estruturei a leitura a partir do estudo da construção textual do sujeito e alheando-me do que teria sido a sua “vida real”, ou mesmo a sua “vida pública”, na medida em que ele tem espaço para se construir independentemente delas e na medida em que nunca podemos saber ao certo se a “vida real” (ou a leitura que a pessoa do autor faria da sua vida real) se projecta sobre a “vida poética”. Não me interessou, portanto, a vida pessoal e pública de Mário António Fernandes de Oliveira, mas a composição textual  da figura de um autor que, como vimos no início do Capítulo V, possui significativamente um nome, em duplo sentido, próprio: «M. António».

Isso permitiu-me passar a papel quase transparente os traços de um rosto sem que me pudessem acusar de projectar o que sabia acerca do contexto que rodeava quem o desenhou enquanto o desenhou.

Ao comentar a obra de Kate Hamburger pude igualmente notar a impor­tância, na definição do género lírico, do conceito de «macro-texto» – que não cos­tuma participar dessa caracterização. Com efeito, quando falamos num romance, falamos num conjunto articulado de capítulos ou episódios; mas, quando falamos num “livro de poesia” (e, por vezes, de contos), pensamos em composições desgar­radas, como se, lá dentro, umas não tivessem nada a ver com as outras, como se a sua conjunção fosse meramente aleatória, ocasional.

Pude conceber então que a aparência aleatória da disposição interna das composições nos “livros de poesia” era uma das determinações do género lírico – e que, portanto, a distribuição dispersiva, aparentemente caótica, dos poemas era já por si portadora de significado – pelo menos (como vimos no Capítulo II) para a destrinça entre Lírica e Narrativa. A abertura facultada pela atenção à realidade global do livro permitiu-me ainda conceber uma outra hipótese, decisiva, de leitura – desenvolvida igualmente na primeira secção do Capítulo seguinte (Capítulo II). Tratava-se de tentar saber se havia ou não uma ordem (cronológica, tópica, ou dialéctica) por detrás da de­sordem aparente que envolve as obras líricas. Essa ordem, como é lógico, resultaria também da articulação “diegética” das referências, conformando-se, portanto, como possibilidade de leitura – independentemente de ter estado ou não “na mente do autor”, como diria um subjectivismo expressivista.

Aplicada a hipótese à leitura dos 100 poemas, verificámos que a cronologia estruturadora da antologia a confirmava e, depois, ao longo dos Capítulos III e IV, que era viável uma leitura textual que nos propunha uma narrativa pessoal centrada sobre a figura do autor: de onde vinha, onde crescera, como se formara. Ou seja, a aplicação da hipótese na leitura da antologia inicial era produtiva ao ponto de nos permitir a suspeição de a lírica de M. António constituir uma espécie de “autobiografia”, constitucialmente lírica.

Por esse facto, a colocação literária da poesia em verso que me preparava para estudar com mais pormenor teria de situar-se entre uma especificação da Lírica (aquela que afecta ao autor todas as categorias da focalização) e uma es­pecificação da Narrativa, que parte do conceito de autobiografia, ou relato de uma vida contada por quem se apresenta como autor, e aproveita noções como a de «programa narrativo» (exploradas no Cp. III e a explorar ainda ao longo desta exposição). Verifiquei então que a poesia de M. António, sendo lírica pela maneira como se estruturam os poemas, e parecendo ser lírica e narrativa pela maneira como se estruturam os livros[112], aglutinava também características atribuídas a espécies híbridas tais como o “diário íntimo” e o “auto-retrato”.

A situação genológica mais apropriada para descrever o trabalho poético as­si­nado pelo autor era, portanto, centrada sobre um cruzamento para o qual con­fluíam diversas espécies elas próprias também oriundas de uma zona de cru­za­mento e confluência de matrizes líricas e narrativas. Isso incluía a consideração dos tópicos ou lugares comuns que o texto abrigava para delinear o rosto do autor – tópicos esses que eram iguais aos que Girard identificava nas autorias dos “diários íntimos”, e que Beaujour identificava nos “auto-retratos”. Tais tópicos, ao longo dos restantes capítulos, foram também considerados, referindo, sempre que me ocorreu, o facto de eles terem sido notados por outros estudiosos em obras “intimistas”.

Os tópicos encontrados eram por vezes contraditórios, como a teorização daqueles autores assinala. Ou seja: os tópicos típicos de espécies híbridas revertiam, eles também, para uma configuração complexa de um retrato pessoal onde confluíam características diversas e, por vezes, opostas.

Quando, portanto, iniciei a leitura mais atenta e pormenorizada das obras, tinha várias hipóteses de trabalho e uma forte suspeição. As várias hipóteses de trabalho resumiam-se numa só – se concebêssemos esta lírica enquanto um con­junto «macro-textual» híbrido que possibi­litava a construção, ou reconstrução, pelo leitor, de uma biografia (portanto, de uma narrativa) centrada sobre o «eu». Quanto à suspei­ção, era ela a de que a noção de cruzamento constituía ou determinava o critério principal de composição utilizado por M. António, visto que já o tinha sido para as escolhas genológicas que fizera.

O trabalho desenvolvido nos dois Capítulos seguintes centrou-se prin­cipalmente na análise e interpretação dos 100 poemas, tomados como primeiro capítulo de uma autobiografia lírica – o que “narraria” a for­mação da personalidade do autor. Esse tema ocupou os Capítulos III e IV – um de carácter predo­minantemente analítico, outro procurando sintetizar as primeiras conclusões da leitura e teorizá-las.

No Capítulo V tive oportunidade de ver como a ideia de autor, em cada um dos livros posteriores aos 100 poemas, era trabalhada de modo a reportar o leitor ao «eu» da antologia inicial. Assim, os textos conduziam a leitura para uma sugestão narrativa remetida ao percurso poético de um mesmo locutor, por comparação entre as referências que o enquadravam de obra para obra e por comparação entre as técnicas por ele utilizadas.

A recorrência do «eu» inicial era assinalada, portanto, pela repetição de referências identificadoras antigas, e pelo recurso a processos de composição idênticos que iam sugerindo um “estilo” próprio. O estudo das técnicas de composição definia, no seu nível, a imagem do autor tanto quanto o levantamento dos tópicos que, na “diegese” liricamente sugerida, o identificavam.

A interpretação, que vou levar a cabo, da autoria composta pela poesia em verso de M. António, ficará, portanto, condicionada pe­la conjugação entre o possível significado a extrair ao estilo construído nos textos e a configuração “diegética” de um retrato autoral.

 

Os vários percursos diegéticos sugeridos a partir das obras líricas em verso assinadas por «M. António» podiam resumir-se a um: alguém cresce em Luanda, lá forma a sua personalidade, passan­do mais tarde a outro continente, de onde circula pelos restantes.

Quem é esta pessoa, como se define no conjunto dos momentos que formam o seu trajecto?

Vimos, ao longo do Capítulo III, que os 100 poemas definiam uma fi­liação para o «eu» dos versos, a qual se completava por retratos co­lectivos, sobretudo o das “donas do tempo antigo” e o das suas “filhas de hoje”. Isso estava de acordo com uma das características apontadas por Lejeune à autobiografia, o que reforçava o enquadramento genológico proposto nos capítulos anteriores, híbrido já de si.

A filiação do sujeito-locutor era composta por uma avó, a mãe e o pai, falecido quando o “protagonista” era ainda jovem. Tratava-se de uma filiação “indiferenciada”, ou seja, em que “o parentesco é transmitido tanto pelo pai como pela mãe”[113] – por isso, de uma ascendência ou linhagem cuja definição se afastava da que é tradicional entre as etnias bantos de Angola mais próximas da zona de Luanda. Esse facto era reforçado por nunca se dizer ao longo dos textos se a avó era materna ou paterna.

Quer a avó, quer a mãe, eram definidas como membros de uma sociedade onde havia pelo menos duas culturas em contacto. A reacção das duas personagens à situação pluri-cultural em que foram tomando consciência de si concretizava cisões face ao seu mundo formador, cisões que as levavam a cruzar referências com a outra cultura em presença, ou a tentar apenas imitar essa outra cultura.

Vimos que o primeiro tipo de comportamento (cruzar referências) – apesar de fun­dado numa cisão – permitia conceber um modelo de “a­prendizagem” que perspetiva o cruzamento cultural como resultado do desenvolvimento de uma pessoa em interacção com o meio e cres­cendo com ele. Ou seja, um modelo harmonioso de mistura de culturas face ao qual, ao invés de uma despersonalização e de uma a­cul­turação, parecem mais pertinentes os termos per­sonalização e trans­culturação. Harmonioso, claro, no que diz respeito à composição final da per­sonagem, à conclusão ou lição que a narrativa da sua vida permite constituir globalmente.

Numa oposição cujo carácter contrastivo me pareceu nítido e ampla­mente funcional em termos narrativos, o tipo “imitativo” personificado pela mãe podia por sua vez colocar em risco a sabedoria representada pela “avó negra”, personalizada e transculturante, condicionando mais estritamente o desenvolvimento do filho à educação formal e aos modelos sociais trazidos pelo colonizador.

Dos dois comportamentos antecedentes, o locutor valoriza o da avó, ao mesmo tem­po se distanciando do (e confrontando com o) da mãe. A figura da avó é, pois, equivalente à de um destinador ou doador nos esquemas narrativos de Propp ou de Greimas, determinando as escolhas que precisam os programas narrativos ideali­zados pelo sujeito, e detendo a sabedoria que ele pretende alcançar. A figura da mãe surge, pelo contrário, como a de um oponente que impõe alterações (quando não inversões) aos programas narrativos idealizados, alterações que atingem a própria natureza desses pro­gramas. A cisão geracional por ela protagonizada, bem como a morte da avó e do pai, impedem a realização imediata do “contrato” que a narrativa pressupunha[114]. O “saber-fazer” do Destinador, enquanto “saber interpretativo”[115], que explica a morte e o mistério, terá que ser reinterpretado, readquirido ou recuperado, mas não se repetirá no neto / filho. Por todos estes factos, o carácter interpretativo do Destinador – e, portanto, o grau de variabilidade no seio da “sabedoria” que ele detinha – irá aumentar, redundando assim a noção de ser a verdade sempre relativa, vária, condicionada por interpretações locais, pontuais e pessoais.

No entanto, entre os dois tipos de posicionamento face a uma situação pluri-cultural, o texto identifica à mesma o locutor com aquele que se caracteriza por um crescimento equilibrado e personalizado, característico de uma visão do mundo que se aproximaria do que se chama hoje o «perspectivismo», porém de um perspectivismo fortemente personalizado e ligado por uma linha de continuidade complexa mas definida e coerente. Imposto pela mãe um destino diferente, o protagonista reactivará no novo percurso a identidade que lhe dava o pro­grama narrativo que inicialmente escolhera, reinterpretando de forma muito própria o saber da avó. E vai fazê-lo através da poesia.

Quanto à figura do pai, verificámos que o seu desaparecimento a desfuncionaliza neste processo transculturador ou enculturador, refuncionalizando-a no jogo da identidade pessoal do sujeito. A função da figura do pai, a esse nível, advém da ampla conotação que o texto promove entre ele e o sonho. É por via do sonho e da reminiscência saudosa que o autor imporá ao meio uma figura “autêntica” de si, concretizada (ou configurada) nos poemas públicos e nos quais também – como nos sonhos – se continua o pai.

A “autentificação” da figura de si torna-se necessária na medida em que, tal como a avó e a mãe, também a caracterização do sujeito – enquanto pessoa que se forma num contexto multi- ou transcultural – passa obrigatoriamente pela imagem da cisão entre uma identidade inicial e outra posterior.

Tal como sucede com a avó, o sujeito procura tomar a condução do processo transculturador, neste caso apoiando-se numa identidade inicial expressa pela poesia. Mas, tal como sucederia com a mãe, há entre o seu passado e o seu presente uma diferença desqualificadora, da qual ele se ressente (ao passo que a mãe aderia à desqualificação). A cisão é, pois, mais sofrida e problemática no sujeito que no modelo por ele escolhido – o que denuncia um momento posterior do processo transculturante e a marca pontual e pessoal que relativiza a “verdade” do saber erigido em valor.

Observámos também que a figura da cisão é inseparável do retrato das per­so­na­gens crioulas do texto – precisamente as da filiação. Vimos ainda que ela ine­vitavelmente chama pela saudade, a qual permite reunir o locutor presente à sua identidade passada, fixando-se o processo através da escrita poética. Por essa reunião do locutor ao passado é que ele retoma as rédeas do processo de construção da sua identidade, estando preparado para assumir qualquer forma de cisão imposta pelo meio – ou pela emergência num novo meio – e reatando a personalização característica do modelo por ele escolhido, ou seja, actualizando o valor que o modelo iconiza.

Para compreendermos a estruturação narrativa a partir deste aspecto, parece-nos clarificadora a utilização de alguns termos greimasianos, os quais desde logo nos darão uma perspetiva, ao mesmo tempo de conjunto e literária, sobre a lírica de M. António.

Nessa lírica, os 100 poemas estabelecem as condições de “competên­cia” e “performance” necessárias à composição narrativa de uma ideia de sujeito, e à ilustração ficcional do conceito de programa narrativo. O sujeito competente deve possuir um programa narrativo actualizado (deve ser um sujeito que age em função de um valor estabelecido ou reconhecido como tal por si), e marcas da realização deste, na modalidade de “querer e/ou dever e de poder e/ou saber fazer”[116]. Por sua vez, a performance do sujeito é a realização de um programa narrativo, “chegando o fazer exercido ao resultado inscrito no enunciado de estado (conjunção ou disjunção)”[117].

A “formação da competência”, que se dá nos 100 poemas, toma “a forma sintáctica previsível de uma sequência de programas narrativos destinados a produzir o seu enriquecimento progressivo”[118]. Ora, na antologia fundadora, o que encontramos é precisamente a concorrência enriquecedora de duas combina­tórias possíveis de sequências narra­tivas, uma articulando o sujeito com o valor iconizado na avó, outra ao imposto pela mãe. Como vimos, as condições de realização positiva passam pela afirmação (pessoal e social) do sujeito enquanto poeta (pressupondo-se que pode e quer sê-lo). O sujeito-poeta, dessa forma, está apto para enfrentar as novas situações, o resultado de qualquer cisão, no meio ou na história pessoal. Essa será a terceira via – a do locutor – face às combinatórias por ele inicialmente idealizadas (em função da avó e do pai), ou àquelas que o oponente lhe impôs.

Os “livros de itinerância” caracterizam-se, por isso, por levarem o lo­cutor para novas paragens. Ele só existe em função delas, porque são elas que põem à prova a sua capacidade de se manter idêntico ainda quando haja cisões, ou mesmo por havê-las. Porque, mais do que isso, são elas que fazem com que ele exista enquanto sujeito, porque lhe provocam o estado em que a poesia é necessária condição de per­manência e de tal forma fica legitimada. Visto que ele só se afirma (em face dos programas narrativos iniciais) enquanto poeta por causa de uma cisão, e perante um meio que lhe desconhecia a intimidade; visto, ainda, que a deslocação para novos espaços cinde o sujeito (como vimos no Cp. IV) e o coloca perante um meio desconhecido; sendo o poeta a sua forma de alcançar um estatuto social e semioticamente reconhecível, a figura da deslocação justifica a escrita na medida em que a “obriga” a aparecer para afirmar o sujeito numa nova cisão e sociedade ou paisagem. O que faz o leitor apreender o drama numa vida “verdadeira”, aneste­siando-lhe a consciência de estar perante uma “ilusão”. A deslocação é, por assim dizer, o “álibi” da poesia, inserindo-a no romance autobiográfico como algo necessário à vida, e que garante ao leitor a sua unidade e “naturalidade” (em todos os sentidos que esta palavra possa tomar).

Por isso tudo o resto pode falhar ou ser ilhado: a infância perde-se, os “sonhos” de menino vão com ela na enxurrada como navios de papel, a filiação há-de ser apagada na subscrição da maior parte dos textos se­guintes (e no nome do autor). O que fica são fragmentos identifica­dores, presentificados pela poesia e pela saudade, conjuntados ao «eu» quando este se encontra em perigo perante o outro, o novo.

O sujeito virtual (o que antecede a aquisição de uma via própria para realizar o valor procurado[119]), perde a identidade primeira, actualizando-se por aquisição de outra consciência ou de outro carácter, e realizando-se, enquanto ipseidade, apenas como poeta saudoso, ou seja, tornando-se um sujeito real por cisão, transmutação e presentificação do passado.

Nos livros de itinerância o locutor procura por isso identificar-se com outros (para tornar presente e visualizável o passado), num processo conhecido pela teorização do “cruzamento de culturas”[120]. Ou então procura desnudar-se, cindir-se do pas­sado, para receber o presente e o conhecer melhor, incorporando a ci­são como instrumento cognitivo. A este momento de cisão e de a­bertura ao outro seguem-se inevitavelmente reencontros saudosos ou dolorosos com a identidade inicial. Ela é, em vários instantes, chamada a comparecer para asse­gurar uma dupla função: ao nível do processo identificador, garante a unidade identificadora do sujeito; ao nível do projecto narrativo, sus­tenta a ancora­gem do «ego» ao locutor dos 100 poemas, assegurando a sua verdade semiótica.

O constante regresso saudoso ao passado identificador provocará um repetido cruzamento de referências as mais diversas, estruturando a fi­gura do sujeito como sede de uma confluência contínua, que ora o dis­persa, ora o enriquece. Assim ele cruzará línguas e culturas, observará outros cruzamentos noutras terras que não a sua (como Lisboa, Londres, ou Istambul), projectar-se-á sobre personagens his­tóricas en­quanto personagens passíveis de uma definição crioula (D. José, Afon­so o Africano). A sua maneira de se ver, a que herdou nos quin­tais e na Samba, será, pois, reutilizada como maneira de olhar para o mun­do, provocando constantes releituras da realidade passada (a infância que “pertence também aos turcos”) e mostrando como a realidade pre­sente e não angolana pode ser outra quando vista à luz da inter­preta­ção típica da crioulidade originalmente circunstancial e circunspecta.

Pela típica situação de cruzamento em que se forma, e que se repercute na es­tru­tu­ração da sua identidade, como se insinuara já nas escolhas genológicas, o locutor fica, pois, confirmado como um «crioulo». A con­figuração psicológica do autor pelo texto personifica, portanto, a definição básica segundo a qual a “interacção constante das culturas conduz à formação de culturas híbridas, mestiças, crioulizadas”[121].

Precisei, no princípio do Capítulo IV, a destrinça entre ser “criou­lo” e ser “mestiço”, bem como o que significava ser crioulo no con­texto que a obra criou como sendo o que rodeava o autor no período em que se formou a sua personalidade. Vimos também que o locutor dos 100 poemas se define, não só como crioulo, mas também como mestiço. Ao fazê-lo ele torna mais visível a imagem da crioulidade, na medida em que a figura do cruzamento se corporiza, adquire traços físicos – e amplia a imagem do cruzamento, levando-a a transpor o universo psicológico e a ingressar no mundo físico.

Unificada a imagem do locutor, através dos diversos recursos que es­tudámos ao longo do Capítulo V, a sua deslocação para outros con­ti­nentes, confrontando-o com novas sociedades, refuncionalizando-lhe a maneira crioula de se identificar (por cisão e saudade, por dife­renciação e identificação, por oclusão ou cruzamen­to de referentes), projectando-o sobre outras mestiçagens e outras transcul­tura­ções, universaliza-o na medida em que o experimenta fora do seu berço de origem. A funcionalização do processo de aprendizagem típico do sujeito crioulo, nesses novos espaços, prova o alcance universal da sua definição, a qual se projectará também sobre os vários níveis por que passam as sociedades transculturais, correspondendo aos diferentes níveis diferentes obras[122]: o bilinguismo (sobretu­do acentuado em Lusíadas), a metrópole cosmopolita (figurada em Lis­boa e, depois, em Londres, nos dois primeiros livros de itinerância), e a sociedade pluri-cultural projectada a Leste ou, principalmente, na América (em Afonso, o Africano).

Nessa medida, podemos defender que a lírica de M. António personaliza o per­curso da formação, actualização e universalização da crioulidade originalmente a­ngolana. Ela mostra-nos, não só como se forma um filho da terra, mas também que a habilidade sincrética na ontologização do mundo possui uma pertinência universal, nos dois aspetos em que não apenas se mostra em qualquer parte como também dá a ver um qualquer espaço-tempo, o mais inespera­do que possamos conceber.

A questão que ora se nos coloca assume um duplo carácter: por um lado, saber como escreve um crioulo, ou seja, saber se há uma maneira de escrever cuja significação se combina com o retrato do «eu» traçado ao longo dos versos e resumido agora; por outro lado, firmar o que dá a crioulidade a ver aos outros ao devolver-lhes o “seu” mundo, para a partir daí definir, a par da possibilidade de uma estética crioula, a eventualidade de uma ética crioula exaurível destas obras.

A conclusão que tinha em mente no início desta secção (“M. António” é o locutor crioulo da autobiografia lírica sob esse nome fragmentariamente pu­blicada) pressupõe que a configuração do locutor se mantém sempre de acordo com a identi­dade que o texto nos propõe inicialmente ser a sua. Ou seja, que “M. An­tónio” é um crioulo inserindo-se em, ou visitando, outros continentes ao mesmo tempo que se revisita neles. Para que tal conclusão fosse autenticada, precisei demonstrar como a “crioulidade” foi posta a funcionar nas obras de itinerância, como a miscigenação se comportava perante os novos espaços.

A crioulidade nessas obras funciona a dois níveis, como vimos: no plano estético, pondo em marcha proces­sos de composição que reme­tem para a ideia de cru­za­mento; no plano ético, interseccionando identificadores de tal forma que a leitura nos conduz à – ou possibilita a – definição de uma moral, aquela que subjaz ao «Discurso sobre o Regionalismo».

O nosso estudo, portanto, desenvolveu-se e resume-se em torno destes dois vec­tores fundamentais.

 

 

Uma Estética da Crioulidade

 

Deu para ver o quanto as opções genológicas da lírica de M. António suscitam uma reflexão sobre o híbrido, ou sobre a figura do cruza­mento. Só por si, tal facto indicia logo opções poéticas que remetem para a ideia de crioulidade, na medida em que ela se configura principalmente pela noção de choque e de confluência cultural.

A essa luz, ganha um sentido mais amplo a significação do poema «Herança Estética». Ele não figura somente uma escolha anti-realista (oposta ao “exagero do nú”) e localmente fundada (porque herança, além disso corporizada num habitante do subúrbio luandense). Também dá corpo à ideia de uma estética da crioulidade quando fala na “camisa sarapintada / Com variados desenhos”, conjugada aos “óculos vermelhos” através dos quais se assume um (eventualmente mau) gosto importado a título de marca própria e autêntica, numa postura que só mais tarde seria assumida noutras teorizações acerca do «hibridismo» cultural[123].

A figuração da crioulidade como resultante do cruzamento irá depois concretizar-se pelo retrato do crioulo enquanto ser mestiço, que é fruto da mistura de duas ‘raças’. Tal facto prende-se a uma característica apontada ao raciocínio lírico de M. António, que imaterializa “as coisas materiais” e empresta “um corpo visível às coisas que o não têm”, na medida em que o mestiço torna visível, na sua definição biológica, o que se pretende nomear com a palavra crioulo em termos culturais.

O característico movimento de imaterialização do material e corporização do imaterial irá sugerir ainda a proximidade existente entre a definição do ser crioulo e a teoria da saudade. Com efeito, o sentimento saudoso, enquanto móbil de um constante movimento de trânsito e recurso entre as diversas categorias atribuídas pelo homem à realidade, leva a pessoa a cruzar as mais diferentes referências e o artista a interseccionar o material e o espiritual em termos que são praticamente iguais aos que Natércia Freire utilizou para falar dos 100 poemas. Como disse Fernando Pessoa, no seu conhecido comentário à «Nova Poesia Portuguesa»[124], o saudosismo promove simultaneamen­te a “espiritualização da natureza” e a “materialização do Espírito”. O saudosismo angolano, se assim se pudesse falar, faz o mesmo. De facto, despidas as expressões do peso que lhes trazem a filosofia romântica e o conhecido projecto panteísta alimentado pelo autor da Mensagem, fica a pairar a sombra da frase pessoana sobre o artigo de Natércia Freire, sombra que se justifica face à lírica, não só dos 100 poemas, mas de toda a obra assinada por M. António.

A corporização da crioulidade nos e pelos textos em causa não passa, portanto, somente pela figuração de elementos ou referências citados pela diversidade para que remetem. A presença do crioulo é indisso­ciável das marcas de cisão psicológica e ontológica, as quais por sua vez emergiam sempre que se falava de saudade, uma saudade “bela e nua” que promove cruzamentos ao mesmo tempo reconhecedores e superadores da cisão que a gera.

Concluí, por isso, que o crioulo podia ser definido psicologica e ontologicamente pela “dialéctica” da cisão e da saudade, a qual ins­cre­ve a sua marca nos próprios versos. Se, de um plano físico di­reccio­nado para outro cultural, a “mestiçagem inaugura um mundo” – como diz o autor em Memórias & Epitáfios – o ponto de partida psíquico para a mesma conclusão cultural é, nesta obra, equivalente a afirmarmos que “a cisão inaugura saudosamente o ser nesse mundo”. Num texto poético, a inauguração do ser é a sua instalação na escrita através de técnicas específicas, que não se ficam somente pela ideia de cruzamento, assomando por igual nas figuras de suspensão e descontextualização que levantámos.

Com efeito, pudemos também considerar, no final do Capítulo dedicado à cisão e saudade, a definição de duas fases nos 100 poemas, a última das quais se prolon­ga pelos livros seguintes. O que separava essas fases era a progressão de um discurso literário. Num primeiro momento, tudo era sacrificado à redução da sintaxe ao verso e à estrofe; num segundo momento, os elementos lógicos, sin­tácticos e rítmicos vão-se começando a desenvolver independentemente, recrian­do a unidade redutora inicial numa organização mais complexa do poema. Está­va­mos, portanto, perante um crescimento, mas um crescimento para a diversidade e a vaguidão, enriquecedor e variado.

A figura principal que desta evolução resultava era a da suspensão. Uma suspensão verificável, também ela, por vias várias. Dessas vias, há duas que me parecem muito significativas.

A primeira prende-se com o que chamei «transporte», para substituir o estrangeirismo «encavalgamento». Através do recurso ao «transporte», o texto o­briga-nos a suspender e a religar a leitura do significado das frases em função do ritmo ou da respiração. Dessa forma usa-se um artifício que se combina com a ideia de trânsito e recurso, de cisão e saudade, que seria inse­parável da definição de crioulo no texto. Também dessa forma encontrávamos um artifício que nos levava a pensar nos vários caminhos possíveis (o do som e o do sentido, o da respiração e o do pensamento), na diferenciação de trajectos para a qual a teorização da crioulidade ou do cruzamento de culturas aponta.

Os mesmos significados podíamos encontrar para outra das vias pelas quais a figura da suspensão se insinua no tecer dos versos e das estrofes. É aquela que faz interromper o ritmo pela introdução de uma informação, ou que faz interromper a progressão informativa para retomar um assunto que tinha ficado para trás, ainda que o ritmo não tenha sido afectado.

Nestes casos, a progressão rítmica não tem que ficar obrigatoriamente de um lado, ficando do outro a progressão sintáctica e lógica – como sucedia com a figura do «transporte». A progressão sintáctica, a rítmi­ca e a lógica podem ser interrompidas pela “recor­dação”, pelo retorno ao que se tinha deixado antes, que só afectivamente pode ser expli­cado. Temos, aí, uma afectividade que se solta do ritmo e da sintaxe, fazendo perigar a noção tradicional que nos diz que elementos como o ritmo ou a rima “exprimem” a afectividade do sujeito, enquanto a sintaxe se relaciona com o seu pen­samento narrativo ou lógico.

Ao soltar a afectividade do ritmo, o artífice dos versos acrescenta mais um ao nú­mero dos níveis de composição. A organização do cruzamento de níveis de com­po­si­ção torna-se, portanto, mais fluída, aberta a um maior número de possibilidades – o que mais acentua a sua proximidade com a ideia básica de crioulidade e com a progressão do conhecimento no período formador do indivíduo, que é um conheci­mento que progride do uno para o múltiplo.

Com efeito, pudemos verificar que a formação do sujeito-locutor ao longo dos 100 poemas progredia por rupturas, mas também por uma intersecção de níveis cada vez mais complexa que fazia o contraponto à cisão. De dois níveis iniciais (o re­presentado pela avó e o represen­tado pela mãe) parte-se para três (o terceiro é o do sonho e da poesia, personificado no pai e no locutor), e para a mistura dos três numa síntese pessoal e em aberto; desses três parte-se para quatro, uma vez que o sujeito-locutor se divide entre o que foi e o que é, estranhando-se e pro­cu­rando reunir-se. Por tudo isso, em Rosto de Europa, o locutor descobre em seu sangue (tópico fundamental da definição de crioulo que nos faculta) a Europa; mais tarde encontrará a sua infância na Turquia, ou encaixará o quimbundo numa distribuição literária das palavras onde, de acordo com outras (raras) tentativas idênticas, aproxima a tradição poética banto da estrutura paralelística das cantigas de amigo e da sua reapropriação no século XX.

As figuras de suspensão permitem-nos, portanto, estabelecer nexos diretamente com a “dialéctica” da cisão e da saudade e com a noção de cruzamento. A um nível mais profundo, ainda, parece-me possível hierarquizar a relação entre os três tó­picos. A dialéctica da cisão e da saudade, levando o sujeito a interpor entre si e o que vê aquilo de que se sente saudoso, provoca a inevitabilidade das práticas da suspensão e do cruzamento de índices semânticos (traços de paisagem, traços do corpo, traços psicológicos). Ela fundará, portanto, a própria estética da crioulidade. Por outro lado, não deixa de estar condicionada a sua emergência à existência de uma situação multicultural, no que a saudade crioula poderá diferir da portuguesa.

O aprofundamento do estudo das espécies de suspensão praticadas leva-me ainda a confirmar esta íntima ligação entre cruzamento, saudade, cisão e crioulidade.

Uma forma particular de suspensão era a do recurso à descontextuali­zação dos motivos. Ela permite que, sem deixarem de ser personaliza­dos, os motivos se tor­nem dificilmente localizáveis num espaço “civil”, ou num tempo calendarizado, por essa forma de abstracção se aproximando do “vago” cultivado pelos poetas saudosistas portugue­ses – eles também explorando motivos personalizados.

A fuga à circunstancialização dos motivos liga-se igualmente à ideia de cruzamento, por “essa possibilidade” que ela cria de, como diz Heitor Gomes Teixeira numa carta publicada na badana de Lusíadas, “iludir o referente, já que a informação recolhida é uma que não é senão outra ou, às vezes, outra ainda”. Ou seja, por facilitar a desmultiplicação metafórica.

A amputação do contexto não constitui porém, diretamente, metá­fo­ras – que são já, pela definição aristotélica, cruzamentos realizados (um termo no lugar de outro). Ela coloca as palavras a um nível de abstracção, de depuração (característica apontada por todos os comentadores da obra do autor), que permite ao leitor realizar diversas operações metaforizantes, quer dizer, colar-lhe vários rótulos ou referentes, cruzar as palavras com “realidades” várias.

Se a emergência da descontextualização e das figuras de suspensão nos remete indiretamente para a ideia de cruzamento, fundado este na dialéctica da cisão e da saudade, vários outros recursos constituem diretamente experiências poéticas de mistura de referentes.

Entre eles ressalta sem dúvida a figura da projecção, que vai assumindo várias direcções ao longo dos livros.

Ela serve para assimilar a figura do autor a “crianças negras”, à Europa (através da corporização da crioulidade em mestiçagem, como sucede em Rosto de Europa), ou sobre outros crioulos (os cabo-verdianos, os americanos). E também a assimila a configurações poéticas com as quais o retrato do locutor se vai in­ter­textualizando, como sucede com a citação de Rimbaud na «Carta do Afogado».

A dialéctica de cisão e saudade permite ainda projectar sobre o presente o pas­sa­do, levando à releitura deste ou à leitura daquele. Dessa projecção resultam cru­zamentos de paisagens, de elementos culturais (transformados em tópicos de in­fância) com elementos de outras culturas, ou de imagens literárias com a figura do interlocutor (por exemplo a “Vénus de cabelos desfrisados”, tão ao gosto da lírica novecentista angolana), ou, ainda, de marcas do passado pessoal sobre a mesma imagem (presente) do interlocutor (cf. «A Sombra Branca»).

A constante projecção promovida por esta lírica é, como disse no Capítulo V, uma forma de o cruzamento se concretizar esteticamente. Por tal motivo ela nos evoca o in­ter­sec­cionismo pessoano. Por tal motivo e por cruzar estruturas também, como nota Hei­tor Gomes Teixeira, ao falar em “estrutura de estruturas” e na “constante mudança de um sistema de signos para outro ainda”, na já citada carta que se transcreve em Lusíadas. Também aí, o amigo e crítico do poeta aponta um “retomar o in­terseccionismo, não no jeito de Pessoa – que é violência e exercício de estilo ou a­fronta de lá o que tivesse sido – mas o interseccionismo já depurado, já tornado a única linguagem possível”.

É para esta “única linguagem possível”, ou para esta “linguagem unificadora talvez aqui descoberta” (como diz Roger Bastide na badana de Coração transplantado), que aponta uma estética da crioulidade na obra de M. António – nesse aspecto não muito distante do projecto alquímico do interseccionismo pessoano[125]. As raízes e motivações que motivariam a procura de uma linguagem única é que são diferentes. Essa linguagem aglutinadora é que permite à poesia superar o possível “exotismo (a Europa descoberta por um Africano)”.

A composição, regulada pela ideia de crioulo, de uma única linguagem é obri­ga­to­riamente a proposição de uma linguagem complexa, diversificada, em que toda a síntese é provisória, não sendo passível de se cristalizar em resultados tidos como definitivos. Como também notou Arteaga: “deve-se notar que em tais condições dialógicas as definições tornam-se flexíveis e menos fixas que numa mais rígida relação discursiva”[126]. A única linguagem possível é, pois, uma linguagem de linguagens, uma língua de línguas, construção de mais espaço. Essa que Arteaga aponta à poesia “de fronteira”, que seria “plurívoca pondo o espanhol, o inglês, e o nahuatl em diálogo”.

Isso fica representado, principalmente, no longo poema Lusíadas, onde um dos critérios privilegiados de composição é o do cruzamento de línguas e de linguagens, personificadas elas no locutor e no inter­locu­tor, e imaginados ambos numa situação de diálogo. Mas em qualquer dos livros se misturam o português e o quimbundo, ou o português e o francês, ou o português e o inglês.

A conjugação de línguas, e a plurivocidade de que ela dá sinal, é tam­bém figurada pela situação de diálogo. Não por acaso, na maioria dos momentos em que se misturam palavras de várias línguas – como também quando surgem os poemas bilingues – o texto apresenta marcas orais de forma a sugerir que o poema seja a transcrição do extracto de um diálogo.

A figura do diálogo é também recorrente nos escritos íntimos, ou confessionais, muitas vezes projectando sobre o «tu» a primeira pessoa – ou o contraste dela – e promovendo-lhe uma socialização controlada pelo artifício literário.

Mas, mais uma vez, as opções tipológicas do autor indiciam uma figura típica de um discurso crioulo, na medida em que as marcas de oralidade, que o diálogo traz, remetem para o hibridismo e, ao mesmo tempo, para traços genológicos oriundos da literatura europeia.

Elas remetem para o hibridismo porque são dadas como próprias de um debate sobre os percursos “mestiços” e contrapolares de dois an­golanos (Lusíadas). A sua presença funcionaliza-se, por outro lado, enquanto recurso de autentificação da ficção literária – recurso carac­terístico nos escritos intimistas europeus.

A passagem pela oralidade (marcada em vários livros, mas estruturadora de Lusíadas) é também uma das con­di­ções consideradas necessárias à estética crioula proposta por alguns intelectuais an­ti­lha­nos. Ela molda, no entanto, contornos próprios no caso angolano. Porque o lugar da oralidade tradicional (banto ou crioula) na lírica de M. António é o de uma das fontes do texto, que sempre a cruza com outras referências culturais. Veja-se por exemplo o que sucede em «O Tocador de Dicanza» e «Muií, o Ladrão», de Era, tempo de poesia. A oralidade não é a lingua­gem que se procura por modelo (talvez o tenha sido para Luandino Vieira) – praticada não-poeticamente no quotidiano – mas uma das componentes do discurso crioulo, tomada mais no aspecto referencial que propriamente enquanto plástica absorvente do escrito artístico.

Na teorização antilhana, a referência ao oral passa também pela consciência de a História escrita ser a da colonização. O recurso à oralidade visa­ria construir uma história do colonizado[127]. No caso de M. António, o que se faz é imaginar ou representar uma história crioula da crioulização, o que estará possi­velmente suportado em tradições orais e escritas, mas as dispensa na medida em que a representação que elas promoveriam já foi semantizada no texto (essa era, afinal, a meta do Elogio da Crioulidade quando se propunha beber na fonte oral).

As marcas de oralidade aqui trazem, portanto, apenas autenticidade ao diálogo, como se denunciassem uma situação diegética cuja imitação facilita a tex­tualização da ideia de cruzamento e nega o reconhecimento do carácter artificial da escrita e do poema.

A figura do diálogo assume tal importância que o locutor é imaginado a dirigir-se ao leitor e, mais do que isso, a neutralizar a noção de autor pela de uma autoria resultante de uma situação dialógica (é o que sucede com as composições bilingues de Coração transplantado), chegando-se igualmente a fazer a coincidência entre a ficção enunciativa e a diegese por via dessa figura (propõe-se uma cena em que alguém enuncia um poema a alguém, poema esse que é o que estamos a ler).

Qualquer um destes recursos (descontextualização, suspensão, inter­secção, diálogo) pode, obviamente, caracterizar uma obra alheia à temática da crioulida­de. A sua conjunção liga-se, no entanto, aqui, a três factos que lhe dão um significado pró­prio: o primeiro consiste na ligação ao desenvolvimento do tema «crioulo»; o segundo é o da rela­ção entre estes recursos e as opções genológicas da obra, que nos sugerem também a ideia de mistura; o terceiro é o próprio facto de serem estes, em conjunto, os instrumentos dominantes, uma vez que todos eles remetem para a temática principal dos versos.

Penso, pois, legítimo afirmar que a lírica de M. António concentra toda a sua artilharia técnica na proposição de uma estética própria à crioulidade que ela constrói. Essa estética crioula se definiria por um critério principal utilizado na composição, o qual se fundamenta na ideia ou no propósito de cruzar níveis, elementos e referências diversos. O critério principal explicar-se-ia, pelo retrato psicológico que a obra faz do autor, a partir da “dialéctica” da cisão e da saudade, inseparável da noção de personalidade cruzada, mista ou mestiça.

Do critério principal derivariam as diversas concretizações que privilegiam a me­ta­forização ou analogização[128], a elipse, a temati­zação dos enunciados (no sentido de Hernadi), inter­calada com a sua dramatização (no sentido de Jakobson ou no significado clássico – e mais preciso), a interposição, o «transporte». Todos estes recursos, que permitem concretizar o cruzamento de referências e de formas, se podem resumir nas definições mais gerais de suspensão e de intersecção, sobre as quais podemos esboçar o que denominaríamos uma estética crioula – uma estética da alte­ridade, da cisão, e da saudade – pela qual também a lírica de M. António se integra na literatura angolana e nas literaturas lusófonas africanas[129], bem como, de uma forma muito própria, naquilo a que por um aparente paradoxo chamaríamos a tradição moderna[130].

 

 

Uma Ética da Crioulidade

 

Verificámos, na secção anterior, que as opções estéticas características da lírica em estudo apontam para os traços básicos da definição semântica do crioulo na obra. Essas opções esboçam, portanto, um modo próprio da crioulidade se construir poeticamente, e assim praticam o ministério do cruzamento pela composição de cisões e recuperações de sentido ou de ritmo, e pela tendência para a universalização concretizada na descontex­tualização dos motivos e no percurso “die­gético” do poeta.

O percurso do poeta na intriga, por sua vez, caracteriza-se por uma es­pécie de «cristaliza­ção itinerante». Cristalização na medida em que, atravessado o período de forma­ção, a dialéctica de cisão e saudade que o configurou irá ser aplicada constante­mente perante qualquer ambien­te novo; itinerante porque tal se propõe nos textos através da sugestão de deslocações que constituiriam o principal motivo des­poletador das obras no seu todo, ainda quando o não fossem para todos os poemas.

A “cristalização itinerante” do locutor, objectivando-se em tópicos diversos para figurar e adjectivar o “autor”, leva-nos a visualizá-lo agora como um dos motivos ou alibis que ele toma para falar do crioulo, que se torna assim num sujeito universal e numa chave para compreender as mais diversas civilizações a partir da sua em particular (chave que Afonso, o Africano realmente confirmará).

O facto, pois, de a lírica assinada por M. António se centrar antes de tudo na construção de uma ideia de si não implica que o eventual autor esteja a “inspirar-se” em si próprio; significa ter ele aproveitado a sua biografia para, formulando-a e reformulando-a em coerência de critérios e em adequação às mais diversas inserções, nos contar liricamente uma personalidade crioula universalizando-se – essa, sim, a inspiração maior dos versos que nos legou em livro.

Ao mesmo tempo que isso acontece, como vimos ao longo do Capítulo V, de livro para livro se vai acentuando a componente lírica e esbatendo a narrativa. Em Afonso, o Africano, atingimos o ponto mais lírico de toda a obra, não uni­fi­cando a sequência um tópico-chave (a viagem a um lugar determinado, o diálogo com um interlocutor simétrico, a inserção num mundo diferente), mas a mul­ti­pli­ca­ção do motivo principal (várias viagens, de vários tipos: intertextuais, entrecor­ta­das, imaginadas, narradas na terceira ou na primeira pessoa, etc.) só no fim se recu­perando a unidade pela sugestão de uma “viagem à volta do mundo”, a qual não termina, ou termina por um eterno recomeço, figurado na silhueta de Gonzaga fitando o Índico.

Tudo se configura então como se a obra em verso assinada por M. António ganhasse desta forma um duplo fio condutor: o da lírica biografia do crioulo, desde a sua formação à sua universalização (contadas através de um discurso auto-centrado e, por isso, auto­bio­gráfico); e o da progressão de uma «estrutura profunda» mais próxima dos modelos narrativos para outra mais estritamente lírica no que diz respeito à organização geral das obras, ao «macro-texto» – progressão que se realiza por coincidência com a biografia crioula que nos traz, e que atinge o seu cume em Afonso, o Africano. É nesse momento (1980) que a voz do poeta se cala, para oito anos depois sair resumida em 50 poemas, ou apenas subsistir como eco no projecto Cinquentão. Note-se, aliás, que o projecto da antologia 50 Anos 50 Poemas foi delineado em 1982 para se concretizar em 1984, por ocasião do aniversário do poeta[131]. Ou seja: é nessa altura que o programa – simultaneamente narrativo e poético – se cumpre.

A progressão de uma sequência organizada pela cronologia para outra liricamente seccionada e multiplicada, que se universaliza visualizando vários cruzamentos no mundo, deixa-nos ainda a confirmação de como esta poesia organiza um profundo pensa­mento valorativo (e não ape­nas criativo). Ela comprova a justiça da crítica de Shapiro ao estrutu­ralismo, quando nos recorda que a lírica “oferece-nos largas possibili­dades de compreensão da relação entre a estrutura e o componente axiológico que a informa e não as podemos menosprezar”[132].

Daí deriva a minha preocupação com o levantamento de uma “ética da crioulidade”, que se estruturaria também no macro-texto versicular de M. António – e que seria, de acordo com um dos seus valores funda­mentais, apenas uma entre várias possíveis, ou concebíveis, ou já con­cretizadas e consagradas pelas ironias da história ou pelas brisas do pensamento ritmado nas ondas do Atlântico.

 

O ser crioulo é fundado no contacto com a diversidade. Ele existe, mais propria­mente, na diversidade, e existe diverso na diversidade – do que dão sinal aqui os critérios de composição, e acima de tudo, o critério do cruzamento.

O crioulo não anula a variedade pela sua redução a dois ou três princípios universais e simples; conhecendo que “a vida é larga e vária”, ele tem consciência do complexo e funda na complexidade a conjugação do diverso.

Estruturando-se assim, reforçado em situações de cisão e de saudade (a saudade não apenas reúne, também nos leva para o que falta e, nesse sentido, nos dis­per­sa), o crioulo escapa a uma definição rígida, ao enquadramento num bloco de pensamentos pretensamente universal e intemporal, bem como às explicações que pretendessem prevê-lo.

Por tal motivo, o meio privilegiado para o crioulo se objectivar é o artístico, não o filosófico ou científico. Ou seja: a própria escolha da arte como sistema de aproximação ao ser individual, indizível e inviolável, é também ela conveniente aos traços mistos do rosto que as tintas cinzelam na fotografia do autor.

Ora, estas conclusões, que faço minhas, conjugam-se às que se originaram nas Antilhas, face a realidades que, não sendo iguais às que a lírica de M. António referencia, são idênticas na medida em que são também multifacetadas, e na medida em que nelas há seres que assumem a multiplicidade como virtude, e como meio de focalização sobre o mundo – coisa que, como vimos e veremos ainda, o sujeito-locutor da antologia faz.

Os antilhanos que assumiram, dizendo isto, a sua crioulidade, legaram-nos uma via de conhecimento que seria própria da realidade psicológica por eles vivida. Essa via de conhecimento, para eles, é a da arte: “neste momento, o pleno conhecimento da Crioulidade será reser­vado à Arte, à Arte absolutamente”[133].

Isso porque o universo crioulo se perspetiva como um magma civilizacio­nal cuja definição futura ainda levará muito tempo a configurar-se – e quando se fixar deixa de merecer o adjectivo. Enquanto for um mundo em aberto, um mundo onde a noção e efectivação do cru­zamento se torna mais estruturadora que a de estabilização e fixação de princí­pios, o crioulo não pode ser definido por um discurso fechado. De aí a preferên­cia pela composição estética, preferência que delineia o primeiro traço de uma ética própria da criouli­dade: a valorização da abertura ao outro, do descondicionamen­to, da nudez epistemoló­gi­ca.

Mas não acho só que o sujeito-locutor dos versos está acordado ao discurso artístico por motivos idênticos. Dentro do discurso artístico em causa – o da arte da palavra – a grande divisão faz-se entre o género narrativo e o género lírico. A narrativa pressupõe uma se­quência nítida de acontecimentos – “o curso de uma vida” – e, portanto, a figuração na linguagem de uma organização diegética do tempo. Nessa medida podemos dizer que ela tem uma estrutura mais fechada que a da lírica, género no qual o tempo não está organizado diretamente pelo discurso, podendo, a qualquer momento, acrescentar, inventar, trocar ou inventariar-se qualquer outro. Uma obra lírica, por isso, está sempre em aberto, pode sair sempre mais um poema que a completa, não termina obrigatoriamente nem começa obrigatoria­mente num dado ponto, num dado capítulo.

A história que uma lírica nos sugira está, pois, em constante processo de reordenação por parte do leitor, como a crioulidade se está sempre a reconstruir face a cada nova possibilidade de leitura do mundo. A nar­rativa pressupõe uma totalidade fiel a um percurso transformacio­nal[134], o qual pressupõe um esquema mais ou menos rígido a que se condiciona o discurso[135], facto que possibilitou as formulações de Propp, de Greimas e de outros. Pressupõe uma sintaxe previsível. A lírica não. Ela parece, por isso, mais apta a representar a vida de al­guém sempre em construção, em mudança, sempre reorganizando-se entre rupturas e reapropriações. Daí que esta “autobiografia” tenha as­sumido a estrutura lírica, pelo íntimo acordo existente entre ela e o modelo a retratar; e daí que ela a tenha depurado conforme se univer­salizava, crescia e complexificava a personalidade crioula do locutor.

Para além disso, o género lírico inscreve a diversidade num conjunto de poemas, per­mi­tindo-nos encontrar na mesma obra fragmentos ou poemas claramente narrativos e dramáticos, ao lado de outros intrinsecamente líricos, ou seja, permite-nos mais facilmente incorpo­rar peças que, isoladas, pertenceriam a outros géneros. Sem, claro, que o carácter glo­bal da obra deixe de ser típico do género. Ou seja, ela não é só aberta em relação ao todo referencial que por si se constrói, no seu interior está igualmente aberta – mais do que a narrativa – à variação, à complexidade e à diversidade.

Quer dizer que, não só as técnicas utilizadas para construir a imagem do sujeito se combinam ao traço que principalmente o define, mas também as escolhas discursivas (a escolha da forma artística do discurso) e ge­no­lógicas (a progressão para macro-textos líricos) que determinaram a estrutura fundamental das obras estão acordadas ao carácter do locutor, como de resto vimos no início desta conclusão, por outra via, a do hibridismo das espécies cuja teorização está próxima da desta lírica. A semântica da crioulidade atravessa, portanto, todos os níveis em que possamos estudar a obra.

As reflexões que pudemos ir fazendo a partir das opções estéticas do autor, a par­tir da detecção da variedade dos modelos e dos materiais que o artífice privilegiou para construir a imagem do «eu» dos versos, indiciam já uma ética própria desta crioulidade.

A universalização da personagem inicial, a sua distribuição pelo mapa-mundo – e principalmente pela Europa – conduz o leitor a redi­mensionar a sua com­pre­ensão dos países – e sobretudo da Europa – a partir da visão típica do crioulo. Como observou Roger Bastide na badana de Coração transplantado, “o leitor, atrás de si, redescobre este rosto que ele não pode perceber porque é o seu próprio rosto. // Eu penso entretanto que a sua descoberta só foi possível porque Portugal é ele mesmo um país mulato (...) onde a oliveira não é simplesmente a negação da palmeira, mas o seu «contra-ponto»”.

Algo idêntica é a compreensão que de Lusíadas tem Heitor Gomes Teixeira, ao caracterizar o livro como “crioulo. Muito belo o teu poema”. Nele (como na obra de M. António) observando-se com oportunidade um cruzamento de África, Europa e Portugal, cruzamento que projetivamente se fundamenta na vasta cultura e na rica sensibilidade do autor. Concordante é ainda a afirmação de José Blanc de Portugal, de que a poesia de M. A. “de Angola nos veio (com a Europa que para lá foi (...))”[136]. É, portanto, largamente consensual a leitura crioula desta obra lírica.

Trazendo para o mundo uma personalidade “híbrida”, refuncionalizan­do-a confor­me ela acedia a novos palcos, dessa refuncionalização resulta efectivamente uma nova focalização dos diversos lugares à luz da crioulidade. Por isso o locutor chamará Babel a Londres, e “Marajá desterrado” ao D. José do Terreiro do Paço. Por isso também observará o desfile de povos que ao longo da História se vão cruzando, em Portugal ou na Turquia, e apontará o cruzamento civilizacional em todas as latitudes abrangidas pelos olhos viajeiros.

A leitura que esta obra nos deixa do mundo é, portanto, a da diversidade. Ela diz-nos a cada momento que, não só o seu locutor é “cruzado”, “misto”, crioulo, todos os países o são, de uma forma ou de outra. Daí que ele possa sempre projectar-se sobre elementos ou pessoas de outros lugares: essa projecção é um sinal de como todos os países são crioulos, diversos.

A ética subjacente ao percurso do locutor destes versos é, pois, uma ética da diversidade. A mesma que terá guiado a fundação da genealogia, quando as “donas do tempo antigo” se deram “a nova fé” por saberem que são “vários e largos os caminhos possíveis”. Ou seja, no final do nosso percurso de leitura, concluímos ainda que, num certo sentido (o da procura de uma sabedoria, perso­nalizada na figura da “avó negra”), o sujeito logrou alcançar os objectivos que se propôs, o locutor cumpriu o seu programa narrativo. Pois encontrou a diversidade que baseava a consciência do conhecimento procurado.

Repersonalizando a ética da diversidade, era inevitável que o texto assumisse também um cariz político, dada a estreita relação entre ética e política, possibili­tada pelo conceito de pessoa como interacção do indivíduo com o meio.

A consequência política da composição de uma ética da crioulidade é evidente. A expressão política da diversidade – como lembram ainda os intelectuais antilhanos[137] – é a crítica a qualquer ideologismo estrito, bem como a defesa da liberdade e do direito à di­ferenciação e ao diálogo. A defesa da diferenciação não se acorda somente ao manifesto dos intelectuais antilhanos. Ela conjuga-se também com o espírito de tolerância – amplamente mostrado no campo religioso – que seria característico das sociedades crioulas de base portuguesa[138] e, particularmente, da chamada “área cultural luso-brasileira”[139].

Isso explica o significado de um poema de evidente propósito político, como é o «Discurso sobre o Regionalismo».

Logo a redução (ou generalização) do termo «nacionalismo» – que nos parece implícito à crítica promovida no poema – ao significado do termo «regionalismo», evi­dencia uma postura crítica face ao nacionalismo estrito. A transformação do típico em universal, do que é próprio de uma infância muito localizada no que é comum a nós e a povos estranhos aos nossos, desmente a apropriação e a cristalização do que define uma sociedade por parte de um pequeno grupo que argumente represen­tá-la em nome das suas particularidades[140]. Nesta perspetiva – abandonando por momentos o estudo literário mais estrito – parece-me que a obra explica o autor, mais do que o autor possa implicar uma obra, sem dúvida bela e universal.

A consequência política de uma ética da diversidade pode agora reorientar igualmente a nossa leitura de poemas como «Anti-Heróica», na medida em que, neles, a afirmação humilde da pessoa do locutor é contraposta a uma modelização redutora do interlocutor, a que perde o contacto com a singularidade – o mesmo é dizer, com a realidade – mitificando um protótipo exclusivamente social.

Ao se demarcar do «herói», como tal modelado por um grupo certamente numeroso de pessoas[141], o locutor apresenta-se como aquele em quem se opera a disjunção do pessoal em face do colectivo, personagem que por isso prota­gonizará a mudança, ainda quando tal mudança não implique a reconversão do colectivo às teses novas que ele personaliza. Explico melhor.

Para clarificar quanto pretendo afirmar aqui, é preciso recordar a semiótica da narrativa de Greimas, aquela com que ele intenta a descrição dos mitos[142]. Segundo ela, há sempre uma situação inicial e outra final, um antes e um depois que correspondem a uma situação dada e à sua transformação em outra. Para descrever o processo de transformação, é necessário ainda fazer intervir os três conceitos de «protagonista», «individual» e «colectivo». O «protagonista» é neste caso a persona­gem que, cindindo-se do seu meio, opera uma disjunção perante os valores colecti­vos, dos quais se irá afastar. Essa disjunção tem, pois, necessaria­mente, um carácter ideológico. Só que, no final da maioria das narrativas, há uma reunião do pro­ta­gonista e da comunidade – ora pela reintegração daquele, que retoma os valores de que se afastou; ora (quando se trata de um herói) pela conversão que ele consegue promover, levando o meio a seguir os valores novos (há ainda, claro, o «pícaro», que se mantém à margem, não muda e não é mudado, sendo aceite como tal).

Ora, se o herói converte a comunidade, regressamos a uma única moral co­mum; se a comunidade converte o herói, sucede o mesmo. Quanto ao pícaro, ele acabará, pelo cinismo, por definir e confirmar alguns valores sociais, na medida em que ironiza práticas que os contradizem. Portanto, em qualquer dos casos, a narrativa conta a transformação de um para­digma colectivo em outro através da história de um protagonista. A disjunção en­tre a pessoa e a comunidade não visa gerar e defender o diverso, mas substituir u­ma totalidade por uma nova, ou confirmar uma univocidade em face de perigos eventuais.

No quadro da narrativa que, a partir da lírica de M. António, podemos deduzir não cabe nenhum destes tipos: o sujeito cinde-se (por vezes a contra-gosto) do meio, diverge dos valores ideológicos afectos a um grupo determinado, mas não procura uma conversão do grupo ou da comunidade aos seus princípios. Pelo contrário, alheio a isso, aceitando a diversidade, ele irá universalizar a visão do diverso aplicando-a às mais variadas nações. Portanto, falha aqui a última parte dos esquemas estruturais utilizados para descrever os mitos, e cuja radicação na Poética nos parece muito louvável. Aqui não se imagina a univocidade colectiva, nem para ela se tende. Isso elucida melhor, também, uma outra leitura, uma outra composição – igualmente dos 100 poemas.

De facto, a consequência política de uma ética da diversidade também nos permite encon­trar uma razão para que, num poema de evidente protesto como é «Até se Revol­tarem os Escravos», nunca se dizer o que será feito até eles se revolta­rem, nem o que sucederá depois: a revolta dos escravos e o encontro da liberdade surgem como uma meta que pode ser atingida pelos mais diversos caminhos. Por isso o protesto não é seguido por uma indicação do tipo de luta que se deve activar – como tendia a ser na lírica neo-realista ou negritudinista, na África de expressão oficial portuguesa. Do mesmo modo, a revolta contra um sistema não pressupõe nestes versos uma indicação clara sobre o rumo futuro, ou seja, a dis­junção ideológica – assumida frontalmente – não conduz a uma con­versão unívoca da comunidade a um projecto político absoluto.

Mas a ética da crioulidade, nos 100 poemas, não é somente uma ética da diversidade. Se a diversidade sinaliza a ruptura, o descondiciona­men­to que cinde para permitir o conhecimento do outro, ela surge sempre acom­panhada pela procura de unidade, só que de uma unidade concebida como reunificação na diversidade. Como disse atrás, a procura da unidade não é a busca de um princípio ou de um sistema homogéneo e centralizador onde se integrem todas as diferenças, mas é configurável através de uma linguagem que, cruzando as mais diversas referências, vai conjugá-las sem que elas deixem de ser marcadas pela surpresa que as anima e justifica.

O tipo de unidade procurado é garantido pela saudade. É o movimento saudoso que, reunindo as partes várias, o homem dividido e o ser múl­tiplo, vai permitir a conjugação do diverso sem a sua subjugação a um princípio único e sem qualquer adormecimento sistemático – dada a dispersividade que ela também implica, levando-nos sempre a pensar em outro lugar e outro tempo. Como diz Pinharanda Gomes, a viabi­li­dade saudosa define-se pelo constante trânsito e recurso entre tudo e todos, entre as várias categorias que possamos aplicar ao Ser e à exis­tência, reunindo-as num magma muito pessoal, homogéneo e vário.

Por isso a saudade é inseparável, não só da cisão, mas também da figura da errância, como sucedera no início da obra de Teixeira de Pascoaes, o poeta do saudosismo português[143]. Se não houvesse errância, a saudade sê-lo-ia apenas do passado, seria uma espécie de dor do tempo e recriação da anterioridade; se não se completasse no movimen­to saudoso, a errância não passaria de dispersão. Só conju­radas a deriva e a saudade, aprazados o trânsito e o retorno, o crioulo de Angola se poderá, portanto, universalizar no sentido mais amplo que tem o termo.

Se a desvirtuação da saudade consiste no fechamento do sujeito sobre o seu passado[144], no ensimesmamento que por outra causa os escritos íntimos tendem a construir, a perversão da deriva será o alheamento, a infidelidade à origem. Se a ética da diversidade é a do múltiplo, a do reconhecimento da diferença que se propõe aos olhos enquanto novida­de, e a ética da saudade é a do retorno, a da fidelidade à origem ou ao que não é visível mas é visualizável perante o “novo”, a ética da crioulidade será a síntese das duas, a reunião do espanto ao acordo, a conjugação da fidelidade ao passado com a abertura ontológica. Enquanto abertura ontológica, o nacionalismo marxista desconfiará dela; enquanto ressurreição de origens, o cosmopolitismo poderá não compreendê-la. Mas, unidas as duas pontas, estamos perante um comportamento ao mesmo tempo dialogante e perseverante que serve de lição às paralelas dos “anos da peste”.

Pela saudade ganha também sentido uma característica por vários leitores apontada à lírica do autor: a conjura do físico e do espiritual, do abstracto e do concreto. Dando uma atenção especial ao “íntimo”[145], o texto confronta-o com o corpo e o exterior. Dando uma especial atenção ao exterior – o que a regra da ocularidade marca – o texto “intimiza-o”, espiritualiza-o de tal forma que o acordo entre os dois não permite muitas vezes reconhecer onde está um ou outro[146].

É nesta busca de aproximação, de conjugação de categorias opostas, que se encontra, a meu ver, a segunda vertente daquilo a que podíamos chamar uma ética da crioulidade. Se o diverso nos conduziu à noção de liberdade, o constante movimento de trânsito e recurso, sustentado sobre o sentimento saudoso e configurado das mais diversas formas (incluindo pelos recursos técnicos privilegiados), conduz-nos à noção de amor, ou seja, do sentimento que leva as pessoas a procurarem unir-se ou aproximar-se a seres e coisas, e a aproximar esses seres e tais coisas, amando-os na sua diferença e na semelhança da raça humana.

Trata-se de uma noção, no meu entender, inseparável da semântica da saudade. Quer na obra, onde o tópico do amor é constante – e muitas vezes explicitamente saudoso – quer na teorização que sobre tal sentimento possamos fazer, como vimos no ponto 3.1. do Cp. IV. Porque, vimo-lo então, se não é obriga­toria­mente o desejo, ou o sentimento de posse, que nos fazem sentir a saudade na ausência, é o amor pelo que não está presente e difere do presente e de nós que provoca essa nítida recordação, nunca associada a seres, espaços ou coisas que não amamos.

Liberdade e amor serão, portanto, os eixos principais de uma axiologia da crioulidade que podíamos exaurir como o docere desta obra. A liberdade assenta na consciência do diverso, no reconhe­cimento da cisão; o amor supera o sentimento de cisão, de longinqui­dade, pelo saudoso[147], que a partir dele procura reconstruir e estru­turar o ser crioulo na convivência dialogante com os outros. Daí que o amor tenha sido o motivo mais constante destes versos, a par da afirmação pessoal, assumida quer em «Anti-Heróica», quer em «Conta», quer no «Discurso sobre o Regionalismo».

A conjugação destes dois termos, “liberdade” e “amor”, para resumir a ética subjacente à lírica em estudo, permite conotá-la no vasto espaço que Jorge Dias chamava de “área cultural luso-brasileira”. Na esteira dos trabalhos de Mário António Fernandes de Oliveira, que falam no “triângulo luso-atlântico”, atrevermo-nos-íamos a propor que a conjugação dos dois termos integra a poesia em verso de M. António na área cultural luso-atlântica, que incluiria também Cabo Verde, S. Tomé e Guiné-Bissau (na sua componente crioula).

Segundo Jorge Dias, há “comportamentos médios” característicos da área cultural que generalizámos para a lusofonia atlântica. Entre eles, a “tolerância e ausência de misticismo exaltado”, a “crença alegre, reve­ladora de fundos dotes de humanidade”, o “sentimento de frater­nidade cristã e falta de preconceitos raciais”, a “hospitalidade e cordia­lidade espontâneas”[148]. Estes traços, que seriam “igualmente partilha­dos pelos brasileiros”, remetem também para a consciência e aceitação do diverso (daí a tolerância, no campo religioso – onde ela é mais difícil), em que se funda a liberdade, como para o conceito de amor, aberto à convivência e ao outro. Eles integram, portanto, o que digo sobre o crioulo imaginário destas obras.

Mas não se pense que procuro integrar num espaço mais vasto as conclusões acerca da lírica de M. António por manter dúvidas acerca da angolanidade dos seus versos. Nessa perspetiva também – a da afirmação pessoal e a da forte motivação amorosa, ambas valorizadas por uma ética e uma estética da crioulidade – a lírica de M. António se inscreve na Literatura Angolana, não só pelo passado que parcial e silenciosamente a rejeitava há poucos anos ainda, mas pelo presente que trilha os caminhos que ela abriu[149], “em plena estação seca”.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Autobiografia Lírica de M. António: uma estética e uma ética da crioulidade angolana