A subjetividade poética

 


 

A carta que há tempo publiquei [...] faz parte de um romance,

que eu trago em preparação – Odemir. É uma história verídica,

narrada por um amigo meu, falecido há pouco em Venezuela.

A carta, portanto, não é minha, isto é, não é subjetiva,

embora esta resposta o pareça denunciar.

 

(C. Costa AlegreVersos)

 

 

 

 

 

 

 

A Subjetividade Poética

 

Dois conceitos de subjetividade

 

A poesia reunida por Mário António Fernandes de Oliveira, nas obras predominantemente escritas em verso que deu à estampa sob o nome de «M. António», suscita-nos a sua caracterização por aquilo que Émile Benveniste, referindo-se à fala, chama “a «subjetividade»”, ou seja: “a capacidade do locutor se colocar como «sujeito»” (Benveniste, 1971 p. 259; Benveniste, 1976 p. 59).

 

Pela predominância dada à primeira pessoa do singular, os textos sugerem a figura do locutor-sujeito, que subjetiva assim a referência da sua linguagem. Em primeiro lugar porque (na ficção enunciativa) é “«ego» quem diz «ego»”, como lembra ainda Benveniste na mesma passagem[4], e os 100 poemas – primeira grande antologia do autor – dizem-no muitas vezes; em segundo lugar porque os referentes[5] que situam esse «ego» foram seleccionados e condicionados pela reconstituição dos acontecimentos que o identifica, apresentem-se eles reflexiva ou raciocinadamente[6]. Como, numa visão projetiva[7], se disse na receção a um dos seus livros, “o poeta fundamenta em si próprio os motivos estéticos fixos ou aleatórios que o meio inspira”[8].

 

Antes de apresentar exemplos específicos – que ressaltarão naturalmente com a análise da obra – sirva de confirmação genérica, para o que digo sobre a subjetivação da linguagem na lírica de M. António, o uso de pronomes pessoais, advérbios de tempo e lugar, bem como de flexões verbais, através do qual um emissor se apresenta como tal e condiciona o que fica dito ao momento (fictício ou real) em que existe e, portanto, fala – independentemente do tipo de relação que se possa estabelecer entre ele e um sujeito “transcendental”[9].

 

Se a obra em verso de M. António remete para a subjetividade, é necessário definir o conceito, quer em termos gerais, quer – e sobretudo – em termos literários. Procuro, por isso, delimitar os contornos de um “modo subjetivo”, mais e menos do que lírico, para depois examinar em que medida a poesia que vamos estudar se posiciona dentro desse modo. Só então saberemos o método a seguir na pesquisa, pois as obras de arte são como os jogos: não conseguimos conhecer as suas implicações e a sua organização se desconhecemos as regras universais que os orientam. Determinar um “género” ou uma “espécie” é realinhar com nitidez um conjunto de regras próprias para o jogo da leitura.

 

 

A subjetividade de que venho falando pode conceber-se, em Psicolinguística, gerada pela “unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência”[10]. Uma vez que a “unidade psíquica” é perfilada como o locutor e organizador “das experiências vividas que reúne” (quer dizer: a consciência implicada pelos enunciados), ela corresponde àquilo a que, em Psicologia, se chama personalidade[11] e a locução subjetiva é aquela que se organiza em torno do seu sujeito, da sua personalidade.

 

Esta uma definição geral de “subjetividade” que me parece abrangente e interdisciplinar o bastante. Mas, visto que temos em atenção uma obra literária, uma primeira ressalva se impõe: é que estamos em presença da subjetividade construída pela escrita. A ressalva não está completa se não referirmos ainda outro pormenor importante: é que se trata de escrita ficcional, artística ou fingida, na qual a subjetividade difere daquela construída no quotidiano da fala, quotidiano realizado num contexto necessariamente mais reduzido e co-presencial.

 

A conceção de subjetividade que perfilhei, aparentemente simples e funcional, pode implicar a confusão conceptual da identidade e da intenção de um sujeito público e privado (o que fala) com a sua figuração no discurso escrito (o que lemos). Convém, pois, frisarmos a dicotomia para evitar mal entendidos.

 

Um notável esforço neste sentido foi sintetizado pelo filósofo francês Paul Ricoeur na sua Teoria da interpretação (Ricoeur, 1987 pp. 37-56). O leitor faria bem, antes de prosseguir, em consultar as breves mas claras palavras do livro sobre o assunto. O linguista Claude Hagège chama também a atenção para um facto concordante, que é outra referência a reter: a inevitável solenidade que assiste ao ato de escrever, a qual afeta incontornavelmente a autenticidade da “expressão”. Ele reconhece ainda que “a autonomia do escrito consagra-o como um fim em si mesmo” (Hagège, 1990 p. 79).

 

Tanto uma quanto outra das afirmações nos obrigam a concluir que a figuração do «eu» na escrita não é a mesma que nos ficaria das conversas que pudéssemos ter com o seu autor, caso com ele convivêssemos todos os dias.

 

Se, no ato de fala, podemos tranquilamente funcionalizar uma transcendental intencionalidade significativa do sujeito “verdadeiro”, que o contexto permite experimentar, porque o locutor e o destinatário “estão aí”, conhecem-se pessoalmente e podem rectificar no quotidiano esse conhecimento e essas intenções; se isso implica defender a coincidência da intencionalidade e da significação, como lembra Ricoeur (a menos que o falante seja mentiroso); no “discurso escrito, a intenção do autor e o significado do texto deixam de coincidir”, porque as letras serão recolhidas por leitores dissociados do contexto que eventualmente as conformou (e a sugestão de contexto que elas transportam não consegue, naturalmente, alterar o contexto inicial para nos incluir). O percurso “do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo seu autor. O que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu” (Ricoeur, 1987 pp. 41; 51-54; Ricoeur, 1991 pp. 118-122, 185-191). A origem da escrita pode, mesmo, estar na necessidade de fixar algo independentemente dos contextos e das intenções (Hagège, 1990; Goody, 1987), o que lhe determina à partida regras de recolha, de composição e de interpretação muito próprias. Em parte, a origem da própria linguagem decorre dessa necessidade.

 

Para além de levarmos em conta a dicotomia fala – escrita, quando pretendemos pensar a subjetividade nos estudos literários precisamos de refletir a realidade poética das encenações verbais sobre que nos debruçamos.

 

Sem me opor agora à concepção de causalidade, ou correspondência, ou simultaneidade, entre um acontecimento no mundo, na consciência do sujeito-locutor e no discurso, proposta por teóricos da linguagem ou da fala, acho no entanto mais preciso, para o campo literário, concebermos que o pensamento do leitor – como vimos, dissociado do contexto que delimitou a composição – está orientado pela obra no sentido de construir a imagem de um sujeito que, similar a uma personalidade “real”, é lido como a “unidade psíquica” de que fala Benveniste (Mukarōvsky, 1981 pp. 270-271).

 

Ou seja, a escrita artística subjetiva, na perspetiva da produção de significados no circuito de comunicação literária, não interessa em função daquele que ela engendra como sendo seu autor. O que interessa é o processo pelo qual o texto e sua interação com o leitor engendram a personagem autoral como significante para a leitura. É a coerência textual, em interação com leitores ativos e cooperantes, que faz a identidade do autor da escrita artística subjetiva.

 

Reavivando o que acima transcrevi, a “unidade psíquica” de que fala Benveniste – se a concebemos enquanto sujeito transcendental, ainda que filtrado por um discurso – não se pode captar na sua totalidade, muito menos a partir da leitura e sobretudo quando ela é poética (Ricoeur, [1988] pp. 74-75; Ricoeur, 1987 p. 37s). É isso que, precisamente, permite um funcionamento referencial próprio dos textos escritos, o que a arte literária explora (Ricoeur, 1991 pp. 121-122), levando por vezes os leitores, em campos mesmo não-literários, a falar no ‘primeiro Wittgenstein’, ou no ‘Camões lírico’, no ‘Gomes Leal da Senhora da Melancolia’, que seria diferente do das Claridades do Sul, no ‘Fernando Pessoa ortónimo’ (que terá levado o processo a um extremo esclarecedor das suas possibilidades e denunciador da artificialidade do «eu» poético), ou no “Mário António da primeira fase” – como disse Costa Andrade numa entrevista (Soares, 1992) e é expressão comum entre neo-realistas e negritudinistas angolanos.

 

Por esse motivo, o sujeito empírico simultâneo à composição textual não poderá ser empossado na qualidade de um organismo que explica e licita a interpretação, ele e o que o rodeava deixaram de estar acessíveis. No dizer de Wimsatt e Beardsley, num ensaio que se transformou com o tempo em referência clássica, “o plano ou intenção do autor não está disponível nem é desejável como um critério para julgar o sucesso de uma obra de arte literária”[12].

 

Essa indisponibilidade permite que, sobre o que se imagina como criador dos versos, seja dito, por exemplo, que é possuído por um ‘génio’ ou que o possui, como está proposto no Íon de Platão, ou pelos românticos europeus em geral. Ou que o poeta está condicionado por um espírito quando escreve, como proporiam as crenças e experiências reunidas sob o nome de espiritismo, particularmente as teorias de Alain Kardec. É sintomático, aliás, pelo mecanismo legitimador da fala que parece entrar aí em jogo, o facto de, no relato das experiências, ser frequente a referência à presença de espíritos de escritores falecidos.

 

A indisponibilidade do autor transcendental permite igualmente postular que ele esteja inspirado pelo influxo do Espírito sobre si no instante em que escreve. Penso, ao recordar essas teorias, em afirmações do tipo das que Eduardo de Soveral apresenta em Educação e cultura: “os artistas de génio não pretendem dominar ninguém, mas partilhar as vivências de plenitude que neles miraculosamente aconteceram” (Soveral, 1993 p. 21); “a palavra é, na realidade, consequência inevitável da encarnação do espírito; que só ela pode ser a mediadora entre o corpo e o espírito que nela encarnou” (Soveral, 1993 p. 64). Tal concepção da criação poética está presente por igual na obra do poeta português Ruy Cinatti (Cinatti, 1968 p. 156). A imagem do criador como “legislador universal”, exposta por Romeu de Melo, pode abrir idêntico sentido: “só o Autor, enquanto puro Autor, exerce uma actividade despida de recurso, portanto, independente da sua realidade e dos seus interesses pessoais” ( (Melo, 1986 p. 173). Trata-se, aliás, de uma conceção disseminada no pensamento luso e brasileiro. Vicente Ferreira da Silva afirma – no final de um artigo sobre a natureza da arte – que ela “se nutre das forças mais sagradas da nossa alma e através dela [da alma] traz ao mundo a sua mensagem sobre-humana” (Silva, 1964 p. 69). Ainda que por intermediação do conceito de alma, a ideia básica é a mesma: a de que a arte revela a transcendência do homem e não o homem, o Espírito mais do que a pessoa. O que não discuto enquanto verdade (pelo contrário: partilho), mas enquanto conceituação própria à compreensão do funcionamento de um texto quando constrói a figura do seu autor.

 

A ideia de transcendência pode igualmente ser utilizada para defender que o artista exprime um colectivo que o integra e não propriamente a si. Ela é descrita por, pelo menos, três teorias correntes nas sociedades actuais: a dos condicionamentos ideológicos; a dos condicionamentos linguísticos; a dos condicionamentos inconscientes.

 

A primeira está muito generalizada, sendo passível de associar-se mesmo a leituras subtis como a de Adorno e à de muitos críticos marxistas mais ortodoxos, claro – como é o caso de Eugénio Ferreira em Angola, para quem a “literatura é a expressão de uma cultura”, sendo esta o resultado da superestrutura que reflecte as “relações sociais condicionadas pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas” (Ferreira, 1980 pp. 8-9)[13].

 

A segunda é a que diz que a língua forma e guarda uma visão do mundo à qual o autor estará condicionado logo pelo facto de a utilizar. Uma vez que irei comentar essa perspetiva mais adiante, nada acrescento por agora.

 

A terceira pode centrar-se no aproveitamento que alguns seguidores de Jung fizeram da noção de inconsciente colectivo, aplicando-a à narrativa do processo psicológico de composição ou de criação poética. Para exemplificá-la basta comparar as obras de António Quadros e Yvette Kace Centeno abaixo mencionadas. Trata-se de uma postura que pode ainda radicar-se na crença exposta por A. Ramos Rosa em Poesia, liberdade livre. Ele resume-a assim: “todas as energias do universo ascendem à palavra, como afirma Gabriel Bounure” (Rosa, 1962 p. 12). O inconsciente colectivo torna-se aí cósmico.

 

Em qualquer das afirmações precedentes, desde o Íon até hoje, nos podemos basear para dizer que o texto não reflecte tanto a pessoa que imaginamos como seu criador quanto aquilo, ou Aquele, que lhe traz as condições ou o conteúdo para se tornar um criador. Isto não considerando pertinente a existência (que vou discutir ainda) de alguns tópicos comuns ao criador e ao texto que podem ser considerados mais ou menos importantes, conforme a “poética” seguida pelo recetor e que, de qualquer das maneiras, podem ser vistos como poluentes de uma eventual comunicação metafísica.

 

Estas constituem algumas das vias que abrem para a neutralização da ideia de sujeito enquanto indivíduo que detém o poder de criar por si uma obra, onde se projecta como intenção consciente – aqui e ali traída por outra inconsciente – como se não houvesse entre o criativo e suas obras a indeterminação que a escrita vem trazer à fala.

 

Outra via de acesso (psicológico) a uma concepção neutralizadora do «eu» criador (não do subjetivismo nem do projetivismo) está sintetizada numa carta de Rimbaud a Georges Izambard, datada de 13 de Maio de 1871: “eu quero ser poeta, e tento-me tornar vidente: vós não compreendereis de todo, e eu não saberei quase explicar-vos. Trata-se de atingir o desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu reconheço-me poeta. Não é de todo minha a falta. É falso dizer: eu penso. Deve-se dizer: pensam-me” (Centeno, 1987 p. 61; Enes, 1982 p. 32)

 

Foi talvez ciente de todas essas possibilidades e mais algumas (as que dizem respeito ao polo da leitura) que Wellek declarou, em 1967 (alguns anos depois de a reação textualista se reconfigurar como uma das mais importantes nas academias do século XX e muito anos depois do início da sua carreira universitária), que a “suposta intensidade, essência, imediatez de uma experiência nunca pode mostrar-se como certa e nunca pode mostrar-se como pertinente à qualidade da arte” (Hernadi, 1978 p. 62). Pois entre o criador e a obra, como observou Mukarōvsky (já em 1937), interpõe-se a figura do sujeito-locutor que é (ou resulta de) uma abstracção que “representa a possibilidade de projecção dessas pessoas (autores e leitores) na estrutura interna da obra” (Mukarōvsky, 1981 p. 270).

 

A inacessibilidade do sujeito criador é que potencia a sua virtualidade perante um leitor, a recriação filosófica, literária, ou ingénua, da sua figura. Mas, ao nos colocarmos de acordo com esta perspetiva, é conveniente evitarmos a postura oposta à dos que imaginam que o sujeito figurado no texto e o seu criador são uma e a mesma pessoa. É conveniente ajustarmos um limite à indeterminação gerada pela inacessibilidade do autor, porque o leitor não inventa arbitrariamente uma figura autoral. Ao dizer que não inventa arbitrariamente, não digo que só se pode recriar uma figura de autor a partir de uma obra, mas que temos guias e balizas para criarmos, ao nível da receção, a nossa figura de autor.

 

Isso acontece porque, nas obras literárias, estão conjugadas de forma tão íntima as referências que a distribuição delas condiciona a duplicação[14] da figura de quem supomos, a partir da obra, ser o poeta. Fazêmo-lo, quer pensemos conhecê-lo como pessoa (caso em que o poema poderá ser lido como “sintoma” que nos conduz a reinterpretar a sua personalidade, ou a inventar-lhe uma “personalidade artística”), quer não (caso em que o poema nos levará a imaginar uma pessoa que não conhecemos, mas que achamos que existe na medida em que pensamos que alguém escreveu e que alguém se dá no livro como autor).

 

Observando-o, no campo das reflexões sobre a literatura angolana, falando acerca de espécies narrativas em que mais tentadora ainda é a confusão entre sujeito textual e seu modelo transcendental, Salvato Trigo aponta a Luandino Vieira a utilização de “processos discursivos que sugerem «récits de vie», biográficos ou autobiográficos, mas que são apenas estratégias de escrita” (Trigo, sd p. 55). Mais adiante, ainda na mesma página, esclarece que as “estratégias de escrita, que fazem a verosimilhança dum texto, são tomadas pelo real, dada a situação de enunciação do autor. É essa situação que transforma aos olhos do leitor a ficção em biografia ou em autobiografia”.

 

Se atentarmos à maneira como o texto se organiza e centraliza em função da isotopia da figura autoral (não nos preocupando com a existência transcendental do sujeito público que assina como escritor na capa do livro[15], nem aceitando uma indeterminação absoluta), estaremos a trabalhar ainda com a subjetividade (o estudo da predicação criativa de um sujeito), mas através de um conceito de subjetividade radicalmente diferente do que se tornou comum depois do Romantismo, um conceito próximo da definição de Ricoeur na Teoria da interpretação: “o significado autoral torna-se justamente uma dimensão do texto na medida em que o autor não está disponível para ser interrogado” (Trigo, sd p. 42)[16].

 

Para a primeira concepção crítica – a mais comum, que não distingue entre fala e escrita artística – reservarei o adjectivo de projetiva ou expressivista. É um pensamento segundo o qual o «ego» declarado numa obra literária como locutor só é passível de leitura a partir do estudo de um relacionamento legitimador com um sujeito público, típico ou transcendental, que é suposto instituí-lo por projeção, sua ou do que ele representa eventualmente (o Espírito, pessoal ou colectivo).

 

Chamo-lhe projetiva recordando-me das configurações através das quais a criança projeta, num desenho ou poema, o que apreende, como forma de “experiência”, prospeção[17], ou prova dessa apreensão, ou para a tornar mais nítida ao pensamento, ou para a poder analisar como objecto visível, exterior – ou para testá-la em interação. É precisamente o carácter projetivo dos desenhos infantis que permite fazer a destrinça teórica entre essas “apreensões percetivas do mundo” e as realizações formadoras ou figuradoras a que o mundo adulto chamará obras de arte.

 

Ainda que de forma elementar (dado que se trata de um manual) e talvez não muito clara (na definição da funcionalidade dos objectos criados), resume esta ideia o item «Perceção e projeção» da obra de Charlotte Bühler A psicologia na vida do nosso tempo ( (Bühler, 1978 pp. 191-193). Esta e outras referências evitam prolongar a exposição sobre um assunto que é um dado adquirido. Freud, por sua vez, é talvez o mais conhecido dos que fazem a transposição destas observações para o campo literário, fundindo-as numa eventual psicologia da criatividade artística e é, portanto, um projetivista marcado. Como recorda Francesco Muzziolli (Muzzioli, 1994 p. 116), o pai da psicanálise associa a produção poética ao “jogo, nas crianças”. Ele não promove a distinção entre os desenhos, ou as brincadeiras infantis, que são sempre projetivos e prospetivos (inseridos como estão numa fase específica do desenvolvimento psicológico) e o trabalho poético, onde a projeção autoral é ficcionada e perde o cordão umbilical ao ser lida em diferido. O texto prepara, como já foi tantas vezes observado, a leitura e programa até as suas imprecisões, de forma a que, no assunto que nos retém, o leitor faça uma imagem do autor determinada parcialmente pelo texto e parcialmente pela enciclopédia do recetor. Quando muito seria o leitor a experimentar o mundo, ou projectar-se, através do livro, sobretudo um paciente patológico, ou o patético, limitado à circunstância social em que se forma.

 

Também chamo «expressivista» a essa visão do fenómeno literário porque, de algum modo, ela pressupõe – ao falar em subjetividade – ser o «ego» do texto artístico meramente uma expressão do autor, ou do que ele representa, tal como o é para crianças e adolescentes. É precisamente uma das razões pelas quais pensadores como Álvaro Ribeiro, ou críticos como Massaud Moisés, associam o género lírico à adolescência – o que veremos adiante. Esse mito romântico está hoje desfeito mas ainda atuante, quer como estrutura ausente, quer inconsciente ou sub-repticiamente, mesmo no discurso mais empenhado.

 

 

Para a conceção de subjetividade que procuro definir (aquela que se funda nas atribuições do texto ao dar ao leitor as indicações para desenhar o seu sujeito) reservo o nome de «construtiva», «figurativa» ou «criativa», na medida em que ela vê a subjetividade como o resultado da interação criativa estabelecida entre uma obra e o seu leitor, que partilha a construção da ideia e a configuração da imagem de sujeito, condicionadas ambas pela tessitura das palavras. Para esta noção de subjetividade o autor é um conceito de receção.

 

Idêntica dicotomia, entre perspetivas construtivas e projetivistas, pode ser vista na teorização acerca do leitor – o que também já tinha sido observado por Ricoeur na Teoria da interpretação. A uns, como Iser, interessa o leitor enquanto “artefato [...] inscrito nos textos”, implícito e possível (Ibsch, 1989 p. 251). Eles fazem, portanto, uma recomposição meramente textual de um leitor “de papel”, condicionado às regras do género e da crítica literária. Já o estudo, por exemplo, dos horizontes de expetativa exteriores à obra numa dada época se começa a interessar por um leitor transcendental e constitui, por assim dizer, uma contribuição da história da cultura e da história da literatura (quando não da teoria da comunicação) para o exercício crítico (Jauss), na medida em que estuda as projeções prováveis que os recetores de determinada época e lugar atiram sobre as obras que esperam conhecer. A “Teoria Empírica da Literatura”, de Schmidt, apesar do nome, parece-me que se coloca já totalmente fora do estudo literário que, para ela, faz parte do sistema a estudar empiricamente (Ibsch, 1989 p. 259ss).

 

Para trabalhar a lírica de M. António de acordo com uma perspetiva construtivista não basta o esforço definidor. É preciso justificar que o projetivismo não legitima as suas posições mesmo fora do campo dos estudos literários. Farei, por isso, de seguida, uma aplicação da postura criativa ou construtiva à psicologia da criatividade. Por outro lado é preciso estar atento à contaminação entre teorias construtivas e projetivas que foi comum na crítica literária. Essa é a tarefa que encetarei no ponto seguinte, quando conjuntamente estudarmos a confusão entre subjetividade e lírica ao longo do século XX, examinando o conceito de subjetividade ou de lírica elaborado pelos mais diversos autores. Após isso feito é que podemos, enfim, reafirmar uma definição de lírica sequente à noção construtiva de subjetividade. A partir daí faltará somente estabelecer um critério que leve à destrinça entre a obra lírica de M. António e as espécies narrativas subjetivas, em particular a autobiografia, mas não só ela, também o diário íntimo e o auto-retrato.

 

Encontrado esse fino fio separador passarei por fim à aplicação prática das concepções perfilhadas, para demonstrar que é viável e pertinente, mesmo numa obra de enunciação unívoca na primeira pessoa como são os 100 poemas, estudar o autor apenas em função das indicações textuais que o constroem no interior do livro.



 

 

Comentários acerca do conceito expressivista de subjetividade nos estudos literários e dos seus eventuais fundamentos extrínsecos

 

Pode parecer despiciendo discutir as questões atinentes à psicologia expressivista da composição quando o biografismo está para além de ultrapassado na crítica literária europeia. Preciso, portanto, de justificar a discussão que vou promover aqui e a pertinência dessa discussão deriva de três factores: um particular, outro geral e outro contextual.

 

O particular é o de as leituras da obra de M. António serem quase todas projetivas. Conforme formos comentando passagens de apreciações ou depreciações da lírica do poeta veremos que é muito comum defini-la a partir do que se julga conhecer sobre a personalidade e a biografia do autor – e a maioria dessas críticas eram feitas por neo-realistas, não por românticos. Podia-se argumentar que tais posicionamentos estão necessariamente datados e que, verificando-se ultrapassada a discussão sobre a pertinência do conceito romântico de autor para os estudos literários, é preferível ignorar esses aspetos e aproveitar outros. Vou aproveitar outros mas o expressivismo e projetivismo das leituras da lírica do autor é transversal, começando logo nos anos 50 e arrastando-se até aos anos 80 em críticos com opções teóricas e estéticas diversas. Isso acontece como se o paradigma romântico não tivesse sido posto em causa e não é provável que tantos críticos não soubessem que foi. Portanto há que admitir a hipótese de a própria poesia de M. António suscitar, impor à leitura, uma conformação biográfica, melhor, autobiográfica. É talvez a insistência do texto em construir a figura autoral e a intensidade com que o faz, ao mesmo tempo em que se afasta de compromissos políticos na sua vida pessoal, é uma tal conjugação que terá levado a maioria dos críticos a pensar que a explicação para esta autobiografia lírica estaria na atitude apolítica do autor, atitude que a maioria dos críticos e poetas do seu tempo vergastava. Mas é preciso provar que se passaram as coisas assim e que, portanto, esse facto recorrente mas particular não põe em causa as hipóteses teóricas que estou positivamente a colocar.

 

Se há uma particular intenção do poeta, que o leitor deduz a partir da recorrência do tópico autobiográfico, então é necessário também discutir de novo a pertinência dos estudos biográficos e contextualistas a partir da questão da intenção. Essa discussão, posta assim, não é extemporânea. Teoricamente ela foi reavivada mesmo por aí, pela intenção do falante, confundida com a intenção do escritor, consideradas ambas incontornáveis e impondo-nos, por isso, a consideração do que leva às intenções expressas (e ignorando que o incontornável aí é o significado textual da palavras “expressas”). O ponto em que se encontrava essa discussão, no meio dos anos 90 no espaço académico lusófono, serve-nos também para abrir a vigilância que um certo facilitismo adormece com a mansidão do primeiro sono. É que geralmente somos levados a considerar que determinados tópicos, ou questões, ou teorias, ou conceitos, ou hipóteses, estão irremediavelmente ultrapassados. Concebemos o conhecimento sobre uma linha temporal progressiva, contínua, sem recuos e, por isso, o que ficou para trás é relegado para o caixote do lixo da ciência em nome da ultrapassagem – que me parece perigosa, demasiado veloz para nos permitir a descodificação dos sinais de trânsito que vamos encontrando pelo caminho. Ora qualquer teoria, hipótese, conceito, podem revelar-se repentinamente pertinentes, no todo ou em parte, mesmo depois de terem sido considerados definitivamente mortos, ultrapassados, irrecuperáveis. Isso aconteceu na Física, por exemplo, num caso extremo que foi o de Boltzmann. Extremo porque ele próprio recuou, não chegou a ser ultrapassado, foi impugnado por um condicionamento teórico mais fundo e generalizado, vendo as suas hipóteses semi-enterradas pela areia anónima das representações científicas estabelecidas. Mais tarde vem no entanto a ser recuperado, uma vez que houve também uma série de mudanças e descobertas científicas e teóricas que permitiram perceber que a raiz do problema estava no que era inquestionável para a Física do seu tempo e não nas hipóteses de Boltzmann (Prigogine, et al., 1992 pp. 19-32). Muitas vezes acontece, porém, algo mais simples: é que, apesar de as hipóteses ou teorias estarem mal formuladas no seu conjunto, ou alicerçadas sobre pressupostos que não se justificam, elas produziram conceitos operatórios úteis. Veja-se, para dar um exemplo muito conhecido, os conceitos hoje incontornáveis de classe, de superestrutura, de infraestrutura, inevitavelmente marcados pela filosofia marxista que, no entanto, se veio a revelar impraticável politicamente e falhou todos os seus prognósticos. Ou veja-se o caso de Chomsky, cujo inatismo se verificou ser insustentável o que, no entanto, não veio desdizer a teoria que ele fundamentava. No nosso campo há também muitos casos idênticos – para não ir mais longe, lembremos a ultrapassagem do formalismo russo que simultaneamente lhe aproveita vários conceitos operatórios até hoje. Uma teoria que, no seu conjunto, acabará por ser percebida como resultando de um exagero, ou de uma distorção, pode-nos legar, no entanto, construtos pertinentes. Por esse motivo, nenhuma hipótese, teoria ou questão foi definitivamente ultrapassada. Superou-se, muitas vezes, foi a maneira de colocar a questão, as invariantes para que apelava uma dada teoria (por exemplo a pressuposição de universais linguísticos, que não fazia falta nenhuma à gramática chomskyana), ou o erro de cálculo de certas hipóteses.

 

O factor contextual a ter em conta já foi de certo modo referido a propósito do factor particular. É que a teoria da literatura tem vindo a reconsiderar a pertinência de estudos condicionados pela influência dos contextos de produção e receção das obras de arte. O processo não começou recentemente. Veja-se, na Teoria da literatura de Aguiar e Silva (Silva, 1984), a discussão sobre os géneros literários (que ainda irei comentar no final deste capítulo), mais particularmente as considerações tecidas em torno do termo «contexto» nos capítulos 3 («A comunicação literária») e 9 («O texto literário»). Em diversos momentos, a reabilitação dos estudos contextuais recupera a leitura autoral, ou mesmo biográfica – agora não por via da história da literatura ou da cultura, mas por uma espécie de sintomatologia da linguagem poética. Tudo isto nos faz compreender que o paradigma do autor na leitura literária não foi posto em causa no contexto em que vivemos ainda hoje. Foi posta em causa a vulgarização romântica do biografismo.

 

A crítica romântica mais comum (de que se separo a hegeliana) fazia uma aproximação histórica entre autor e obra, na medida em que procurava determinar os factos civis específicos da vida de um poeta, factos que podiam explicar o significado de uma ou de outra passagem. Era ainda uma via de duplo sentido, porque várias passagens de obras poéticas eram utilizadas como confissões ou sinais que esclareciam aspetos misteriosos da vida do autor público. Foi ainda isso o que muita crítica neo-realista e negritudinista angolana fez. Hoje mesmo, quando já não têm coragem para explicitar essa análise, os críticos da mesma linhagem (sobretudo os neo-nativistas) fazem-no sub-repticiamente, acabando por qualificar e desqualificar obras em função da vida dos autores, tanto quanto fizeram com M. António. A teoria crítica mais recente, de que para os anos 80 foi exemplo a antologia Théorie littéraire théories de la litterature, publicada em Paris no final da década, promove uma reaproximação modelar entre o autor e a obra, na medida em que pensa explicar os seus diversos momentos a partir de movimentos psíquicos e de estratégias comunicacionais recorrentes e que permitem formar, em outras áreas das ciências humanas, uma ideia projetiva de sujeito e uma ideia de comunicação necessariamente condicionada à intencionalidade expressiva.

 

Outra via paradigmática para a recuperação desse tipo de convicções está representada no primeiro capítulo de Autobiographical acts, de Elizabeth Bruss (Bruss, 1976). Inicialmente, a autora intitula de “falsa distinção” a que aceito existir entre poesia e linguagem corrente (AAVV, 1991 pp. 62-79; v. p. 64). Eu penso nessa distinção por duas vias: a primeira, espiritualista, concebe a linguagem original inspirada, poética, atribuindo-se ao uso constante a banalização e degeneração típicas da linguagem corrente, que não é outra mas a mesma degradada; a segunda via, explorada por Ricoeur em A metáfora viva (Ricoeur, 1983), concebe a linguagem – poética ou não – alicerçada sobre processos analógicos – não há, pois, duas linguagens mas duas variações sobre uma mesma forma de linguagem, a saber, a analógica. Nenhuma destas vias implica valorizar a linguagem corrente e canonizá-la para estudar o escrito poético em função do estudo da fala quotidiana.

 

Quer-me porém parecer que Elizabeth Bruss anseia creditar uma absoluta negação da diferença entre linguagem corrente e poética. Ela defende que podemos estudar igualmente as duas, porque as duas são a mesma quanto ao seu comportamento comunicacional. A partir daí minimiza a ensaísta as “variações” líricas sobre as palavras ou as frases (o que pressupõe uma concepção floral, ornamental, da poesia). De facto quase todas elas podem aparecer na fala quotidiana, Ricoeur e muitos outros autores concordam nisso. Sobrevaloriza, por consequência dessa perspetiva floral, o condicionamento contextual da produção linguística, ignorando ou desvalorizando o facto próprio da escrita e da mimética. Em seguida centra-se na sua raiz epistemológica, a noção de “acto elocucionário” (ou “ilocucionário”), que fundaria indiferenciadamente a linguagem quotidiana e a literária, na linha de AustinSearle e Strawton. Garante-nos ela que o ato elocucionário “é uma associação entre fragmentos da linguagem e certos contextos, condições e intenções”. Pelo que, tanto um verso quanto uma frase não podem compreender-se nem valorizar-se ignorando os “contextos, condições e intenções” que os condicionaram (na fase de produção).

 

Um posicionamento como este alicerçou-se numa tradição com lugar próprio no mundo contemporâneo, o que nos obriga a reconsiderar, agora também por essa via, a figura do autor civil ou transcendental na leitura textual. Preciso, por consequência, explicar porque não vou por aí. Preciso verificar se há certezas quanto ao modelo de sujeito e ao tipo de relação autor-obra que se postula habitualmente. Finalmente, preciso demonstrar que são equiparáveis, para o que me prende aqui, todas as leituras expressivistas, quer tomem o sujeito enquanto história específica explicativa do texto (como fizeram os românticos), quer o tomem por modelo de «eu» que geraria certos textos (aproveitando paradigmas e motivos que, para serem aplicados, sempre exigem a presença deste ou daquele facto particular explicativo).

 

 

 

 

Sujeito linguístico, sujeito psicológico e sujeito poético

 

Para além de ignorar as consequências da definição diacrítica da escrita, o expressivismo sustenta-se na omissão teórica do artifício enunciativo sobre o qual se institui como artístico um dado livro. A distração fundadora do expressivismo passa, consequentemente, por uma indistinção fundamental entre as relações do homem com a linguagem e as relações do autor com o texto poético, reafirmada em ensaios como o de Elizabeth Bruss. Daí resulta uma “pretensa univocidade que leva os comentadores a tentar explicar o poeta (seja clássico ou moderno) por aquilo que na poesia é «de», isto é, a sua aparente determinação temática, é o erro de quantos, tratando de poesia, não reparam que ela é essencialmente... poesia”. Este “paradoxo” anula, por distração, a especificidade da experiência poética” (Rosa, 1962 p. 21).

 

O padrão expressivista reduz, portanto, as relações autor-poema às relações homem-linguagem no quotidiano. Há que analisar a viabilidade de uma tal redução.

 

 

O homem é considerado relacionar-se com a linguagem, “normalmente”, de uma forma por assim dizer realista: ele aprende, conhece e pensa com ela; ensina, desconhece e exprime-se através dela (Luria, 1987 p. 37). Visto que a poesia é, também, um ato linguístico, pressupõem-se – para a relação entre o homem e a linguagem na poesia – as mesmas relações caracterizadoras ignorando-se que a “relação escrever-ler” não é “um caso particular da relação falar-ouvir” (Ricoeur, 1991 p. 191).

 

A partir do momento em que a linguagem é concebida como participante na criação de “uma mundividência ou um mapa cosmológico em que a existência dos indivíduos e da sociedade se insere e enquadra” (Enes, 1983 p. 55), dado ser desde o princípio instrumento privilegiado para a duplicação (e reprodução) psicológica do meio, “abrindo à criança a possibilidade de operar mentalmente com objectos fora de seu ambiente imediato” (Sobre o lugar da linguagem na constituição da criança, 1993 p. 11)[18], ao mesmo tempo expressão, base e receptáculo desse visionamento (ideia trabalhada filosoficamente por HerderHumboldt e o romantismo alemão (Schaff, 1974 pp. 15-48; cf. 99-102, 248-253; Hamann, 1948))[19], condicionada pela redução expressivista do autor ao sujeito linguístico, a relação do criador com a obra passará a ser concebida como projetiva da visão do mundo à qual ele se acorda, que o conforma e que ele transformará.

 

O processo conjuga-se com a importância concedida por Dilthey à leitura autobiográfica para conhecimento e interpretação da História. Trata-se, porém, de um expressivismo com laivos de construtivismo. Essa leitura é importante na medida em que revela a visão do mundo de uma dada época (aí a parte expressivista); tal visão consubstancia-se na composição de uma narrativa de vida que se deixa dirigir por um sentido atribuído aos acontecimentos que os selecciona e caracteriza (nesta consciência do trabalho de selecção e caracterização é que há já uma visão criacionista, construtiva, do processo literário que, por isto mesmo que Dilthey refere, só parcialmente revela a mundivisão de uma época) (Dilthey, sd pp. 222-224).

 

Esta é uma das maneiras por que se chega ao expressivismo nas teorias literárias. Passo a confrontá-la com a perspetiva construtiva que partilho.

 

O primeiro contra-argumento já foi expresso: a relação do poeta com a obra não é direta, dificilmente se podendo equiparar – na maioria dos seus aspetos – à relação do locutor com a fala quotidiana, a qual também não dispensa a intermediação de códigos interiorizados e que diferem de falante para ouvinte. Desde Mukarōvsky a Ricoeur se fez, variamente e distanciada no tempo, uma transferência cuidadosa da situação do falante para a do escritor. Os avanços permitidos pelo estruturalismo, quer o dos anos 30 e 40, quer mesmo o dos anos 60 e 70, permitiram-nos igualmente selecionar uma hierarquização de categorias que facilmente põe a nú a dificuldade em sustentar explicativamente a leitura de uma obra de arte na existência do seu criador.

 

Entre a “força íntima” que leva a compor um poema e o livro que depois é lido interpõem-se, pelo menos, uma personalidade civil (a imagem que o poeta constrói de si mesmo através das aparições públicas – entrevistas, discursos, etc.), um autor “real” (que activa conhecimentos, memórias e técnicas para construir o jogo verbal), um autor textual (que é a imagem que resulta do jogo proposto) e, do outro lado, todas essas imagens conjugadas nos vários níveis de leitura pelos discursos de receção. Mesmo ao nível do autor “real”, é sintomático Georges Gusdorf, sem preocupações com a perspetiva literária da questão, chegar a conclusões idênticas ao analisar os “diários íntimos” a partir, não da receção, mas dos vários níveis de produção do pensamento sobre si próprio: “assim, talvez o curso dos nossos pensamentos sofra uma deformação por causa da atenção que dispendemos para o seguir. O desdobramento suprime a ingenuidade, a espontaneidade da vida pessoal, e talvez a vicie ainda mais profundamente” (Gusdorf, 1948 pp. 64-65)[20]. Ao citar, mais adiante, André GideGusdorf recorda ainda uma outra “deformação” da verdade pessoal: a provocada pelo “desejo de escrever bem” (Gusdorf, 1948 p. 70)[21]. Ficam implícitos nesse desejo – como no desdobramento anterior – os três níveis da “força íntima”, do sujeito real (o que pretende escrever bem) e do sujeito textual (o que é imaginado por um intimista em discurso onde se toma por modelo).

 

A interposição destas diversas figuras fere de morte a questão do nível e do tipo de correspondência com que um poeta lírico exprimiria os seus “estados de alma”, para o projetivismo correspondente à necessidade que um locutor tem de usar a função expressiva da linguagem.

 

Para além disso, cada uma das figuras pressupõe a existência de vários códigos próprios, que em parte as criam ou determinam, mas que irão diferir entre os vários sujeitos ligados à noção de autor e os inúmeros leitores que terá o texto, como lembra Umberto Eco em Lector in fabula (Eco, 1983). A intermediação dos códigos diferenciados, no processo comunicativo típico da literatura, introduz na visão dela um grau de ambiguidade, possibilidade ou indecidibilidade que impugna desde logo qualquer tentame de aproximação entre “duas almas” unidas por sentimentos ou mundivisões idênticos (como quiseram os românticos, mas também Staiger e vários outros, alguns deles adiante mencionados), ou por códigos inconscientes inscritos num mesmo colectivo (como proporá mais tarde a leitura psicanalítica baseada nos textos de Jung).

 

Mesmo que ignorássemos a intermediação artificiosa em que se funda o ato poético, a leitura da obra a partir do autor, extraída por símile da relação falante-fala, não é obrigatoriamente aquela que o expressivismo pressupõe. Há uma espécie de truque no jogo expressivista que é preciso desmontar. É inevitável concebermos uma dependência da obra relativamente ao seu criador (ele é que a escreve), mas a forma que reveste essa dependência não implica a necessidade de uma leitura expressivista. Um dado sujeito só consegue, por exemplo, imaginar algo (mesmo inverosímil e “fantástico”) a partir do que já conhece, ou melhor, das regras constitutivas do mundo que idealiza; mas isso não implica ler a obra enquanto sintoma de uma pessoa ou de uma civilização. Isso mostra-nos apenas os limites, determina limites percetivos próprios, reduz o significado das percepções que, na literatura, são trabalhadas como referências. Uma vez que mais adiante, ao falar na psicologia da criação artística, vou aprofundar o assunto, retomo por agora a comparação direta entre sujeito linguístico e sujeito literário.

 

Há dois processos comuns responsáveis pela figura do locutor na linguagem não-poética e na poética. Em ambos a configuração se realiza na medida das predicações que são atribuídas ao locutor, bem como pela adscrição do ato de falar-escrever à primeira pessoa da enunciação (Ricoeur, 1990).

 

A partir do exame de tais processos – e de como eles se especificam no campo literário – é possível definir a subjetividade de um artifício poético apenas na sua individualidade, sem recurso a metáforas biográficas, a informações contextuais, ou a qualquer espécie de psicologia da criação literária. Porque o modo subjetivo, na arte da escrita, consiste precisamente nisso, em compor, através do trabalho sobre as palavras e da adscrição à primeira pessoa, uma figura e um contexto que nunca se poderão verificar e que substituem o não-dito da fala, ou de outros discursos escritos (esse não-dito que o é por economia de linguagem, porque se deduz da circunstância imediata que envolve o falante e o ouvinte).

 

A confusão mimética entre o autor ‘verdadeiro’ (ou ‘último’, ou ‘transcendental’) e o sujeito poético é licitada, no entanto, por uma forma de realismo linguístico que afasta os seus aderentes da pesquisa da predicação textual do «eu».

 

Tal realismo baseia-se, por sua vez, num psicologismo racionalista, pressuposto mas não discutido. Ele conduz-nos, à partida, a conceber que a forma da linguagem depende em absoluto de uma relação projetiva do pensamento sobre a representação. Ora, como passamos a ver, é muito provável que suceda extamente o contrário: o pensamento reorganiza as imagens, as figurações percetivas, que lhe são prévias e estão previamente discursivizadas. Nessa medida, são elas que projetam nele o seu conteúdo e uma ordem inicial, e o pensamento pode ser visto apenas como a racionalização de uma sequência prévia.

 

Para refletirmos acerca de tal assunto convém clarificar as variáveis em jogo. Trata-se de surpreendermos a relação, possível ou plausível, entre três categorias distintas da vida psicológica: as imagens mentais, o pensamento e a linguagem. Como disse, o expressivismo fundamentado em certas teorias da linguagem pressupõe que o pensamento se projeta sobre as figurações e as palavras, sobre as representações ou imagens, a língua e a linguagem. No entanto, a neurobiologia parece fornecer outra visão. Podemos inquiri-la na companhia do cientista português António Damásio.

 

 

 

 

 

 

Linguagem, pensamento, arte e imagem

 

Segundo este cientista, as imagens formam-se a partir de representações disposicionais potenciais, ou seja, garantidas por circuitos neuronais mais ou menos previstos pela experiência anterior gravada no cérebro. Podemos imaginar tais circuitos como queimaduras: o roteiro seguido para se construir um quadro de situação, ou o perfil de um objeto, seria o percurso de uma espécie de incêndio que nos deixa marcas da sua passagem pelo cérebro; quando precisarmos imaginar de novo os mesmos objetos, o rastilho neural segue a pista que as cicatrizes do incêndio nos deixaram num percurso que, não sendo exatamente igual, é sempre similar.

 

É a partir das redes de representação disposicional (que estão, já por si, organizadas em rede) que desfilam as imagens, quer as de que damos conta, quer as outras. O decurso imagístico pré-existe, portanto, quer à linguagem, quer ao pensamento, e condiciona a formação e formulação da linguagem e do pensamento. Estes aparecem depois, funcionando como mecanismos de alta e muito especializada auto-regulação do ser humano e das redes de representação disposicional.

 

O ‘pensar por imagens’ antes de pensar por palavras, ou por outra forma qualquer, está de acordo com as mais variadas introspeções de cientistas, que as confessam quando falam ou escrevem sobre o raciocínio próprio à sua profissão. Para além de cientistas e de neurobiólogos, Wittgenstein defendeu sempre essa mesma conceção (a de que nós conhecemos primeiro associando imagens – ele fala só das visuais, mas nada, na sua filosofia do conhecimento, obsta a que falemos também nas sonoras (Monk, 2012)). Por via menos explícita, muitos escritores e pensadores, desenvolvendo paralelamente particular (e muitas vezes criativo) interesse pela fotografia, desenho, pintura, confirmam-nos a suposição (v. dois casos: Herman Hesse e J. Luandino Vieira). De onde se conclui que o pensamento não se projeta sobre a linguagem e as imagens, nem podemos também conceber uma relação recíproca entre pensamento e linguagem como se eles firmassem um pacto de elaboração mútua de onde se excluiria, como consequente ou subsequente, a formação figurativa. Ambos (pensamento e linguagem) derivam de tal formação, como duas linhas distintas entrelaçadas, e são condicionados por ela. É plausível que se entrecruzem, espiralando-se, mas nenhum dos dois deixa de ser como que uma especialização posterior do que podíamos intitular o discurso das imagens (Damásio, 1995 pp. 122-123). Ora a arte, operando por composição e articulação de imagens, há de estar mais próxima do decurso imagístico do que o pensamento ou a linguagem: ela pode funcionar como um recuo da linguagem e do pensamento às suas fontes, definindo-se assim, psicologicamente, como um regulador, pela origem, desses dois mecanismos auto-reguladores.

 

O realismo linguístico de que falo fundamenta-se também, mais remotamente (ainda quando apadrinhado pelo Romantismo) e filosoficamente, na ideia de que, no “sujeito que conhece e no que sente está a forma da coisa conhecida e da sentida, uma vez que todo o conhecimento se processa mediante alguma semelhança (imagem)”[22].

 

Conhecer um objeto exterior será, para esta generalizada visão das coisas, acender dentro de nós uma forma prévia que lhe corresponde; e, se só assim podemos conhecê-lo, é porque tal forma existe em nós antes de repararmos no objeto. Não surge, pois, por aprendizagem, ou pelo desenvolvimento de capacidades inatas em interação com o meio, mas está lá à partida, como fazendo parte do nosso corpo ou cérebro desde o nascimento.

 

Tal filosofia responde – a nosso ver de forma ingénua – a uma questão que se pode colocar às descrições científicas complexas de António Damásio. É a questão de saber porque surgem os circuitos neuronais, porque fazemos dessa maneira o nosso organismo receber os objetos. As recentes tendências evolucionistas apontariam para a conveniência trazida pelo armazenamento, que torna as respostas aos estímulos e aos perigos mais rápidas e mais certeiras. É possível que isso tenha contribuído fortemente para nos organizarmos assim. Entretanto, em O erro de Descartes, anota-se uma curiosa (já não recente) observação da neurobiologia: o desenho de tais circuitos é, por vezes, similar à forma dos objetos, como se de facto eles estivessem ali esboçados, à espera de um estímulo que lhes desse nitidez.

 

Sendo assim, a relação íntima garantida na semelhança entre a forma pré-existente no sujeito (a forma a priori do sujeito) e a forma transcendente do objeto, como coisa que existe sempre e em qualquer lugar, terá por igual a sua expressão no ato de falar e no de escrever ou ler um poema, conduzindo-nos à sua compreensão projetiva: o poema reflete essa comunhão de formas com o mundo, porque estamos perante a única maneira de ver o mundo. E tal comunhão reclama-se de uma circunstância e de uma intenção específicas, que delimitariam o significado das palavras, das conversas, das obras de arte.

 

O que devemos discutir então é se uma tal interpretação do realismo aristotélico se justifica. Penso que não e por duas ordens de motivos.

 

Por um lado, o perspetivismo filosófico, largamente confirmado nas investigações que, ao longo do século XX, se desenvolveram no campo da psicologia e da semiótica da perceção, permite hoje fundamentadamente impugnar a teoria do conhecimento, ou uma psicologia do conhecimento, que subjaz a tal interpretação de Aristóteles (Osgood, 1973). A categoria nomeada pela psicologia experimental como «dinâmica central na perceção» (Osgood, 1973 p. 230)[23], e que António Damásio preencheria com a ideia de uma sincronia de diversos sistemas complexos de perceção e processamento de estímulos (Damásio, 1995 pp. 110-116)[24], sincronia sustentada em processos lineares inatos e processos complexos aprendidos[25], torna ao menos ingénua a questão de saber se há formas a priori correspondentes aos objetos e se tais formas se projetam sobre a linguagem, que as pode mudar para sugerir outras inexistentes.

 

Charles E. Osgood cita, mesmo no início do capítulo que sobre a perceção inclui no seu Manual De Psicologia Experimental, uma característica dos fenómenos percetivos que nos ajudaria desde logo a impugnar o realismo em causa: a flexibilidade da organização das perceções, o facto de elas variarem e se “iludirem” em relação ao que em outros momentos vemos como correto, concreto ou exato.

 

Ora, se é possível iludir ou variar as configurações que o sujeito constrói face a estímulos sensoriais constantes, é porque não há uma forma a priori que limite e oriente a perceção do objeto, mas diversas possibilidades de resposta, uma espécie de potencial imagístico[26], na base do qual estão estratégias e raciocínios de resposta que o sujeito vem desenvolvendo desde que nasce, a partir de fatos tão simples como a preensão de objetos, a manipulação pela voz e a partir de algumas capacidades lineares inatas. O nível de aleatoriedade e variabilidade, ao longo da vida e no interior do potencial de imagens, é suficiente para garantir que a ligação a uma circunstância não determina uma univocidade de respostas percetivas ou discursivas.

 

A constância na perceção – mesmo perante a transponibilidade dos estímulos – e o seu caráter holístico, podiam ainda levar-nos a defender a existência de formas a priori condicionando a apreensão (as quais teriam de ser necessariamente poucas e de caráter acentuadamente abstrato). Porém, esses aspetos da organização percetiva são contrariados pela fluidez e ambiguidade do seu caráter, quando confrontadas as pessoas com a experimentação sensorial em face do mesmo estímulo num período mais longo do que o habitualmente dispendido para apreender (Osgood, 1973 p. 260)[27]. As perceções podem ser alteradas, ainda, “fazendo variar as características do estímulo”, ou “influenciando as atitudes”, ou jogando com estados de fadiga (Osgood, 1973 p. 262). Significa isso que elas são passíveis de mudar por estimulações diversas (e não estritamente sensoriais, como se vê pelo caso da influência sobre “as atitudes”). Se as formas a priori nos condicionassem (se existissem como as pensam) não seria possível mudar as perceções.

 

Complementando, a constância e o “holismo” das organizações percetivas podem explicar-se de outra maneira, que desobriga a aceitação da existência de estruturas a priori que se combinassem com formas do mundo real[28]. Podemos, por exemplo, invocar a noção de «hábito» e de «aprendizagem percetiva», conhecidas pela psicologia experimental (e de que o comportamentalismo abusava para calar as suas deficiências teóricas), bem como direcionar nesse sentido a lição de Piaget desenvolvida em Biologia e conhecimento (Piaget, 1978), para concebermos como se chega a tais características da perceção.

 

Se o fizermos iremos configurar a biografia da perceção como um percurso ao longo do qual, a partir de atuações inatas elementares (distinção por contraste, fixação nos pontos luminosos), que vão sendo ampliadas e modificadas pela aprendizagem (como sucede com a impressão de que o que não se vê não existe, própria das crianças na primeira fase da vida sensorial), se chega ao armazenamento de representações potenciais de que fala Damásio. Estas representações ficarão guardadas em ‘estado de dormência’ (inconsciente) no cérebro e serão reativadas perante novos estímulos sensoriais, ou pela memória, ou por um magma de emoções e associações de imagens. A sua re-presentação (tornar de novo presente) nunca é igual à figuração anterior, ou seja: nós nunca vemos exatamente a mesma imagem do mesmo objeto, nunca repetimos exatamente os mesmos circuitos neuronais que nos permitiram formar uma imagem anterior do mesmo objeto. Por essa via, é neurologicamente explicável o facto de as nossas perceções serem variáveis e de as imagens guardadas na memória contrastarem muitas vezes com as referências que lhes deram origem quando, passados anos, as percecionamos novamente. Explica-se também que as nossas perceções não sejam sempre fiáveis, podendo programar-se a ilusão imagística, tal como depois se programará a ilusão linguística através da qual enganamos os outros ou lhes apresentamos uma ficção, por exemplo, autoral. É claro que estes rápidos de raciocínio precisavam de ser detalhados, o que fiz aqui, principalmente neste parágrafo, foi resumir um percurso de pensamento que nos levaria à conclusão que postulo. Cabe ao leitor, acossado por dúvidas, livrar-se delas investigando em pormenor o roteiro que dou no geral aqui.

 

 

Estes argumentos fui buscá-los à Psicologia, mas acho que o realismo linguístico de que falo pode resultar ainda de algum deslize semântico. A interpretação de S. Tomás que citei, seguida por José Enes, está baseada na convicção aristotélica do conhecimento por semelhança. Garante-nos, portanto, que há uma semelhança entre o objeto e uma forma dele que, talvez em contraste com a platónica forma ideal, temos guardada em nós. Porém, a semelhança sobre a qual o conhecimento se busca não será obrigatoriamente aquela que existe entre forma e coisa, ideia e objeto; é a que se verifica entre duas ou mais figurações psíquicas, percetivas, com que representamos dois objetos diferentes (daí, também, a variedade e ambiguidade de certas respostas sensoriais). É esse tipo de semelhança que, na Poética, leva a aproximar a ciência, ou técnica, da metáfora e a sabedoria (Ricoeur, 1983; Dolezel, 1990; Belo, 1994), não é a semelhança entre objeto, palavra e ideia.

 

A similaridade[29] sobre que se procura o conhecimento verifica-se, portanto, entre figurações e não obrigatoriamente entre estímulos sensoriais e formas a priori, ou entre objetos transcendentes e uma sua perceção fixa. Ela parece, aliás, apenas poder estabelecer-se entre representações e não propriamente entre estímulos, ou entre imagens e objetos – se acreditarmos, com António Damásio, que a definição de «mente» (no sentido que a palavra toma nos EUA) implica a capacidade de formação de imagens e representações a partir dos estímulos e da memória[30], imagens sem as quais o conhecimento não existe, não sendo os estímulos e a receção deles suficientes para as formar (Damásio, 1995 pp. 104-106; 115-116), ou despertar.

 

Portanto, a afirmação de que “todo o conhecimento se processa mediante alguma semelhança” deve ser reinterpretada: só podemos representar um objeto ou uma ação se, em algum aspeto, os pudermos imaginar (por diferenciação, similaridade, ou ambas) relativamente a outro objeto ou ação que recordemos, ou cuja configuração nos tenha sido fornecida antecipadamente por alguém – falando, escrevendo ou desenhando. Não há, pois, uma obrigatória relação de realidade entre o que se diz, ou escreve, e o que se conhece (porque para escrevermos ou dizermos – ou seja: para imaginarmos o que vamos dizer ou escrever – não precisamos conhecer, basta-nos ter ouvido falar ou ter lido). Também, por consequência, não pode haver uma relação projetiva entre o que se pensa e o que se representa, até porque se representa antes de pensar (Damásio, 1995 pp. 105, 122-123) e se representa muitas vezes aquilo em que não se pensa.

 

O que me parece existir é uma relação analógica entre a figuração psíquica de algo e tudo o que se pode recordar ou configurar em associação ou dissociação com ela. O que a literatura faz é fixar, por momentos, uma figuração sem nos indicar as suas fontes, para que os leitores possam conotá-la com as deles. Ir à procura dessas fontes nos contextos e na biografia é, portanto, matar esse jogo com o leitor em nome de verdades muito mais difíceis de comprovar. O que realmente conta é o próprio jogo, o meter em conotação que a literatura promove, como outras artes. Isso é que precisamos compreender e explicar se é de literatura que vamos falar.

 

Além do mais, há que evitar esforços inúteis e inconsequentes, ou relativos a dados biográficos, ou relativos aos contextos de autor. Porque, se o que figuramos a partir de estímulos sensoriais depende do que, analógica ou diacriticamente, recordamos ter configurado antes, e se a nossa perceção é oscilante, aquilo a que chamamos visão do mundo de um povo, tanto quanto a nossa, não será mais do que uma interpretação limitada de tudo o que, sendo atribuído a tal povo num dado momento, podemos reunir em torno de um determinado fio de sentido, num trabalho no mínimo tão artificial quanto a construção de uma autobiografia ou de um autorretrato. A linguagem não tem, portanto, um referencial fixo para exprimir, mas uma potencialidade com a qual trabalha por vias diferentes conforme se constrói um artifício artístico, uma visão do «eu», ou uma descrição sistemática de processos exteriores, ou…

 

 

Transpondo os termos para o campo mais estritamente literário, nós só podemos reconhecer as figurações que o texto nos fornece em função das recordações de que somos possuidores, que envolvem e conformam também os conhecimentos do autor, ou sobre o autor, ou sobre o seu tempo e lugar. Um poema, por mais fantástico, nunca deixa de funcionar precisamente porque é possível, a partir das nossas recordações, acompanharmo-lo na composição das suas referências em vez de o imaginarmos a descrever-nos as experiências do autor. De outra forma, como seria possível hoje ler Homero? Ou a poesia da corte Nahuátl (ou Azteca)? Esta continua a ser uma questão fundamental para a teoria literária. A atividade poética estuda as semelhanças possíveis entre várias representações possíveis, numa ligação entre lógica e analogia que mantém a já aristotélica proximidade entre filosofia e poesia – como entre saber e metáfora. O autor será – já desde Aristóteles – fiel ao que, a cada momento, nos parece que se pode imaginar, mas não, necessariamente, ao que pôde ver e sentir. A presença da realidade na poesia é sempre a presença do possível ou do verosímil, em tal facto assentando a adoção suíça da teoria dos mundos possíveis de Leibniz – e a própria teoria leibniziana (Aristóteles, 1986 pp. 9, 1451b; Dolezel, 1990 pp. 64ss, 73).

 

Duas leituras ‘comunicacionais’: redução à teoria exposta

Se é mimética a base de uma das confusões que provoca a desatenção ao artifício enunciativo na poesia (no sentido em que pressupõe que o autor mimetiza necessariamente uma circunstância do – seu – mundo, quer quando fala, quer quando faz poesia e no sentido em que esse mimetismo circunstancial é que descodificaria o verdadeiro sentido dos poemas), outras há que se aproximam de visões pragmáticas da psicologia da criação, que não seriam impugnadas pelo que escrevi até agora. Proponho um exemplo: é sempre possível afirmar que, num caso como o da narrativa fantástica, o texto funciona porque há um feixe de recordações (inclusivamente literárias) que são comuns à obra e ao leitor, o que permite estabelecer entre eles um «pacto referencial».

 

Numa perspetiva comunicacional podemos, portanto, postular que o autor está sobretudo atento aos instrumentos de que dispõe para construir o jogo artístico, avaliando-os pelos efeitos e pelos cânones a que tais efeitos devem corresponder, como qualquer artesão. É natural que ele depois modele ou refigure a sua imagem pública em função da leitura que fez dos seus próprios resultados, para que o leitor não estranhe as eventuais mudanças de uma obra anterior para outra posterior. Leia-se, a título de exemplo também, o reajustamento da imagem pública de Kierkegaard no Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor. Vale a pena citar aqui um trecho:

 

O primeiro grupo de escritos constitui a produção estética; o último, a produção exclusivamente religiosa: o Post-Scriptum definitivo e não-científico encontra-se entre os dois, formando o ponto crítico. Esta obra põe e trata o problema que é o de toda obra, de tornar-se cristão; retoma e analisa a produção pseudonímica e os dezoito discursos edificantes intercalados; mostra como este conjunto esclarece o problema, sem contudo avançar que este itinerário foi intencional na produção precedente, o que é impossível, porque se trata de um pseudónimo estudando outros pseudónimos, portanto, de um terceiro que nada pode saber dos objetivos de uma produção que lhe é estranha. O Post-Scriptum não é de ordem estética, mas, para falar com propriedade, também não é religioso. É de um pseudónimo; apesar de tudo, inscrevi nele o meu nome como editor, o que não fiz com nenhuma outra obra puramente estética; é um indício para quem tenha o sentido e a preocupação destas coisas. Depois, passam dois anos durante os quais aparecem unicamente obras religiosas assinadas com o meu nome. O tempo dos pseudónimos acabara; o autor religioso tinha-se desembaraçado do disfarce estético – depois, para fazer fé e por precaução, o pequeno artigo estético assinado com o pseudónimo Inter et Inter. Num sentido, toma de repente consciência de toda a obra e, já o disse, lembra, mas de uma maneira inversa, os Dois discursos edificantes (Kierkegaard, 1986 pp. 29-30).

 

 

Assim ele organiza toda a nossa leitura da sua vasta obra, integrando cada mudança numa sequência ordenada, lógica, irrepreensível no seu sentido próprio. Também aqui o autor estava, porém, mais preocupado com a imagem de sinceridade, autenticidade e continuidade que pudesse transmitir do que com a expressão do que sentiu. Os sentimentos (no caso: a insegurança perante o que pensava o leitor) podem ser vistos então como motivos para despoletar processos criativos, não os condicionando além disso.

 

Trata-se de uma perspetiva que impugna a leitura biográfica historicista, factualista, na medida em que vê a projeção do autor sobre a obra a partir dos instrumentos que lhe interessam e não dos factos ou ideias que o motivam. Ela postula, porém, uma teoria modelar da composição, se for entendida numa das suas vertentes, o que passo a expor.

 

A perspetiva comunicacional (ou pragmática) pode estar subdividida em duas partes: numa o autor é visto, como um artífice, em função dos artifícios que utiliza; na segunda é um sujeito psicológico dirigindo-se à sociedade por meio de estratégias conformadas por objetivos ideológicos e pessoais, por mensagens que deseja ou entende conveniente comunicar.

 

No primeiro caso, a perspetiva comunicacional está de acordo com a teorização clássica: há que estudar o autor pelos instrumentos que ele utiliza, e o estudo dos instrumentos terá de se fundamentar no trabalho literário, textualmente verificável. No segundo caso ela volta a ser expressivista, porque a leitura de um poema como estratégia de comunicação de mensagens pressupõe a descodificação das regras textuais por analogia com eventuais relações de caráter social que ligariam autor e leitor, autor e sociedade, etc.. Por tal motivo, neste segundo caso (que é o mais comum), os autores saltam facilmente da teoria da comunicação para a da literatura, suportados em perspetivas biográficas implícita ou explicitamente admitidas, e modelada a biografia por um tipo de sujeito que as suas obras estabelecem previamente, no contacto com outras áreas do saber[31].

 

A existência de um sujeito que faz a obra pode não ser posta em dúvida – embora se possa multiplicar ou somar a outras autorias, como fizeram Eça de Queirós e Ramalho Ortigão em Portugal no fim do século XIX; ou reconhecer, perspetivisticamente (Olabuénaga, et al., 1989 p. 74), a sua multiplicidade original – o que o pensamento sobre a arte literária podia comportar, pelo menos, desde a teorização da Poética de Aristóteles, que a inclui na esfera do possível, ou do jogo dos possíveis[32]. Nesta perspetiva, a noção de verossimilhança contraria as teorias da expressividade – sintomaticamente surgidas com o Romantismo, com a superação dos paradigmas clássicos, ainda quando fosse preparada pela redução neo-clássica do conceito de «mimese» ao de «cópia da natureza» (e dos modelos literários) – de onde se passou (ainda nesse tempo) à «cópia do eu», ou do génio.

 

O autor é, sobretudo, a possibilidade do autor, a composição de uma figura verosímil que verosimilmente escreveu o texto. “Insistir, contudo, no intelecto designante como causa de um poema não significa conceder ao desígnio ou intenção o papel de um padrão pelo qual o crítico pode julgar o valor da realização de um poeta” (Wimsatt, et al., 1983), ou explicar o poema literariamente. Repare-se como Aristóteles (autor que fomos reconstruindo sem termos lido qualquer livro dos que publicou durante a vida) falava sempre nos desígnios autorais enquanto objetivos de um artista, de uma figura que deseja ser publicamente reconhecida por um bom e belo trabalho (desde o início da Poética: “como se deve construir a fábula visando a conquista do belo poético”). Ou seja, o autor é sempre reconhecido como o artífice e pelo artifício, não como a fonte psicológica do caudal de conteúdos, na Tragédia assegurados pelos mitos.

 

Foi a importância dada pela teorização romântica à lírica, a par da sua conceção de subjetividade, que – fugindo à ideia de representação ou imitação de sentimentos explanada por Batteux[33] – conduziu o pensamento literário europeu rumo ao expressivismo e ao biografismo.

 

Mas a teoria clássica não estava apenas condicionada pelo prestígio das artes representativas ou narrativas; pode-se pensar, pelo contrário, que ela condicionava os teóricos e os críticos a tal prestígio. Pode-se pensar que não era por Aristóteles se centrar na Tragédia que ele teorizava sobre a imitação; é bem provável que, por ser nele central o conceito de imitação, privilegiasse a descrição das artes representativas. Porque as artes representativas permitiam melhor exemplificar o trabalho poético enquanto artifício, construção – de acordo com a etimologia da “arte ainda por nomear” e com o conceito criativo de «mimese». Dessa forma, a teoria clássica evitava as armadilhas da particularidade e da subjetividade expressivas, explicando e valorizando apenas a partir do que era abrangível como totalidade orgânica observável: o texto e suas apresentações (hoje diríamos: performances).

 

A existência e as características do autor textual só podiam, pois, explicar-se e valorizar-se literariamente a partir de uma totalidade que, por ser textual, fosse abrangível, descritível enquanto unidade complexa, e passível de experimentação sistemática de diversificadas hipóteses de leitura. “Neste contexto, a «intenção do autor», mesmo quando em declarações expressas pelo próprio autor, existe unicamente como uma figuração dos vários dispositivos respeitantes ao processo de filiação da obra literária” (Martins, 1993 p. 133). Entretanto, como sabemos, nas artes dramáticas a questão do autor fica no mínimo esbatida pela importância dos meios que as tornam verosímeis para o público.

 

Na segunda perspetiva pragmática atrás enunciada, pelo contrário, o quadro comunicacional conduz-nos a hipóteses de leitura do sujeito público que não conseguiríamos averiguar em literatura sem projetarmos uma ideia prévia do autor ‘real’, cuja intencionalidade se tornava de novo pertinente para o estudo da sua atuação pública, vista como ‘verdadeiro’ condicionador da representação literária.

 

A colocação da problemática (das relações entre autor, obra e leitor) ao nível do sujeito psicológico determinado por escolhas intencionais visíveis – ainda que no âmbito de uma teoria da comunicação – elide, normalmente, a determinação precisa do nível de condicionamento social e biológico do poeta. Que haja limites sociais e biológicos que, por sua vez, diminuem o leque de escolhas de um autor, é natural e inegável; mas não legitima a ideia de projeção de conteúdos coletivos (personalizados ou não) sobre a intenção artística, a intenção de ser escritor.

 

Se aceitarmos isso, voltamos a ter em conta uma teoria mimética da arte, o que explica o facto – vê-lo-emos ainda neste capítulo – de os teóricos habitualmente fundirem conceitos miméticos e pragmáticos de Lírica. Para aceitarmos a segunda perspetiva, da leitura da poesia enquanto estratégia de comunicação de conteúdos socializados e selecionados por intenções pessoais, antes precisamos averiguar se a criação dos artefactos literários não deriva da mesma fonte que a formação da personalidade – e, portanto, se a criação poética não é autónoma (ainda que entrelaçada) em relação à aquisição e apropriação de conteúdos socializados.

 

 

 

Contraposições à psicologia e filosofia expressivistas do relacionamento entre o autor e a obra

 

A legitimação da perspetiva comunicacional do primeiro tipo leva-nos a fixar a atenção sobre o «co-texto» – e isso não nos obriga a postular uma psicologia ou filosofia da criação artística para lermos o texto. Repare-se: não nos leva a postular, não precisamos dela para dela deduzirmos a organização textual e seus possíveis significados; o que não significa entendermos que a leitura construtivista seja fechada sobre si e não encontre nas outras disciplinas teorias concordantes, que explicam por que funcionamos assim, a partir da criação e manipulação de co-textos que o próprio texto resolve ou implica. Já a justificação da segunda perspetiva obriga-nos a verificar se há mesmo um fundamento psicológico para acreditarmos numa intenção especificadora do conteúdo das obras, que domina a sua produção de significados e abeirando-nos da qual podemos encontrar o ‘verdadeiro sentido’ de uma obra, uma intenção que projete filmicamente a mundivisão do autor e que possibilite a sua comunicação direta ao leitor. Uma vez que assim é, precisamos de pedir à Psicologia mais um esclarecimento, agora sobre a existência ou inexistência de relações de anterioridade, posterioridade ou de simultaneidade entre visão do mundo, personalidade, obra literária e motivos comuns.

 

Para nos orientarmos eficaz e rapidamente num campo tão vasto quanto esse – que, ainda por cima, não é familiar à crítica literária – convém definirmos com precisão as várias possibilidades teóricas que procuramos recusar ou confirmar. Isso nos permitirá incidir desde logo no aspeto psicológico imediatamente mais útil, obliterando os outros, para que o leitor não desista nas árduas páginas deste capítulo, que já não será curto.

 

O que principalmente me afasta do conceito expressivo de subjetividade é que o autor textual seja lido e explicado a partir da pressuposição da existência necessariamente projetiva dos modelos de personalidade e de vida, ou dos factos da biografia sustentada numa força íntima intencional (consciente ou não, deliberada ou não), seja qual for a via de projeção que, entre os dois, se pressuponha.

 

Por causa do pressuposto projetivo, a legitimação das leituras e conceções expressivistas passa pela verificação da existência de semelhanças entre diversos fragmentos discursivos (literários e não-literários) atribuídos à mesma pessoa (o que, aparentemente, permite estudar apenas um sujeito público ‘documental’). Substitui-se, com essa operação romanesca, a ideia de um sujeito textual pela de um sujeito intertextual que recupera a noção de um autor supra e transtextual, salvo do naufrágio como postulado indispensável ao estudo de uma obra, ou das relações acessíveis que ela estabelece com os referentes que nomeia.

 

Tal fundamento foi atualizado por Krysinski num sugestivo artigo intitulado «Subjectum comparationis: as incidências do sujeito no discurso» (Krysinski, 1989). Tomo-o por sinédoque de tudo aquilo em que, simpaticamente, se inseriu.

 

O correlacionamento da “dimensão cognitiva da literatura” com outros campos teóricos (Krysinski, 1989 p. 245) é um ponto de partida proposto ao ensaísta e professor (a meu ver justificadamente) pela nova retórica científica, permitindo-nos ultrapassar uma especialização estanque que resultava da má interpretação dos métodos seguidos nas ciências exatas ou biológicas (má interpretação que não era um exclusivo das ciências humanas, mas uma leitura por elas importada). O texto que tenho em referência realiza, por isso, uma intermediação sugestiva entre os vários campos teóricos que põe em jogo. Daí pensar que ele abrisse para uma leitura intrínseca da obra que seria confrontada mais tarde com a teoria do sujeito em outras áreas – o que procurarei fazer com a lírica de M. António.

 

Mas a comparação entre os resultados do estudo do sujeito em literatura e da construção do sujeito por outras áreas científicas não tem que, necessariamente, levar à fusão da ideia literária de escritor na categoria transcendental do indivíduo ou da pessoa – como, na linha de alguns trabalhos recentes[34], parece fazer Krysinski, chegando ao ponto de promover a integração (pragmática e psicanalítica) do narrador no autor: “o narrador é uma voz do autor, sujeito humano que ocupa um lugar polémico, ou seja, conflitual, no mundo real e que transmite o seu ponto de vista ao leitor. Este ponto de vista convoca um dialogismo cognitivo uma vez que, visando o leitor, o autor apoia-se sobre a particularidade subjetiva da sua mensagem que está a objetivar” (Krysinski, 1989 pp. 245-246). Isso nos levaria a substituir, no paradigma do estudo crítico, um critério de correspondência com os factos literários por outro de compatibilidade e coerência multidisciplinar que o deve seguir (Fokkema, 1989). Realmente, só podemos interagir com outras áreas do saber se temos algo de próprio para comparar e a importação de modelos a priori esquece isto.

 

A observação do esforço comparativo pode, pelo contrário, levar-nos à denúncia da ideia de sujeito com unidade e coerência biográficas que ligariam e explicariam todos os fragmentos de discursos públicos que lhe sejam atribuíveis.

 

Já Fichte, como recorda Habermas, notara o vício de forma a que se dá aquele que procura fazer de si o próprio objeto de conhecimento, pois, ao fazê-lo, “não se encontra mais a si mesmo como subjetividade espontaneamente produtiva” (Habermas, 1991 p. 239). Isso chama-nos a atenção para o facto de o próprio processo de autoconhecimento anular a espontaneidade e, portanto, alertar-nos para a necessária artificialidade de qualquer autorreferência, mesmo concebida no interior de um sujeito psicológico não animado por uma intencionalidade literária ou comunicativa.

 

Retomando conceitos à filosofia de Leonardo Coimbra, podemos fazer um símile das relações do observador e do observado no processo de conhecimento com as relações entre o criador e o criado no processo artístico – porque ambas são propostas enquanto relacionamento criativo.

 

Tal como numa ligação cognitiva sujeito e objeto se refundem mútua e constantemente enquanto “anunciações da pessoa”, assim também, na criação literária, o que o autor vai esculpindo, as personagens que modela, alteram a sua própria figura – que, por isso, não fica lá registada como era e como virá a ser, mas apenas (e não por inteiro) como foi no diálogo com as personagens e situações que inventou. Não por acaso, muitos romancistas falam das suas personagens, frequentemente, como tendo-se autonomizado, agarrado a sua própria lógica impondo-se, a partir daí, ao seu criador.

 

Que esse diálogo modifique e reconstitua a própria personalidade do sujeito transcendental, é um assunto que deve preocupar os psicólogos e os filósofos, não os críticos – ainda quando estes aceitem que “o eu e a linguagem estão mutuamente implicados num único e interdependente sistema de comportamento simbólico” (Eakin, 1988 p. 83). Porque, situados na posição do leitor, os críticos nunca deixam de ter perante si a linguagem primeiro e o «eu» do enunciado depois – o que anula a afirmação de Eakin segundo a qual essa dicotomia não faz sentido. Trata-se, na verdade, de uma dicotomia que tem de ser perspetivada de forma diferente conforme o lugar onde se situa quem a reconstrói (o psicólogo no polo do autor ou do leitor, o crítico no polo da obra e do leitor), mas não deixa de ser oportuna por isso. A citação que Eakin faz de Benveniste nessa passagem não parece também vir a propósito quando se trata de uma obra literária; mas, mesmo na linguagem comum, a posição de receptor implica a primordialidade da linguagem, enquanto a posição de locutor implicará talvez a relação mútua de que fala Eakin.

 

Se nos colocarmos, provisoriamente, no lugar de quem olha para o autor – um lugar que reconheço não ser o meu – teremos de acrescentar que, ao assinar uma obra, o sujeito se compromete com o público a assumir o papel de quem a escreveu. Essa personagem pública (o autor) é também uma personagem fictícia – apesar de se apresentar no ‘mundo real’. Esse mundo real é, de resto, muito teatral, como sabemos e não só quanto à literatura. Quantos comerciantes sobrevivem quando lhes desmontam ou denigrem a imagem pública chamando aspetos escondidos e desagradáveis da sua pessoa? O que ele deseja comunicar aos outros, tanto quanto o poeta, é uma imagem adequada. As mensagens, os conteúdos, são manipulações para construir esta imagem. Ela vai ter a sua caracterização textual articulada com a fidelidade ao que já disse inicialmente (por exemplo no princípio da obra), ao que disse antes publicamente (por exemplo anunciando o romance numa entrevista) e ao que, dos livros anteriores, disse e foi dito, ou escrito (por exemplo pelo cariz biográfico de algumas recensões). Por aí também se vê que fica muito limitada qualquer expressão ‘sincera’, ‘autêntica’, do ‘autor’. O veicular conteúdos, significados, até mesmo sintomas, assegura-nos que há a intenção de figurar um autor deste ou daquele tipo e que, por isso, ‘levar a sério’ o que ele diz é cair no ridículo. Porque ele só nos diz: pensa em mim desta maneira para que pareça ser assim. Ele só nos diz que a personagem que ele pretende construir veicula tipicamente aqueles conteúdos que o discurso lhe atribui. O que transmite de seu é uma variação sobre um tipo, não é o que o tipo diz aos outros, isso está estipulado. 

 

A relação que possa haver entre um autor empírico e o sujeito-locutor de um texto subjetivo, se um eventual género da subjetividade o fosse da expressão – e, portanto, da sinceridade ou do espelho de um «eu» profundo – encontraria o seu melhor exemplo projetivo em espécies como o chamado ‘Diário íntimo’. Ora, é precisamente pelo estudo dessa espécie – psíquico, mesmo clínico, ou simplesmente retórico – que logicamente podemos concluir acerca da insinceridade e da opacidade que o funda, como demonstrou Gusdorf em La découverte de soi (Gusdorf, 1948), ou Beaujour, quando chamou a nossa atenção para a estrutura retórica e mítica subjacente ao “auto-retrato” (Beaujor, 1980)[35], ou (implicitamente) Lejeune, ao chamar de modelo o motivo sobre o qual se debruça a autobiografia (Lejeune, 1989 p. 25), e ainda quando afirma que o autor é também um ator (Lejeune, 1989 p. 31).

 

Os seus estudos permitem-nos concluir, por diferentes vias, que o discurso sobre si constrói (ou contribui para construir) um retrato, uma persona, que se articulará ao que sabemos da existência do sujeito público numa relação toda ela dominada pelo acesso ao fingimento. A intenção de transmitir algo, no Diário Íntimo, é a de transmitir uma imagem de si, não propriamente a de expressar sentimentos ou pensamentos com sinceridade. Tais géneros podem servir, então, para um sujeito transcendental compor uma imagem de si, por exemplo para esconder aspetos pessoais aos outros membros da sua comunidade. As espécies confessionais servem, pois, enquanto inventam e não enquanto refletem. É a relação criativa que, através delas, um autor estabelece consigo próprio que as pode justificar psiquicamente e, por isso, não exprimem quem fala, não podemos medir nelas uma autenticidade subjetiva[36], nem podemos – por extensão – esperar delas indícios ontológicos fiáveis ou sintomas patológicos. Daí que Gusdorf reconheça, apesar de fazer um estudo expressivista, que “a criação artística e a redação de um diário íntimo aparecem-nos como trabalhos onde se cria o criador” (Gusdorf, 1948 p. 120).

 

Se a perspetiva expressivista admite que o criador se cria na obra de arte (e não se reflete nem se procura nela), enquanto mero estudioso dos factos literários apenas admito que na obra se cria um criador, uma figura do criador, alheando-me do estudo da génese mental do texto, que não estou habilitado a definir ou desenhar. O que tenho em mãos é um texto que inventa uma figura para seu autor e tenho de perceber como isso funciona comigo enquanto leitor. Até que ponto houve intenção, se foi consciente ou não e qual era ela, isso entra já na esfera do kizemu, da má-língua, da cusquice, do mujimbo – géneros artísticos impróprios para críticos literários.

 

Uma teoria concordante com a minha posição, que não deixa de ser de raiz criacionista (agora já não no exclusivo sentido que derivei da filosofia de Leonardo Coimbra), consiste em ver a relação criativa entre o sujeito (autor) e o objeto (obra) como uma espécie de jogo interiorizado, que definiria a arte (Silva, 1964)[37].

 

O jogo é um discurso dominado pela comparação e pela condição. “Se”, “como se”, “imagine o leitor”, “suponhamos”, são literariamente conhecidos através de expressões recorrentes e de que ressalta a fórmula “era uma vez”, ou só “uma vez”. São aquilo que Ricoeur, na esteira de outros filósofos, chama de “regras constitutivas”, neste caso inauguradoras (Ricoeur, 1990 pp. 183-186)[38] e que nos tornam outros para sermos socialmente identificáveis.

 

Em muitos poemas, na maioria deles, o convite à suposição intrumentalizando de chofre o pacto de leitura elimina a forma inicial, o indicativo de ficção, numa atitude que reforça os efeitos de verosimilhança do texto e varia conforme as regras do género ou da espécie (enfim, do jogo que se quiser jogar). O género lírico é um daqueles em que, por regra, não se diz “era uma vez” para significar ficção, começa-se logo dentro da ficção, sem aviso. Daí o nível de convicção que ele atinge, confundindo alguns teóricos e construindo uma imagem do autor na qual se poderá fundir – ou à qual se poderá opor – a que o leitor imagina.

 

A regra essencial do jogo é, pois, a da relação criativa do autor com a personagem e do leitor com a mesma personagem que deve ser tida como real para que o jogo funcione. O texto literário só pode funcionar assim, através dessa relação criativa de duplo sentido, biunívoca, em que a personagem, o autor e o leitor jogam um jogo de cabra-cega, de escondidas, de canhê, que obriga a pôr de lado a ideia de sinceridade ou de autenticidade, ou, simplesmente, de projeção do poeta sobre o poema, mesmo que para comunicar uma visão do mundo: lendo com atenção o texto podemos facilmente mostrar a qualquer autor que a sua ‘comunicação’ falhou porque, da sua obra, tiram-se outras visões do mundo que ele não pensou que se podiam deduzir.

 

A teoria lúdica da arte - onde só por ingenuidade se trocaria a ilusão pela expressão de algo – completa-se, por sua vez (e muitos teóricos não falam nisso), numa teoria da aprendizagem segundo a qual apreendemos a realidade por totalidades (Bühler, 1978). Um jogo, por exemplo, não é uma soma aleatória de regras que, separadamente, conhecemos; quando o percebemos e jogamos é por inteiro, na conjugação das diversas regras, e é no interior dessa configuração global que, depois, distinguiremos com maior nitidez cada regra, conforme vamos jogando. Assim também apreendemos o mundo, ou aprendemos a linguagem, como um conjunto de totalidades, de figurações globais sustentadas sobre a perceção de relações, não tanto de elementos (ou melhor: do elemento só a partir das relações que o situam).

 

Ora, a apreensão artística dessas totalidades, desses sistemas, é diferente daquela que realizamos quando sentimos em jogo a nossa pessoa, porque as motivações com que olhamos o mundo são diferentes conforme o que está sobre a mesa seja a nossa sobrevivência, a nossa personalidade, ou a nossa obra. Geralmente, somos mais ‘estéticos’ quando as possibilidades de verdade não constituem perigos. E tais motivações, como tudo o que pode ser animado pelas emoções, são determinantes para a direção que toma o pensamento – o que é uma das teses centrais de obra citada de António Damásio. Aliás, mais do que “tudo o que pode ser contaminado pelas emoções”, a motivação, como processo constitucionalmente definido na dependência de objetivos, é determinante para tudo quanto exija um pensamento planificador – como é o caso do literário. Portanto, se as motivações da criatividade artística e da atividade ‘real’ são diferentes, as atuações sobre que nos centramos para concebermos uma personalidade pessoal e uma personalidade textual estarão igualmente condicionadas a tal diferença.

 

Por isso, as regras que seguimos para construir uma ficção diferem das que procuramos para saber a verdade – embora aquelas vivam também do reconhecimento destas. Quando o artista olha para as coisas relaciona-as numa série diversa da que usa para construir a sua personalidade, série que lhe possibilita encadeamentos aparentemente arbitrários, ou só condicionados ao critério de beleza vigente. O que ele constrói é, portanto, necessariamente diferenciado face ao que ele pensa ou sente no quotidiano – ainda que jogue com isso para se tornar credível enquanto artista. Ainda quando se ‘inspire’ em si próprio, estabelece conexões (entre os elementos que pensa constituírem a sua personalidade) de que se não apercebe quando olha para si ‘a sério’, ou seja, seguindo as regras de outro jogo, do jogo da vida e da morte, ou da mentira e da verdade. Se lhe pretendemos extrair uma teoria de si próprio, do tipo que ele compõe através da autorreferência, ela advirá da análise de como ele compõe. Se o autor pretende ser convincente, sugerir, emocionar, ele joga com uma pressuposição, uma antecipação das reações do leitor. É essa antecipação que nos diz o que ele verdadeiramente pensa conhecer acerca dos homens. E mais além não conseguimos ir. M. António, por exemplo, constrói sobre a criação da sua autorreferência uma teoria do crioulo angolano e da crioulização em geral. Ao fazê-lo joga com artifícios literários, incluindo a combinação de aspetos ‘técnicos’ e de ‘conteúdo’, que nos revelam muito mais como ele nos concebe e se concebe. Estudado isso a partir dos textos que nos deixou formando uma autobiografia lírica, podemos ir comparando com outras teorias acerca de crioulos e de crioulizações e de sujeito e de perceção, para chegarmos a conclusões transdisciplinares – ou, pelo menos, interdisciplinares. As intenções com que escreveu, porém, não as conhecemos e só nos iriam confundir.

 

Esta ideia teve já uma teorização aproximada naquilo a que Lubomír Doležel chama a “poética suíça”, de nítida inspiração leibniziana. De acordo com tal poética, também chamada “dos mundos possíveis” (note-se a marca de Leibniz), “a poesia não é mais do que a formação, na imaginação, de novos conceitos e imagens cujos originais não se encontraram no mundo real das coisas reais, mas numa outra estrutura-mundo possível”. A função do poeta seria a de “passar [os motivos] de um estado de possibilidade para um estado de realidade e, desse modo, dar-lhes a aparência e o nome de realidade” (Dolezel, 1990 p. 72). Isso pode, infelizmente, implicar a subjugação da ideia de possível à ideia de real, reduzindo o possível ao possível segundo as regras conhecidas do mundo físico.

 

A circunstância cultural em que emergia a ‘poética suíça’ terá conduzido a teoria dos mundos possíveis a rejeitar os ‘impossíveis’, que afinal não são mais do que possibilidades a um nível diverso; também a levou a imaginar que tais mundos, de alguma forma, pré-existiam à obra, que os descobria e, de certo modo, realizava. O peso epocal dessa limitação não afeta, no entanto, a pertinência da teoria geral e a possibilidade da sua atualização. Devemos, pelo contrário, estudar a sua possibilidade. Por um lado, alargando o conceito de possível, abolindo as amarras do que é possível de acordo com ‘a realidade’. Porque o possível da literatura é o que é possível de acordo com as regras próprias de cada género: uma fada é possível num conto de fadas (e, para os crentes, nesse mundo espiritual); a indecidibilidade sobre a natureza de uma personagem ou de um acontecimento é possível numa narrativa fantástica, tal como é impossível nesses textos não existir a suspeita de algo ou de alguém que vá para além do que pensamos ser a realidade visível e quotidiana.

 

Podemos conceber o possível construtivamente, ou seja, como o “mundo possível segundo o mundo do texto”, ou da obra, no sentido em que é criado ali e não tem por isso que pré-existir. Não é necessário concebermos a pré-existência dos mundos possíveis para aceitarmos a sua figuração poética.

 

Nesta perspetiva (a dos mundos possíveis liberta dos condicionalismos culturais do tempo em que surgiu), a noção de possibilidade pode agora conectar-se à de jogo: possível é quanto se faça de acordo com as regras do jogo literário, incluindo mudar algumas regras mantendo as outras num ambiente global equivalente. E, dado que os materiais com que se joga fazem parte da definição do jogo, dado que a vida de alguém, as fadas, o vilão, os gigantes ou monstros antropófagos, etc., estão previamente ao dispor dos jogadores, não é necessário concebermos que a sua presença e o tratamento que lhes são dados derivam da intenção de exprimir um conteúdo íntimo, real e pré-determinado, ou da sublimação de um irreprimível humanoide chamado inconsciente – que adiante nos merecerá os devidos comentários.

 

A composição das possibilidades, para além de poder afetar a realidade psicológica do autor, alterando-o ou tornando-o único em cada livro, aplica-se também à figuração do «eu» nos textos destinados a ‘transmiti-lo’, como os diários e as autobiografias – onde, paradoxalmente, surpreendemos melhor a intenção de ser artista.

 

É, a esse título, exemplificativa a experiência desenvolvida por Lejeune a partir das páginas do Magazine littéraire, transcrita em «Cher cahier…». O prefácio que redigiu tem todas as caraterísticas de uma introdução a um relatório experimental em Psicologia, descrevendo as variantes e as variáveis, a situação do experimentador e, tanto quanto possível, a dos experimentados, como chegou ao contacto com eles, que perguntas fez, etc. Ficamos, por esse prefácio, a saber como se constituiu a experiência: todos os que escrevessem um «Diário» que nunca tivessem publicado, ou que não quisessem publicar, podiam responder para a revista indicando os motivos e as condições em que a escrita do «Diário» surgira e se desenvolvera.

 

Nas conclusões a que chega a partir das respostas que foi recebendo (e, por vezes, desenvolvendo com outras perguntas), distingue Lejeune uma “dimensão psicológica” e outra “literária” nos Diários escritos por “não-escritores”. Concluímos daí que, mesmo quando estivermos perante um texto ao qual não possamos atribuir uma intenção literária, o artifício literário tem que ser levado em conta, ou melhor, de acordo com as opções teóricas de Lejeune, a intenção de “criar uma imagem de si e um texto que seduza um leitor como «oficina de escrita» («atelier d’écriture») ou «banco de ensaio» («banc d’essai»)” (Lejeune, 1989 p. 22).

 

Definindo a “dimensão literária” em termos de teoria ou vontade de comunicação artística, Lejeune reconhece, mesmo no “diário ingénuo”, uma componente que lhe afeta a autenticidade, e que reduz a expressão, muitas vezes, aos artifícios retirados à leitura das peças canónicas. Os trabalhos com que alguns destes “não-escritores” acompanhavam as suas respostas (novelas, artigos de jornais ou revistas, poemas e páginas “poéticas” dos diários), atestam a sua procura de reconhecimento como sujeitos públicos caracterizados por serem criadores de poesia, e o quanto essa figura pública se modela, à partida, em função de outras leituras e personalidades estrita e publicamente literárias. Todas estas “obras”, ou os seus autores, se reportam aos “tipos de relações que podem existir entre a escrita do diário e a criação romanesca” (Lejeune, 1989 p. 23).

 

Portanto, mesmo quando a “notoriedade” não autoriza nem estimula a escrever um diário para que ele se torne público, um qualquer “Sr. Todo-o-Mundo” elabora um texto artificial imitando outros do mesmo género – para “exprimir as suas emoções”, como diria um expressivista (Lejeune, 1989 pp. 23-24)[39]. Artificialidade que, de resto, se articula sempre, como lembra Calvino, “à cultura coletiva, à época histórica ou à sedimentação profunda da espécie”, que modelam o sujeito público e o autor textual, tanto quanto as obras e as personagens delas (Calvino, 1980 p. 318)[40].

 

Complemento: o artificialismo pressuposto no «auto-conhecimento» leva o autor autobiográfico a elaborar, como lembra Gusdorf, uma espécie de «teoria» da sua própria vida, excluindo episódios e modificando outros, para modelar uma unidade que explique o sujeito e lhe garanta um perfil que não se dilui no tempo. O trabalho do crítico estudioso de um sujeito “intertextual” é idêntico no que diz respeito ao indivíduo que julga estudar: ele inventa o autor a partir dos seus fragmentos, tal como o autor se inventara a partir de fragmentos da sua memória.

 

A referência à artificialidade do “auto-conhecimento” é muito pertinente perante as opções genológicas da obra lírica de que nos iremos ocupar, pelo que me obriga a debruçar-me sobre o assunto com mais vagar. A reflexão servir-nos-á para, por um lado, vermos como a conceção do sujeito, pela crítica literária e por outras áreas científicas, não é necessariamente aquela que nos propõe Krysinski (baseado em Freud e Lacan, em Kant e na adoção da psicanálise pela antropologia), nem é necessariamente fiável face a um texto literário; por outro lado ela serve para verificarmos e estabelecermos, desde já, que a composição de uma figura de sujeito numa obra autobiográfica não obriga a uma leitura “transcendental” do texto poético.

 

Gusdorf, como disse, apoiando-se em Valéry, alerta-nos precisamente para a idealização de si que todo o género confessional institui, construindo uma ideia de «eu» a partir da procura de um fio que ligue todos os momentos e todas as obras de alguém, como se todas elas derivassem de um sentido único, num encadeamento causal dissimulado pelo aparente caráter fragmentário desse tipo de escritos (sobre tal caráter falarei no segundo capítulo, quando refletirmos acerca das semelhanças e diferenças entre a lírica e a autobiografia).

 

É neste caráter artificial que Dilthey funda a pertinência histórica da autobiografia, como já notei. Mas Dilthey pensava que, apesar de artificial, a “conexão” autobiográfica resultava de uma “autognose da vida” que, na medida em que fixava um sentido, habilitava a uma compreensão. O seu valor heurístico assegurava-lhe, portanto, uma pertinência ontológica exatamente no ponto em que ela podia ser posta em causa: o da autoinvenção. Por essa via assumia um expressivismo que, se teve algum valor no campo da filosofia da História ou do Espírito, não será no entanto funcional nos estudos literários. Aqui, esse tipo de “pertinência ontológica” deixa de ser pertinente – razão pela qual não segui a sua proposta (Dilthey, sd)[41].

 

Retomando Gusdorf, as suas conclusões são reforçadas ao lermos as «Condições e limites da autobiografia»: “a confissão do passado leva-se a cabo como uma tarefa no presente: nela se opera uma verdadeira autocriação” (AAVV, 1991 p. 16). Paul de Man transforma a “autocriação” em “desfiguração” – numa perspetiva mais acentuadamente expressivista: “o eu expressa-se a si mesmo mediante as metáforas que ele cria e projeta, e conhecemo-lo através dessas metáforas” (AAVV, 1991 p. 82)[42]. Conhecendo-o “através dessas metáforas” nada nos assegura que estejamos a conhecê-lo, podemos é conhecer, a partir delas, todas as possibilidades de conotação que elas asseguram.

 

As propostas de Paul de Man também são, no contexto deste capítulo, muito oportunas. Porque ele recusa inicialmente o acesso ao «eu», afirmando que só conhecemos as suas metáforas, a sua existência textual. No entanto, acabará por olhar para a autobiografia como um texto que “revela uma desfiguração da mente por ela mesma causada” (desfiguração? Ou transfiguração?). Ou seja: não acedemos ao «eu» transcendente lendo as suas metáforas, mas acedemos à verdade de um «eu» genérico, típico (a “mente”), que também não é aquela figura especificamente construída por um poema ou uma narrativa, mas a distorcida projeção de uma figuração interior e anterior. Em consequência, a leitura literária não deixa de ser expressivista no seu trabalho, não deixa de servir a crença no poder cognoscente do ato que a constitui, como poder que abrange, não só o escrito, mas também (e inseparavelmente) o campo ontológico e psicológico do autor, pretensamente revelado pelo escrito aos mais acurados críticos...

 

Numa linha de denúncia da leitura “cognitiva” dos escritos confessionais, James Olney aponta oportunamente, ao comentar as autobiografias de Yeats (AAVV, 1991 pp. 43-46), todas as modelizações realizadas pelo poeta sobre personagens e cenas que, por vezes, nem tinha presenciado – e, naturalmente, sobre si próprio. Ao ler essa passagem do artigo de Olney lembrei-me da anedota que, na Teoria da inteligência criadoraJosé António Marina conta sobre Ruben Dário: ao se interessar pela beleza de determinado tipo de flores perguntou como se chamavam, ao que lhe responderam tratar-se de nenúfares. Surpreendido, o autor declarou: “ah! Então é esta a flor que tanto uso nos meus poemas?”. A anedota, que já tinha lido aplicada a Yeats e referindo-se outra flôr, mostra bem quanto a subjetividade artística é o desenvolvimento habilidoso, artificioso, de uma pista que nos abre a faculdade de falar, aumentada pela de escrever. Uma pista que nos permite dizer tudo acerca de tudo sem termos tido qualquer perceção (biográfica e direta) que o justifique. Alicerçado nisso, o poeta inventa a sua própria história, nos versos como nas autobiografias. Imagina-a de maneira a que todos os factos concorram para uma visão artisticamente programada da sua vida.

 

A crítica de Olney à teorização francesa sobre o género autobiográfico (talvez injusta quanto a Beaujour[43]) reforça as suas posições acerca da “ficção do eu”, frisando-nos que o reconhecimento de uma espécie de falácia autobiográfica pelos franceses não impede a sua preocupação com “o eu e a sua consciência ou conhecimento”. É isso que explica o expressivismo da maioria dos autores aqui citados: o seu trabalho não é tipicamente crítico (no sentido literário), mas ontológico, psicológico ou culturalizante (Eakin, 1988; AAVV, 1991 p. 80). O próprio Olney, creditanto a relação «eu-mundo» na projeção do «eu» sobre o «mundo», não fica livre de um expressivismo radical e da inserção do seu trabalho no âmbito da pesquisa ontológica – extravasando, portanto, a fundamentação retórica e literária em que se baseia a crítica por ele endereçada aos outros teóricos.

 

De qualquer modo, se estas posições apontam alguma incoerência por parte dos críticos ingleses, que se tornaram típicas do trabalho literário que se realize de acordo com os propósitos estipulados pelo artigo de Krysinski (o qual nem sequer discute os riscos da leitura ontológica), elas não deixam de apontar o caráter essencialmente transfigurador do fazer poético e, dentro dele, muito especialmente, de uma espécie de escritos subjetivistas: os “autobiográficos”.

 

A transfiguração de cada ‘motivo’ (no caso, cada pessoa) num tipo, e de cada tipo num arquétipo, condutora das configurações imaginárias de uma obra, é simultaneamente a composição de um arquétipo para cada tipo e de um tipo para cada motivo quando o crítico vê o processo na perspetiva do leitor – a única sua perspetiva. Ao escrever uma narrativa confessional, o ‘autobiógrafo’ compõe a mesma transfiguração sobre o motivo que pode ser inicialmente ele próprio, confirmando sempre por essa prática que “a dinâmica da retrospeção está fundamentada na ilusão” (AAVV, 1991 pp. 79-93). Ele também comporá, como o leitor, um arquétipo para cada tipo, chegando aos tipos a partir dos motivos de que se recorda (ou que lê). Assim chegará a dar-nos a imagem de um «eu» escritor e locutor.

 

 

Podemos, portanto, afirmar que, em resumo, havendo uma intenção que motiva o escritor, ela é sobretudo a intenção de se ver reconhecido como tal e não a de exprimir uma visão do mundo ou uma realidade coletiva e transcendente, pois esta pode mesmo transformar-se pela engenharia verbal. A intenção artística (a intenção de ser artista) leva-nos a pesquisar os meios através dos quais o texto concretiza (ou não) a arte. Se, pelo contrário, estivéssemos perante uma intenção que se prendesse com a vontade de projetar mundos «interiores», teríamos de ver que forma assumem esses mundos num texto que passaríamos, psicanaliticamente, a assumir como sintoma. É nessa perspetiva que se colocam trabalhos como o de Krysinski, e outros da mesma recolha. No entanto, ainda que um autor julgue ter feito – muitos escritores militantes nos asseguram isso – uma verdadeira transposição, para a obra, do seu ideário, a típica ambivalência que potencia a leitura alé da circunstância leva-nos a perceber significados de que o autor não suspeitava e, por isso, o que ele nos assegura não nos assegura nada. Veja-se como é comum nós imaginarmos, ao lermos literatura angolana, que determinado autor era colono, quando não era, ou que determinado autor não era branco – e afinal, para a nossa conceção de branco, era. O tal autor, que julgava ter-se figurado correctamente no texto, afinal foi percebido como outro por um leitor que desconhece a sua biografia. Portanto, a falsificação da figura do autor pelo texto, quando não detetada a jusante, encontra-se a montante.

 

O estudo da “falsificação” que institui os textos literários confessionais e o da sua repetição na leitura não serve somente para desfazer aqui (no seio de uma espécie que mais próxima ficaria de se estruturar pela “expressão”) o expressivismo num dos seus fundamentos. Esse estudo aplica-se também à desmontagem de um certo tipo de trabalho crítico.

 

Tal como numa narrativa confessional é possível operar a modelização do «eu» feita sobre fragmentos da existência recordada, também num ensaio é possível atingir um modelo de sujeito a partir de conexões escolhidas entre as que podíamos aplicar aos vários fragmentos textuais de um «autor». A cirurgia é do mesmo tipo, descrito assim por Nietzsche: “o «sujeito» não é algo dado, é […] a ficção de que muitos estados similares em nós são o efeito de um substrato: porém, somos nós os que criamos em primeiro lugar a «semelhança» entre esses estados” (AAVV, 1980 pp. 322, 325, 333-334; AAVV, 1991 p. 123)[44]. A idealização e topicalização da semelhança falseiam, simultaneamente, a realidade transcendental da pessoa e a realidade específica dos escritos, que se limitam a construir os seus autores e, só por vezes, a conectar entre si alguns deles (quase sempre os que se identificam genologicamente) para nos darem a ideia de unidade ou unicidade que a conceção de pessoa pressupõe.

 

Para chegar ao modelo de sujeito que pode ser o “programa narrativo” (Greimas) do ensaísta, ele recorre a construtos oriundos de outras áreas científicas, construtos que, nessas áreas, compõem também uma teoria de sujeito. Na comparação entre as diferentes construções de um sujeito público, a escolha das diversas escolas de pensamento dessas outras áreas científicas é também responsável pelo resultado final – e não deixa de ser polémica no trabalho que tomo por exemplo. Ela não tem que recair, necessariamente, sobre a psicanálise (freudiana e lacaniana), ou as correntes filosóficas e antropológicas escolhidas por Krysinski (e por outros), que o levam a concluir que “não há poesia ou romance, mas discursos do sujeito no romance ou poema” (Krysinski, 1989 p. 248). Nada, no seu texto, legitima racionalmente a seleção e o envolvimento dessas correntes em vez de outras. As escolhas são feitas arbitrariamente, como se a escolha em ciência fosse uma questão de gosto e não uma decisão avaliada pelas consequências científicas, pela produtividade e efetividade dessas consequências.

 

Quase sempre, significativamente, o recurso da crítica literária à psicanálise concretiza-se num processo metafórico sem justificação epistemológica. Vai-se buscar às descrições clínicas da personalidade um modelo de linguagem que funciona como um dos polos da comparação metafórica (o nomeado pela leitura, sendo o outro o nomeado pelo texto). Daí resultam duas atitudes, a nosso ver injustificáveis.

 

A primeira é a que faz a leitura clínica do sujeito construído pela escrita, cujo erro consiste numa deslocação de campo: deixamos de fazer crítica literária e fazemos psicologia … continuando a ser críticos literários. A segunda procura ler a representação do sujeito poético aplicando-lhe um modelo pre-existente – ainda quando afirme reconhecer-lhe uma realidade meramente textual. Ora o que o texto faz é construir uma hipótese ou uma teoria do próprio sujeito, pelo que só a partir da perceção dessa teoria podemos fazer comparações (incluindo analogias e contrastes) com outras teorias vindas de outras áreas.

 

O reconhecimento, ao sujeito, de uma realidade meramente textual era imposto pelo paradigma crítico vigente, que obrigava a tornear o biografismo nos estudos literários. Mas não parece levado a sério, porque a transferência do modelo e das descrições, da psicanálise para a leitura do retrato construído no poema, transvasa ou torneia o bloqueamento antibiográfico. Tal transferência, no entanto, implicaria um estatuto idêntico, ou seja: só podemos ler psicanaliticamente um sujeito textual enquanto ele for abordável como o é o cliente de uma clínica. Se isso não acontecer estaremos a realizar uma leitura antropofágica, incorrendo no erro de projetarmos sobre o trabalho artístico um retrato aceite como válido apenas por derivar de outro campo de pesquisa, que eventualmente focaliza outro tipo de sujeito, ou um momento seu que nos é alheio.

 

As diferenças a que isso nos leva na interpretação podem ser expostas através de um exemplo retirado ao corpus dos 100 poemas. Aí, como se verá, o sonho funciona enquanto elemento identificador e desenculturador ao mesmo tempo. A maneira mais fácil de o interpretar era pegar na leitura psicanalítica dos sonhos e dar ao sonho no texto um papel idêntico ao que ele teria no jogo da personalidade conturbada, lendo a partir daí as possíveis relações entre o sonho e a identidade do locutor enquanto sujeito civil e público. Uma vez que o pai morre cedo na diegese sugerida, sendo associado ao sonho, teríamos uma interpretação mais sugestiva ainda, que procuraríamos relacionar imediatamente com a morte prematura do pai de Mário António Fernandes de Oliveira, assim esclarecendo o motivo pelo qual as coisas estão articuladas no texto seguindo esta e não outra ordem referencial (ou diegética).

 

No entanto, o próprio texto integra a palavra em causa numa rede de relações que nos obrigam a lê-la como designando a existência de um elemento desenculturador e identificador face à leitura da realidade que ele atribui à sociedade que nos dá como referência. A coerência textual implica sempre, em qualquer tipo de texto, com maior ou menor grau de precisão, não a ignorarmos ainda quando reconhecemos que ela nunca domina absolutamente a leitura. É sintomática a «Introdução» de Fernando Belo às Leituras de Aristóteles e de Nietzche. Aí o autor relata que, por não ter ainda lido a bibliografia sobre a Poética, foi anotando minuciosamente a tradução de que dispunha até chegar às conclusões principais do seu trabalho; quando, mais tarde, leu a bibliografia, pouco modificou o texto das anotações e conclusões a que chegara, porque a leitura intrínseca, sistemática e minuciosa tinha-lhe resolvido a maioria dos problemas semânticos que a obra colocava. Isso demonstrou-lhe a pertinência metodológica da leitura intrínseca, posta no topo de uma hierarquia dos passos de leitura. Com a compreensão de uma obra lírica – ou, mais genericamente, poética – passa-se mais ainda o mesmo, dado o seu caráter artificial estar acentuado pelo tipo de pacto de leitura que ela instaura, ou de que vive.

 

É a partir destas atribuições textuais, intrínsecas, que podemos abstrair um conceito de sonho inerente à obra que, posteriormente, se poderá comparar com a definição de sonho fornecida pelos psicólogos, ou por outras áreas do saber. Feita a comparação, verificamos que a palavra “sonho”, nestes versos, apenas designa programas narrativos inviáveis e não uma realidade psíquica do tipo da que foi postulada pela psicanálise (em que a inviabilidade dos programas se prende com certas características da luta entre consciência e não-consciência). Com efeito, não faria sentido aplicar aí a noção de função “compensadora” (mesmo no sentido junguiano), ou qualquer outra das que podem ser atribuídas ao sonho pela psicanálise. Porque os “sonhos” nunca são descritos como ocorrências oníricas (no sentido de ocorrências que substituem a visão quando o sujeito não se encontra no estado de vigília), não compensam frustrações, mas alinham perspetivas que se descobrirão, etimologicamente, inocentes quando o sujeito começar a entrar na maturidade, na perceção do mundo onde tem de sobreviver sozinho. Não é por esse choque que ele sonha, é por ter sonhado que se choca.

 

Quanto à associação entre a morte do pai na vida real e a morte do pai na obra, ligada à conotação do sonho com o pai, que é feita na obra e não sabemos se era feita na vida, outras coincidências semelhantes podem ser estudadas para demonstrar que a vida real do sujeito não se identifica obrigatoriamente com a biografia que no texto se constrói.

 

Há, por exemplo, um poema-livro (Lusíadas), em que o locutor afirma a sua preferência pelos “castanhos” de Vieira da Silva, em contraposição ao gosto do interlocutor pelos “brancos” de Arpad Szenes. Isso explica-se – como veremos no Cp. V – pela economia e coerência da significação na obra, que se estrutura por uma dicotomia personalizada nos dois. Mas os dados biográficos dissociam-se destes, conhecido como era o gosto de Mário António Fernandes de Oliveira pelos brancos de Arpad[45]. É, portanto, perigoso acharmos que determinado episódio pessoal circuncisa um autorretrato. O texto literário constrói para nós a “realidade” social e pessoal onde a personagem autoral e suas ações podem ser lidas. Quando o recebemos, ele está por isso autonomizado face às condições sociais em que foi produzido (Ricoeur, 1991 p. 119). A “realidade social” nele possibilitada é literariamente suficiente, eficaz, e, portanto, pode mesmo contradizer as que o cidadão Mário António F. de Oliveira perfilhara.

 

Um caso típico do género de leituras que pretendo refutar aqui – leituras comuns ainda hoje, ou cujas conclusões ainda são cotadas hoje como válidas – é o da interpretação sócio-política e psicanalítica do significado da morte do pai na obra. Alfredo Margarido, no artigo transcrito no final dos 100 poemas, influenciado pelas propostas negritudinistas, entendeu que o pai do poeta era colono e branco e, portanto, que o seu desaparecimento simbolizava o desaparecimento do branco e do colono. Tal tipo de interpretação acorda-se ao que era feito por críticos ao mesmo tempo influenciados pela negritude e pela psicanálise, de que é exemplo a passagem de Valentim Mudimbé citada por Salvato Trigo: “ela (a literatura africana francófona) queria-se violência e foi-o pelo seu tema constante, o da morte do pai; esse pai que encarnava o colonizador, mas também a potência metropolitana” (Sur la littérature africaine, 1978 p. 4).

 

No entanto, não deparei com nenhuma passagem, nos poemas de M. António, em que o pai seja associado ao colonialismo, nem com nenhuma passagem onde o pai seja dado como “branco”. Fora do texto, a julgar pelos amigos mais antigos com quem pude conversar, os seus pais eram, ambos, mestiços…

 

O que se lê nos versos são passagens, relativamente ao pai, como esta: “a escura face com óculos / Desse teu retrato antigo” («Retrato», poema datado de 1959). A face escura, se pode remeter para uma pele clara queimada pelo sol, mais facilmente evoca em nós a figura do mestiço ou do negro na qual o locutor, mestiço, se projeta: “sou eu que me vejo ao espelho” (mesmo poema). O filho, aqui, posiciona-se na continuidade do pai e não na rutura com o que ele simboliza.

 

A leitura literária de uma realidade circundante, ou anterior, é apenas a construção de uma referência que substitui essa realidade (Berrio, 1989; Ricoeur, 1987 pp. 46-49; Ricoeur, 1991 pp. 185-191), ausente do horizonte visual do leitor pela natureza da circulação escrita e do trabalho poético. E fá-lo com a vantagem de modelar as referências (e permitir a modelação das referências) em função de um “projeto de mundo” em aberto, como dizia Heidegger, ou do “esboço” de sujeito que, da interação leitor-obra (e pressuposta uma leitura que recria), se vai desentranhando (Ricoeur, 1987 p. 49; Ricoeur, 1991 p. 190). É, como vimos, perigoso fecharmo-nos em modelos adotando-os à partida, porque isso, mesmo sem nos apercebermos, impermeabiliza a nossa atenção à especificidade dos versos, como demonstra o deslize de Alfredo Margarido (num texto extenso, que não deixa marcas de precipitação ou de irreflexão).

 

Penso, por consequência, mais correto, metodologicamente, o crítico caracterizar e explicar o funcionamento e a criação da referência (ao sujeito, à sociedade) proposta pelo poema ao seu espanto. Só depois da pesquisa atenta, feita sobre os versos com instrumentos próprios do conhecimento da arte poética, podemos confrontar os resultados com os modelos existentes na mesma área científica – para levantar hipóteses de transferências de modelos entre as várias disciplinas, para verificar as diferenças de estatuto e existência das unidades, que permitirão ou proibirão essa transferência, para fazer propostas englobantes relativamente à área das Ciências Humanas e não só relativas à dos estudos literários.

 

A base da diferença entre as duas posturas críticas aqui citadas (aquela que postulo e a que refuto) aclara-se na relação entre as figurações e motivos de um texto e as perguntas enumeradas pela «inventio» retórica. Podemos vê-la com nitidez – no que diz respeito aos críticos que agora tenho vindo a citar – se nos lembrarmos de que as “representações” sobre que se alicerça o conhecimento, ou o discurso do conhecimento, como o discurso literário, podem sê-lo do «que» o conhecimento ‘sabe’, ou de «como» ele organiza as imagens que o condicionam.

 

A crítica expressivista aposta na aproximação entre os conteúdos representados e a estrutura atribuível a tais conteúdos; a crítica construtivista apostará na aproximação entre os recursos através dos quais cada conteúdo é sugerido e estruturado, e no estudo da relação entre o recurso e o conteúdo. A crítica expressivista recuperada suporá o homem por detrás da semelhança dos conteúdos, e das estruturas dos conteúdos que se repetem da leitura da ‘realidade’ para a do livro; a crítica construtivista, sem deixar naturalmente de conceber essa existência, interessar-se-á pela lógica das relações entre o conteúdo e o recurso poéticos, na perspetiva de quem se preocupa em saber de que modo os recursos postos à disposição do leitor lhe permitem regular e refigurar os significados possíveis.

 

A importação de conceitos não é um mal em si própria, sublinho. O mal está em fazê-la passar pelo critério do que se julga ser o conteúdo das representações ou figurações, ao invés de joeirar ou peneirar a importação conceptual pela maneira como o texto faculta as imagens, substituindo assim a estimulação sensorial (ainda quando represente a incapacidade de representar).

 

Erros como o de Alfredo Margarido é o que permitem ou suscitam posicionamentos como o de Krysinski. Um resumo do recente processo desse tipo de reabilitação do sujeito expressivo (e, portanto, concebido em desacordo com a etimologia citada no texto do autor) é feito no período seguinte: “o seu [do sujeito] estatuto interdiscursivo produz por ricochete efeitos de sentido que desequilibram frequentemente a abordagem de um discurso crítico em benefício de uma psicanálise ou de uma filosofia mas em detrimento da inscrição textual do sujeito numa récita, poema ou romance” (Krysinski, 1989 p. 238).

 

A actualização da legitimidade da leitura projetiva baseada na descrição de uma instância expressiva exerior e anterior ao texto, parecendo fundada numa «interdiscursividade»  (Krysinski, 1989 p. 238), só aparentemente se mantém ao nível do discurso. Como era inevitável, o estatuto «interdiscursivo» – e, por isso, mediador – de que inicialmente fala Krysinski, baseia-se na suposição de uma mesma unidade psíquica, de que se procura o tipo entre as várias ciências humanas, afirmando-se então que o sujeito só dificilmente pode “adquirir um estatuto autónomo «textual» ou «literário»”  (Krysinski, 1989 p. 238). Daí que a «interdiscursividade» remeta para uma reformulação do conceito de sujeito nos estudos literários que leve em conta “a subjetividade, o inconsciente, o eu (“le moi”), a interioridade e a identidade” extra-textuais (Krysinski, 1989 p. 245).

 

Importando modelos da antropologia, Krysinski leva-nos a reconhecer “o sujeito a partir de dados objetivos da sua participação no mundo” (como se definiria esta objetividade?), para depois repensar a literatura sob o modo elementar de experiências humanas do mundo”  (Krysinski, 1989 p. 238) – numa afirmação que lembra outras de críticos neo-realistas e marxistas. Lembra-me, por exemplo, na história da nossa crítica literária, uma de Eugénio Ferreira, para quem a “noção de obra artística, ou literária, deve ser compreendida como um caso particular do comportamento humano em geral. Todo o comportamento humano apresenta-se no seu aspeto imediato, como a expressão de uma relação entre um sujeito – o indivíduo – e um objeto – o mundo natural e social que o envolve” (Ferreira, 1980 p. 25). Com pequeníssimas modificações para adaptá-la à estratégia retórica de Krysinski, percebemos que essa estratégia conduz a este pensamento novamente.

 

A resposta a ambas as escolas é, portanto, a mesma. E podemos completá-la pedindo à Psicologia um esclarecimento suplementar: se podemos conceber a poesia como limitada por regras que são determinadas por uma personalidade na sua relação com o mundo que nela (poesia) se experimenta; ou se, sofrendo os mesmos condicionamentos, os poetas compõem uma assimetria das imagens que temos da experiência do mundo – assimetria pelo facto de levarem os mesmos materiais para um jogo diferente do que constrói a personalidade alternativa que antes estabelecemos. A verificar-se a segunda hipótese, a composição literária não é necessariamente uma “experiência humana do mundo”, embora se circunscreva às limitações que configuram tal experiência – pois ninguém consegue sair de si próprio e continuar a falar ao mesmo tempo.

 

 

O sujeito é, para além disso, concebido por Krysinski, idealisticamente, como “criador de sentido” que projeta sobre o “exterior” – transformado em “estrutura recetáculo de sensações”.

 

As conceções kantianas do sujeito em que assenta o artigo do autor estabelecem-se numa interpretação do processo cognitivo que centra o conhecimento no observador. Ou seja, funda-se no que Leonardo Coimbra chama “o imperialismo do sujeito”. A dicotomia definida a partir de uma redutora perspetiva da posição de Kant (a ordem está no mundo e o homem reflete-a, ou a ordem está no homem e a partir dele organiza o mundo) supera-se, porém, por uma conceção criacionista, em que o observador e o observado se reconstroem continuamente, num movimento de “trânsito e recurso” (Marinho, 1961)[46] que define como essencialmente opaca e co-produtiva a relação de conhecimento.

 

A figura do autor, indefinível enquanto totalidade – e, portanto, não nos permitindo saber até que ponto ele é o mesmo em todas as situações textuais que subscreve[47] - reconstrói-se por uma leitura criativa dos seus fragmentos discursivos e das suas atitudes conhecidas, como observei acima. Essa leitura pressupões desde o início, portanto, que a mesma personalidade pré-existe a qualquer ato verbal que assina. Por consequência, o caráter globalizante que realiza a interpretação projetivista não visa verificar a realidade unívoca do sujeito, mas possibilitá-la imaginando as combinações possíveis entre os vários fragmentos biográficos e discursivos que lhe podem ser atribuídos ou predicados.

 

Trata-se, sem dúvida, de um trabalho criativo e romanesco. Ele subsiste por dois motivos principais: o primeiro é que não é muito comum o texto lírico obrigar o leitor (como no exemplo que vimos de M. António) a não descodificar o seu sistema de significação pela biografia; o segundo é que nem sempre o leitor de tais críticas possui conhecimentos biográficos, antropológicos e sociológicos suficientes para discutir a relação que eles mantêm com a obra, a “experiência do mundo”, ou os “traumas” do sujeito.

 

O “programa narrativo” do crítico falha, no entanto, se se aplicar a realizações poéticas como a de Fernando Pessoa, em que uma primeira pessoa se afirma e pressupõe na medida em que se oculta e faz substituir, ou melhor, na medida em que o texto é, no “romance” do autor que o contextualiza primeiro, o processo alquímico de transformação do «eu» em outro, de abandono de si ou desaparecimento. A esse propósito será útil a leitura da conferência proferida por António Quadros em 1983, em Nashville (Univ. Vanderbilt) sobre «Heteronímia e Alquimia» (Quadros, 1988 pp. 277-307), a carta a Casais Monteiro em que Pessoa fala nisso e os comentários de Y. K. Centeno em 5 aproximações (Centeno, 1976 pp. 83-85). Ao poeta, como ao profeta, é-lhe atribuída a qualidade de “guia” na medida em que ele se transcende, vai para além de si próprio, “como se não existisse e, por isso, pudesse ser outro ou perceber o inominável. É esse o sentido do ‘apagamento’ do sujeito ‘referencial’ nos poemas em que, na Mensagem, ele se pretende insinuar (v., por ex., “Screvo meu livro à beira-mágoa…”).

 

 

Outro aspeto a considerar no capítulo escrito por Krysinski é o da influência da Psicanálise. Não sendo a Psicologia uma das disciplinas dos estudos literários, convém perfilharmos no seu seio pesquisas e teorias que sejam reconhecidas como sólidas pela própria comunidade científica mais diretamente com ela relacionada. Ainda que depois façamos de tais investigações um uso próprio – o que melhor se adapte ao nosso objeto de estudo.

 

Ora a Psicanálise é a mais polémica das escolas da Psicologia – e a polémica central gira mesmo em torno do método de pesquisa, daquilo que nos garante não estarmos apenas perante intuições ou fantasias. Fundada na inevitabilidade do sujeito univocamente clínico, ela assinala-o em todos os textos analisados como seus, reabilitando-o como totalidade orgânica no quadro complexo (mas não-verificável) possibilitado pela substantivada noção de inconsciente (Krysinski, 1989 p. 241). Funciona assim como uma espécie de tampa que fecha a ausência de discussão sobre o fundamento de julgarmos que todos os textos assinados por um autor são reflexo da sua personalidade e do jogo do inconsciente.

 

Para contrapormos à psicanálise outra escolha temos, porém, que transferir de novo a nossa discussão para o campo não-poético e não estritamente linguístico ou textual, desmontando o ilícito uso de “esquemas estereotipados” que determinam a significação (im)própria de uma “existência individual”, como diz Gusdorf (Gusdorf, 1951 p. 393).

 

É certo que, entre Freud e Krysinski, há uma distância mental significativa, marcada pelas diversas apropriações da psicanálise (quer por outras correntes psicológicas que procuraram cientificamente estudar a pertinência das intuições freudianas, quer pela Antropologia, quer pelos desenvolvimentos junguiano e lacaniano). Mas o tipo de apropriação perfilhado é, precisamente, o que se filia na escola lacaniana, ou seja, na que menor fundamento científico procurou.

 

Quanto às teses de Freud, é conhecida em Psicologia (Bühler, 1978 pp. 121-123) a reserva de várias escolas ao procedimento que consiste em extrair o normal do patológico – e, por vezes, o patológico do normal. António Damásio (que admira as “intuições” freudianas) alarga-a para o ensino da Medicina: “[…] é espantoso ver que, por vezes, os estudantes começam a aprender psicopatologia sem nunca trem aprendido psicologia normal” (Damásio, 1995 p. 260). A psicanálise cai, por tal método, na “tentativa de deduzir as noções superiores das inferiores, confundindo-lhes o lugar dialético próprio” (Coimbra, 1958 p. 71). Essa reserva também se articula com a crítica de Gusdorf quando lembra (levando em conta a neurobiologia e o pensamento de Piaget) a anacrónica pressuposição de uma memória na criança que seria idêntica à do homem adulto (Gusdorf, 1951 pp. 375-415; 490-492).

 

O procedimento é arrastada para a própria conceção de literatura em Freud, na medida em que ele associa o ato poético à fantasia, ao sonho, dominados pela função compensatória e pelo «desvio mental». Por isso, coloca expressivisticamente a criação poética entre o consciente e o inconsciente, tal como entre a normalidade e a patologia, possibilitando – como atividade compensadora – uma reabilitação do homem afetado pelos «desvios» e recalcamentos da sua realidade profunda (Muzzioli, 1994 p. 146 ss) – fenómenos de que as obras seriam sinal, quer no que diz respeito aos autores, quer no concernente aos leitores que, na tessitura semântica da interpretação dos artifícios, projetariam as suas frustrações e tentariam, quiçá, compensá-las ou sublimá-las. A análise da tragédia Rei Édipo como expressão do ódio ao pai e da atração pela mãe (que daria resultados desastrosos face à obra de M. António), comparada com os comentários à peça feitos por Aristóteles, exemplifica a distância entre a leitura freudiana – generalizante e extrapoladora – e a leitura poética, centrada no estudo dos recursos próprios da arte e na sua aplicação concreta.

 

Por definição, uma patologia surge quando, no jogo da personalidade, se substituem regras básicas, o que desde logo inscreve o desenvolvimento e o funcionamento psicológicos do doente numa série diferente, num encadeamento de raciocínios paralelo ao do homem normal (aquele cujo comportamento se acorda às normas que o descrevem e a algumas das que o prescrevem). A patologia não pode, por isso, servir de tábua de aferição e descrição da normalidade, pois ela descreve-se diacriticamente face à norma.

 

 A contra-argumentação possível, em defesa da leitura ‘patológica’, passa pela recusa do conceito de normalidade. Porém, a impugnação que certas obras psicanalíticas promovem do conceito de normal parece-nos improdutiva, porque nos conduziria à abolição de estudos baseados em observações clínicas (se toda a humanidade é cliente de Freud, como concluiríamos lendo O alienista, Freud não é um médico, porque, não se podendo definir a normalidade, não podemos distinguir a saúde da doença – portanto a obra de Freud é uma cacofonia obrigatoriamente patológica e inútil).

 

Para além do que podíamos chamar o ‘desvio patológico’ há outro, que também se prende com a metodologia seguida, e que nada nos afiança de seguro para o que a psicanálise conclui – para lá de algumas intuições freudianas, que têm a garantia de qualquer intuição.

 

Na teoria psicanalítica, os traumas de infância desempenham um papel primordial. Isso acorda-se às conclusões da Psicologia do Desenvolvimento e de outros ramos da Psicologia. Segundo elas, a infância é um período determinante para a formação das pessoas – até aí, há concordância com a psicanálise. Porém, como reconhece a Antropologia Cultural, a transição de valores da adolescência para a idade adulta, marcada por rituais e cerimónias como a do casamento, provoca também problemas (é o caso da «frigidez marital») cuja origem a psicanálise iria rebuscadamente localizar num período mais recuado (Titiev, 1979 pp. 285-286).

 

Não reside só na sobrevalorização da infância tal erro da psicanálise (e, por vezes, de outros psicólogos). O problema está igualmente em que os psicanalistas procuram definir uma espécie de arqueologia da infância a partir dos comportamentos da maturidade, sem antes terem estudado com pormenor e sistematicamente, a própria infância. Por esse motivo imiscuem depois, na descrição das primeiras fases da vida, conceitos que só têm sentido para fases posteriores (a sexualidade, por exemplo, como complexo bio-cultural, não emerge tão cedo na criança quanto o freudismo imagina). Recordando Mischa Titiev (não propriamente um crítico da psicanálise, mas alguém que lhe descobre falhas mesmo quando não a nomeia), os “estudiosos da personalidade e da cultura” caem muitas vezes no erro de “partir de estruturas de personalidades completa ou quase completamente formadas” para “deduzir a espécie de educação infantil que um determinado indivíduo teria lido” (Titiev, 1979 p. 284).

 

Se, porém, apesar dos ‘desvios’, Freud fez uma análise clínica da literatura, reconhecendo que tal análise era marginal à Estética, os seus discípulos, ao tomarem os modelos da psicanálise para descreverem as personagens – incluindo a personagem do autor – parecem convencidos de estar ainda no cerne da literariedade. Mais ainda após a identificação, promovida por Lacan, do inconsciente com a linguagem. Leia-se, a propósito, o que diz Paul Eakin na antologia Anthropos: “a famosa afirmação de Lacan «o inconsciente está estruturado como uma linguagem» preencheria completamente o vazio entre a linguagem e a personalidade” (AAVV, 1991 p. 87). Trata-se de afirmações (a de Lacan e a de Eakin) sem qualquer fundamento num estudo que faça acompanhar as teses da Psicologia pela pesquisa neurobiológica, porque não há vazio a preencher. O ‘vazio’ parece resultar aí, como de hábito, de uma sucessão de metáforas equívocas libertas do fio de sentido original. No entanto essa identificação (do inconsciente, da personalidade e da linguagem) torna-se fundamental para o estudo da literatura na búlgara Júlia Kristeva, bem como para o estudo da linguagem em geral, interpretada como tensão entre pulsões e recalcamentos diversos.

 

Outro erro, a meu ver comum entre psicanalistas e que também sustenta nos seus textos posições projetivas, é o da substantivação da palavra inconsciente. O termo parece correto (e acordado à neurobiologia) quando – como em Jung – adjetiva elementos que não estão, por estímulo fraco ou motivação deficiente, a ser visionados pela atividade mental, mas estão guardados na memória, ora operando a um nível mínimo, subliminar, de atividade – portanto, sem nos apercebermos disso – ora simplesmente armazenados.

 

Há, nesse sentido, recordações que são inconscientes na medida em que não estão a ser utilizadas ou visionadas pela atividade consciente, na medida em que não são suficientemente fortes (tonificadas) nem solicitadas para isso (porque, por exemplo, não precisamos delas para atingir o objetivo que nos faz pensar nesse momento). O que, a dado momento, se encontra num estado inconsciente pode, a qualquer momento e em função do contexto e das necessidades de resposta, tornar-se consciente. Mas os psicanalistas, em geral, falam de uma entidade, personalidade, organismo, dando um salto gramatical e lógico insustentável. A inexistência de uma estrutura do inconsciente, a impossibilidade da sua substantivação, cerceiam a possibilidade de se ler o texto como sinal articulatório da relação dela com o mundo.

 

Jung escapa, várias vezes, à substantivação. Principalmente quando afirma que a psicanálise estuda, não o inconsciente, mas a relação da atividade consciente com os elementos inconscientes; ou quando apela à teoria do «tónus» para explicar o trânsito desses elementos do esquecimento para a recordação. Mas também aceita a substantivação do termo, a qual permite substancializar a noção de inconsciente por um simples deslize gramatical.

 

Contrariamente a Krysinski, penso que o maior interesse da psicanálise está no facto de Freud ler narrativa e simbolicamente os sonhos, percorrendo o caminho inverso ao dos críticos literários que o seguem. Ou seja, ele transcreve processos eventualmente ocorridos durante a vida de alguém e, depois, analisa-os como se estivéssemos a descodificar a simbologia de um romance. Portanto, funcionaliza uma compreensão literária da vida psíquica. E, como a qualquer estudioso de uma obra de arte, isso não o leva a conclusões unívocas de caráter científico, apenas conduz a uma interpretação entre várias possíveis, segundo as regras que estabelecemos ao fazer e ler um texto. E note-se que Freud o faz baseeado num percurso que recompõe com tino de artista.

 

 

O que digo da psicanálise exige uma ressalva, inevitável – e parcialmente feita – para Jung. O recurso de muitos críticos ao conhecido simbologista, as diferenças que a sua teorização sublinhou face à escola freudiana, fazem-me considerar aqui a oportunidade da recorrente utilização de conceitos como o de «inconsciente coletivo».

 

Entendo que o uso desse conceito nos traz vantagens em face, por exemplo, das opções lacanianas de Krysinski. A hipótese de existirem “imagens oníricas universais” – ou seja, recorrentes em todas as civilizações conhecidas – possibilita um trabalho crítico centrado no estilo e no enredo simbólico, bem como abre perspetivas interessantes no campo da literatura comparada.

 

O finalismo anti-determinista e anti-causalista da psicanálise junguiana, que “vê nas imagens oníricas o reflexo de situações psicológicas infinitamente variadas” (Jung, 1975 p. 253), impede a fácil generalização que alguns discípulos de Freud (e de Jung) promoveram – e que outros transportaram tipologicamente para a crítica literária. A propósito do reducionismo de Freud (eu tinha escrito “exagerado”, mas todo o reducionismo é um exagero) – e, principalmente, dos seus discípulos – já Jung citava o exemplo caricato da “escola freudiana ortodoxa”, que chegou a ver “em quase todos os objetos compridos, que aparecem nos sonhos, símbolos fálicos, e em todos os objetos redondos ou ocos, símbolos femininos” (Jung, 1975 p. 253).

 

O reconhecimento da inexistência de “símbolos de significação fixa” leva a considerar “as imagens oníricas importantes em si mesmas” (Jung, 1975 p. 253), bloqueando, na adaptação ao estudo literário da psicanálise junguiana, uma atitude “cousista” no sentido que à palavra dá Leonardo Coimbra em O criacionismo.

 

Uma segunda diferença, entre a psicologia junguiana e a freudiana, que permite afastar algumas das críticas que lhes endereçam outras escolas de Psicologia, prende-se com a constituição do “modelo clínico”.

 

Freud e os seus seguidores adotam recorrentemente casos patológicos como modelos descritivos da relação entre elementos conscientes e inconscientes. Jung tem o cuidado de, repetidas vezes, não ver aquilo que só esporadicamente vem à consciência como fruto exclusivo de um recalcamento, pois fala em “ideias, juízos, conceções, diretrizes, tendências, etc., que, recalcadas ou ignoradas, se encontravam no estado de inconsciência” (Jung, 1975 p. 257). A perspetiva dúplice (“recalcadas ou ignoradas”) marca bem as hipóteses clínica e normal. Ela esclarecer-se-á depois no recurso à teoria do «tónus», conhecida pela neurobiologia, quando o autor nos falar em “elementos que, no estado de vigília, não alcançaram o limiar, por causa dos recalques, ou simplesmente por não possuírem a necessária energia para conseguirem chegar por si mesmos até ao consciente (Jung, 1975 p. 267). Na página seguinte fala de novo em “uma conjunção de todas essas sensações, de todos esses sentimentos, e de todos esses pensamentos que, em virtude do seu fraco relevo, escaparam à consciência” (Jung, 1975 p. 268) – já não referindo, portanto, o recalque. O alargamento teórico da perspetiva incluirá também a adoção do conceito de autorregulação do “organismo psíquico” (expressão junguiana: (Jung, 1975 p. 268)), conceito que não se pode afetar à noção de patologia mas, pelo contrário, à de saúde e normalidade, como se vê pela teorização de Piaget.

 

Não erigindo uma descrição única e patologizante das “imagens oníricas”, admitindo processos saudáveis de “esquecimento” que seriam também explicativos, Jung acorda-se ainda mais à ideia de significação dinâmica das imagens que antes expusera e liberta o crítico, por ele influenciado, da redução a modelos de desvio.

 

Não é de esquecer, entretanto, que há também desvantagens na adoção da psicanálise junguiana, delas sendo a principal a que nos inclina a uma pesquisa projetiva da obra literária.

 

A utilização do termo «inconsciente coletivo», por exemplo, parece-me tão perigosa quanto sugestiva. Mesmo na exposição de Jung, a palavra «inconsciente» é usada ora como adjetivo ora como substantivo (v. atrás). Enquanto qualifica “elementos”, ela supõe a existência de um conjunto de registos de que só esporadicamente possuímos consciência, e que só esporadicamente funcionalizamos numa atividade. Em tal aceção não há inconsciente, mas materiais ou relações que já concebemos antes (em consciência) e de que não nos lembramos em dado momento (que estão inconscientes). Porém, a substantivação de «inconsciente» pressupõe uma entidade (e não um estado) que funciona autonomamente (o que não é desmentido por Jung). Pressupõe, no mínimo, uma estrutura relacional autónoma, como se os elementos de que não estamos conscientes andassem juntos a tecer enredos e novelas, relacionando-se entre eles em conspirações anti-conscientes e gerando, portanto, um corpo próprio com perfil e gesto. Adjetivando-se de «coletiva», a substantivação do inconsciente situa-se a um nível, a meu ver, ainda menos verosímil e mais facilmente legitimador do projetivismo. Quando situamos a ideia de inconsciente a esse nível e em seguida a adotamos para construir uma “psicologia da criação”, estamos a isolar o termo dos contextos particulares que o fundam e que o legitimam em Psicologia. Uma vez descontextualizado e substantivado, o «inconsciente coletivo» presta-se a qualquer interpretação ou metaforização projetiva sem que tenhamos onde a pôr à prova.

 

Podemos ver a amplitude e o interesse da aplicação do conceito em dois autores portugueses: António Ramos Rosa e Yvette Kace Centeno. Eles têm, sobre outros, a vantagem da originalidade que os afasta de qualquer espécie de ortodoxia.

 

Quanto ao primeiro, é na conceção do processo poético que se lhe revela a visão do ato criativo condicionado pelas manifestações de um inconsciente coletivo. Ainda quando não seja visto como causa, mas “antes o inverso”, garante de uma ressonância (Rosa, 1962 pp. 46-47)[48], a garantia dada por ele terá de se conectar à imersão do criador no mesmo substrato que é o do leitor.

 

A ideia de poesia exposta por A. Ramos Rosa está centrada igualmente na noção autorrecursiva de “experiência de si mesma” (Rosa, 1962 p. 47) e assenta, por isso, na consciência da artificialidade do ato poético.

 

Ramos Rosa considera “invalidada qualquer tentativa de explicação da obra pela vida do autor”. A adjetivação alarga-se aos discursos instituídos sobre as coisas, e à própria noção de “dado” ou coisa. No entanto, a assumida neutralização da leitura biográfica, ou particularista, não o impede de considerar que o “sujeito poético” é “o próprio motor da afirmação poética”, dada a sua “atividade transformadora”, que o torna em “mais do que uma resultante de um processo causal objetivo” (Rosa, 1962 pp. 16; v. 29, 32).

 

O expressivismo emerge subtilmente no seu raciocínio pela absorção da imagem da projeção e recriação de energias cósmicas, de que o inconsciente guardaria só sinais. Tal inconsciente, porém, tornava-se consciente, e o seu encontro pressupunha uma vontade própria: “só no âmago do seu [do poeta] ser se lhe podem revelar os valores plenamente capazes de o integrarem no cosmos; só entregando-se a um duplo «movimento de transcendência» […] será ele capaz de estabelecer de novo o circuito homem-mundo num plano criador. // Não há, portanto, poesia sem a recuperação do ser original do homem. Isto equivale a dizer que só quando o homem encontra a natureza em si, numa relação de reciprocidade, ele se descobre poeta” (Rosa, 1962 p. 52).

 

Ligada, assim, a génese do poema a um nível infinitamente superior de realidade e beleza, a destrinça entre pessoa civil e personalidade poética (“a vida do poeta, enquanto poeta, não é sequer a sua «vida interior»”, “a sua personalidade poética não se confunde com a sua biografia”, “cada poema é um verdadeiro ato da sua vida e da personalidade poética, a qual é a unidade de todos os seus poemas” (Rosa, 1962 pp. 48-49)), ao invés de o conduzir a um construtivismo radical, faz com que Ramos Rosa nos proponha a “unidade entre a poesia e a vida” (“a total comunhão de si com o mundo” (Rosa, 1979 p. 19), frase que me lembra Senghor), estabelecida pela arte “no momento em que o poeta se eleva à consciência da sua condição total”, coonfundindo-se com o poema, numa fusão de todas as categorias em jogo – incluindo as cósmicas. Ou seja, o poeta não exprime a biografia de um sujeito real, mas não deixa de, transcendendo-se, exprimir aquilo tudo que por si passa, possibilitando a “osmose entre o leitor e o texto, a qual atesta […] a presença de um informulável […] só apreensível pela específica experiência literária” (Rosa, 1979 p. 38). Diz Rosa: “assim a poesia se religa às origens do ser, onde se condensa a energia primitiva que o poeta liberta” (Rosa, 1962 p. 51), dessa forma acedendo, enquanto homem e em nome dos homens, “a essa zona misteriosa onde se elabora a fecunda simbiose consciência-ser e onde ele se recupera na sua unidade. Só a poesia […] lhe pode facultar esta unificação” (Rosa, 1962 p. 52; Rosa, 1979 p. 19).

 

O projetivismo do autor assemelha-se estruturalmente, por tal via, à conceção espiritualista de Eduardo de Soveral e de Vicente Ferreira da Silva, segunda a qual a palavra poética é a concreção do Espírito no mundo, que se consegue por uma espécie de “inspiração”, no sentido etimológico. Em ambos os casos, a substituição da biografia por um postulado metafísico que a transcende – sem se conjuntar este à consciência da construção lúcida, ou vigilante, das palavras – aumenta (em vez de acautelar) a intensidade projetiva da “psicologia da criação” teorizada por aqueles autores. O conceito de «inconsciente coletivo» é que segura ou modera, afinal, a abrangência para que remete: tudo acontece apenas no interior de tal órgão.

 

Próxima radicalmente da visão de António Ramos Rosa, mas demonstrando com maior clareza como é inevitável que ela assente no projetivismo, fica a proposta de Yvette Kace Centeno (Centeno, 1987; Centeno, 1976). Ela sustenta uma leitura pragmática vulgar, corrente (“o texto literário resulta de uma vontade de comunicação” (Centeno, 1987 p. 55). A vincada referência à intenção de comunicar é comum a António Ramos Rosa e compreensível se pensarmos no divórcio entre autor e leitor explicitamente invocado pelo poeta na sua reflexão. Esta “vontade de comunicação” deve ler-se articulada à noção junguiana de «inconsciente coletivo», que aumentaria a literariedade dos textos por aumentar a sua significação. É no conceito de «ego universal», possibilitado pela noção de raiz junguiana, que se vai garantir a amplitude da comunicação (comunhão) entre autor e leitor. Daí a afirmação segundo a qual o poder significativo do poema (e, portanto, a literariedade) aumenta na proporção da intensidade de dependência do texto face ao inconsciente coletivo (por oposição a idêntica dependência face ao individual). O poema assim composto é “mais atuante, mais significativo se torna para o leitor, dirigindo-se, não à sua consciência, mas ao seu inconsciente, que é idêntico àquele que se exprime no texto. Autor, leitor, ambos se encontram naquela matéria arquetípica, primordial, comum, ali formalizada no texto, ali tornada de repente explícita, acessível” (Centeno, 1987 p. 57)). Por isso, a linguagem poética universal que Rimbaud (outra referência comum a Ramos Rosa e por motivo idêntico) proclama é uma linguagem «da alma para a alma» (Centeno, 1987 p. 62).

 

Mais uma vez observe-se a presença do tópico citado em Staiger (o da comunhão das almas), agora não numa idêntica solidão, mas num idêntico inconsciente. Em todo este discurso se ignora (ou não se considera pertinente) a necessária existência e multiplicidade dos códigos através dos quais o processo literário se efetiva. Vendo a obra como “reflexo do homem, e o homem, centro do universo […] reflexo de Deus”, condicionada à pesquisa alquímica da marca, da “assinatura” divina sobre a humana e da humana (com a divina) sobre as obras, a autora reformula com originalidade algumas leituras literárias, mas – para o estudo que nos atém aqui – coloca-se numa posição metodológica equiparável à de Krysinski, representando na teorização portuguesa o recurso do expressivismo à teoria psicanalítica de Jung.

 

O pensador e publicista António Quadros podia ser contado como outro representante deste recurso a Jung. Quadros aproveita igualmente a lição da antropologia do imaginário de Durand, também ela fortemente devedora da noção de «inconsciente coletivo» e da psicanálise junguiana. Mas não é sobre tal assunto que me debruço agora. O que me interessa é que o projetivismo, nestes autores, alarga-se do individual para o coletivo, com o que se torna mais pertinente mas não menos projetivo.

 

A transição da expressão individual para a de um coletivo abre a ideia de autor, ou perturba a noção – que na Europa se tornou clássica – de autor, delindo-a na de um cosmos psíquico abrangente. De igual forma, a hipótese de uma “marca divina” ou “cósmica” sobre o coletivo ou o individual, pressuposta por Yvette Centeno, põe em causa a “autoridade” de quem assina o texto. Mas, am ambos os casos e nos autores estudados (incluindo o acima citado Eduardo de Soveral), o derruir das fronteiras da “autoridade” não se faz contra o expressivismo, antes alargando-o, tornando o texto expressão de uma entidade na qual está emersa a pessoa sem que ela saiba disso.

 

 

Por todos os motivos que citei me parece inconveniente para um crítico literário a adoção das teorias psicanalíticas como tábuas de leitura da composição poética. Resumindo a posição, essa importação de conceitos pode falhar por não termos pelo texto escrito acesso garantido ao sujeito real, ou porque tais conceitos podem ser inadequados para descrever as atividades psíquicas não patológicas do homem adulto, ou porque, de qualquer das formas, nos arrastariam para fora do exercício crítico.

 

 

Os limites autorais

 

Chegou agora a altura de pedir à Psicologia uma descrição cabal de quais as marcas reais que a autoria traz obrigatoriamente ao poema. A legitimação psicológica do expressivismo, como vimos, visa implicar uma projeção global, e um movimento irreversível unidirecional (da personalidade para a obra), onde podemos apenas detetar a sombra de condicionamentos idênticos às limitações do sistema operativo de um computador.

 

Explico-me: é possível pensar que, se algo se projeta – na realidade extratextual – do sujeito para a obra, não é propriamente a atividade subjetiva característica do locutor “real”, nem são as recorrências observáveis do seu «eu» sobre as quais se constrói a noção de personalidade (quer “implícita” quer “cientificamente” (Leyens, 1985)): são as limitações que as determinam ou condicionam. Quer dizer: o que limita o funcionamento do organismo ao nível cerebral é que limitará, quer a construção da personalidade, quer a composição artificial de personalidades literárias, quer as obras.

 

Já acima fixei, por esboço, uma resposta ao problema. Faço-o agora com mais pormenor e fundamento. Como penso mostrar nos próximos parágrafos, é possível conceber uma limitação comum à ideologia, à personalidade, às patologias do sujeito e às obras de arte por ele produzidas – se aceitarmos que é ele quem as produz e não algo, ou alguém, que, alagando a margem das suas mãos, comunica ao mundo. Podíamos entendê-la como circunscrição simultânea, que não origina a definição dos conteúdos ou significados, apenas limita a sua variedade em número e as possibilidades básicas de configuração.

 

Nas investigações, filosóficas e antropológicas, acerca das relações entre a linguagem e o pensamento, a questão foi também colocada em termos equiparáveis àqueles com que pretendo operar e que, por isso, aproveito para a discussão presente.

 

No resumo que, do posicionamento de Hoijer, faz Adam Schaff (Schaff, 1974 p. 127), postula-se por exemplo que “as diferentes línguas não determinam modos diferentes de perceção da realidade: não fazem mais do que atribuir uma orientação diferente aos atos de perceção dos homens, que empregam estas línguas”. As línguas podem funcionar, então, como condicionantes do número de “estratégias de raciocínio”  (Leach, 1989 p. 20) que compõem as obras. As possibilidades de perceção dos mecanismos biológicos disponíveis para esse efeito não se alteram de um ser humano para outro em função da variável linguística; o desenvolvimento dessa perceção em uma ou outra direção é que pode variar, delimitando assim o número de configurações que uma comunidade fornece aos seus membros (os quais podem abrir novas perspetivas a partir das que possuem por aprendizagem).

 

Citando Hoijer, é “como se a cultura no seu conjunto (incluindo a língua) escolhesse na paisagem certos traços, mais importantes que outros, e desse assim à paisagem uma organização ou estrutura particular ao grupo” (Schaff, 1974 p. 128). Similarmente, é possível conceber que os condicionamentos a que dado autor está sujeito (biológicos e derivados da comunidade em que se insere) limitam a sua atenção a aspetos determinados. É essa limitação o que se reflete nas obras – podendo elas depois seguir um rumo cujas interpretações diferem das da sua visão do mundo, ou do sentido que ele imprimirá à sua vida pública. Mas essa limitação exerce-se também nas atividades que lhe constroem uma personalidade, não são um reflexo do lado “sério” da vida.

 

As semelhanças ou pontos de contacto entre momentos ou discursos não líricos do sujeito empírico e a sua obra lírica (ou entre uma e outra obras suas) não nos parece, portanto, que impliquem uma leitura expressivista e unívoca do sujeito textual. Elas derivam de limitações comuns – excluindo, claro, as que derivam da comodidade, do sentido de economia do esforço, que leva um sujeito a inspirar-se em si próprio para dispensar, no trabalho criativo, a pesquisa de caracteres.

 

Pela relação existente “entre familiaridade e conhecimento” (Oliveira, 1990 p. 157), e pelas vantagens motivacionais que tal associação poderá trazer (Osgood, 1973 pp. 762-764; Damásio, 1995), mesmo à aprendizagem poética, o autor empírico privilegia quase sempre os motivos literários que melhor conhece, ou com os quais convive, bem como os artifícios que imita, recria ou repete, na medida das suas limitações enquanto pessoa inserida numa comunidade social e num grupo literário. Complementarmente, como homem, ele só poderá afirmar “os valores que penetram em seu campo” de figuração (Romero, 1944 p. 35).

 

As experiências realizadas pela psicologia experimental através de testes de amplitude percetiva e de memória imediata (“a curto prazo”), permitem confirmar que a familiaridade com as referências a recordar e a facilidade de apreensão que elas estruturam determinam a magnitude da memória de cada pessoa (Pinto, 1992 p. 82 ss). Numa sequência de números, por exemplo (organizada silabicamente, de forma a alternar os números designados com uma e com duas sílabas), a quantidade de unidades recordadas será maior do que se a sequência for de consoantes ou palavras de duas e cinco sílabas. A operação de agrupamento das unidades (facilitada, sem dúvida, pelas possibilidades de articulação que elas ofereçam e pela constância de uso dos materiais) potencia fortemente a memória: os que apresentam resultados mais baixos melhoram-nos significativamente quando treinados no agrupamento das unidades; os que apresentavam resultados mais altos não registam progressão depois de serem treinados em técnicas de agrupamento.

 

A capacidade percetiva condiciona, portanto, a memória na sua amplitude por causa do número e da natureza dos elementos que lhe permite recordar. A amplitude da memória condiciona por sua vez a capacidade percetiva e cognitiva dos adultos – o que explica os melhores resultados por eles obtidos em testes de memória com materiais que lhes são familiares (ou seja, que estão devidamente memorizados, quer dizer: que são “armazenados” e “reutilizados” – após o seu “processamento e em função dele – por força da necessidade constante de os usar).

 

A conjugação do que podíamos nomear como “aptidões percetivas básicas” (e que são “instrumentos do conhecimento” na terminologia de Piaget) com a familiaridade do sujeito face aos materiais de que dispõe, limita portanto humanamente a sua capacidade de repetir ou inovar, o que certamente se aplica também no que diz respeito às técnicas e aos materiais de composição mais usados por um artista.

 

O conhecimento biográfico do sujeito empírico pode, nessa perspetiva, contribuir para indiciar a sua familiaridade com certos motivos ou regras – o que tem poucas consequências na leitura literária, comparativamente a um estudo centrado no trabalho poético, que não deixa também de notar os motivos mais frequentes e de, a partir da sua coesão, buscar nos contextos familiaridades.

 

Para além de ter consequências insignificantes, a indexação dos recursos e motivos familiares pelo critério biográfico faz correntemente cair os críticos no erro de projetarem sobre o tratamento do motivo, ou da figura, na obra, o que pensam que ele terá sido para a vida e a psicologia do autor. Dessa forma, pensam certos críticos completar, ou interpretar, aparentes lacunas em descrições artísticas com a contraposição de modelos co-textuais que julgam próximos do cronótopo social da comunidade onde se inseria o autor; ou da “realidade” intersubjetiva que da pesquisa “interdiscursiva” sobre ele efetuada resultaria; ou, ainda, com o modelo do “sujeito-tipo” a que melhor se conformaria a eventual personalidade de um autor. Ora, tal atitude exige uma aptidão muito mais vasta (já não é só necessário saber descodificar um artefacto verbal, é também preciso dominar a história de uma dada época, a sua leitura sociológica, a psicologia individual e social, etc). uma aptidão incomportável e desnecessária se quisermos desempenhar-nos eficientemente da tarefa mais simples, e mais hábil: a de ver como se organiza e funciona, possivelmente, um poema ou livro de poemas.

 

De entre os motivos que lhe são familiares, um determinado escritor poderá reativar ou bloquear a memória dos acontecimentos, seres e coisas conforme o nível das reações químicas e elétricas que eles lhe provocaram – como estuda a neurobiologia e reconhece a psicologia experimental. A tradução da afetividade em tónus químico e elétrico permite igualmente explicar a adoção ou rejeição dos artifícios que geraram respostas (positivas ou negativas) por parte de outros membros dos grupos onde se inclui imaginariamente o sujeito empírico, ou de que é parte efetiva.

 

Conectando-se com o número reduzido de conhecimentos ativados pela sociedade em que vive, o tónus da afetividade limita-lhe o acesso a outras informações e motivos que podiam alargar uma prática textual que o identifica na medida mesma das limitações a que está sujeito.

 

Os condicionamentos autorais e sociais limitam, assim, as regras de funcionamento a que um poeta obedece enquanto artesão de referências verbalizadas – mas, simultaneamente, condicionarão também aquelas regras e hábitos de raciocínio através das quais comporá, durante a vida, uma ideia do mundo ou uma visão de si, colocando-se como anterioridade face à criação e face ao que se pensava que um autor projetasse (a sua mundivisão). Tal conclusão é reforçada pela hipótese desenvolvida por António Damásio, segundo a qual a formação de imagens antecede o pensamento e a linguagem.

 

O conjunto de imagens que podemos formar (as “representações disposicionais” ao nosso alcance) constitui “o nosso depósito integral de conhecimento”, contendo “registos sobre o conhecimento imagístico que podemos evocar e que é utilizado para o movimento, o raciocínio, a planificação e a criatividade” (Damásio, 1995 p. 121). O “depósito” é comum, e por isso é que há semelhanças entre o discurso criativo e o discurso planificador ou lógico; mas cada um destes discursos segue, naturalmente, o seu caminho, indo buscar ao “depósito” comum aquilo de que necessita em função do que está a construir e não por se ter um dia organizado de determinada forma num nível diferente.

 

É, por isso, possível encarar, em Psicologia, a hipótese da inexistência de um relacionamento expressivo, de causalidade e de anterioridade irreversível, entre uma visão do mundo – ou de si – criada por um sujeito transcendental e as obras de arte, que deixaríamos de ver, então, consequentes a ela. A leitura das duas realidades, ou personalidades (a artística e a “real”) cresce ao mesmo tempo e por vias paralelas ou elípticas, possuindo embora limitações comuns (as do “depósito” de imagens e de redes de imagens).

 

É, pois, legítimo afirmar que se deva a limites comuns, a que fica dessa maneira circunscrita a focalização do autor, a existência de pontos de contacto entre outros discursos, ou momentos, do sujeito ‘real’ e os seus poemas (líricos, dramáticos ou narrativos). Não porque o sujeito, global ou intencionalmente, projete uma das realidades limitadas (a visão do mundo, ou de si próprio) sobre outra (a composição literária), nem porque deixe que algo por ele o faça.

 

O escritor, portanto, não falará das circunstâncias da sua vida por elas o traumatizarem, ou marcarem decisivamente, nem pela forma como as sentiu, ou pensou, na ‘vida real’, mas quando não dispõe de outras que lhe permitam melhor (ou mais facilmente) imaginar uma dada situação que constitui o seu motivo literário. A par disso, e por um processo similar, atualiza a regra cujo conhecimento guarda e jo limite cuja existência sofre.

 

Os seus condicionamentos, os limites que traçam as fronteiras do seu conhecimento, os mecanismos básicos da perceção (por exemplo, o procedimento por configuração e a apreensão por totalidades), esboçam portanto, mais profundamente, um poema do que as que ele próprio julga, ou afirma, terem sido as suas intenções, ou as suas emoções, numa representação de superfície, ou mesmo numa auto-interpretação profunda (Martins, 1993 pp. 140-141), ou simplesmente na confusão entre o que julga ser e o que julga que a sua obra é. Mas tais condicionamentos só podem ser estudados pelos textos produzidos, pelo que temos de reconhecer que fomos nós, leitores, que, a partir dos textos, os figurámos.

 

A uma conclusão equivalente chegou também Michel Beaujour, ao estudar a relação entre a mnemotécnica retórica, a levantada por Luria e as imagens estruturantes do «auto-retrato» (Beaujor, 1980 pp. 97ss, 104-105). Ele observou como as técnicas de memorização podem marcar uma estrutura poética textualizada, havendo similaridade entre as imagens utilizadas pela técnica de memorização e as figuras construídas pela técnica de composição. Não deixa, porém, de notar que a elaboração artística “amplifica”, “interpreta” e “religa a outras lembranças” as imagens de que a memória se socorre, “para se integrar (essa elaboração artística) na estrutura típica do autorretrato”. Por isso termina dizendo que “o autorretrato não é uma memória, nem mesmo uma mnemotécnica (se bem que dela apresente certos traços na sua estrutura e no detalhe da sua invenção), mas bem mais um livro, o presente de uma escrita. Ele é a elaboração da estrutura local ou fragmentária, e da enciclopédia que totaliza esta: o sistema de remetências, a memória interna do texto, sua coerência, tanto quanto as suas falhas, permitem constituir (e sobretudo desfazer) o simulacro de um eu”  (Beaujor, 1980 p. 105).

 

 

 

Retorno metodológico

 

O “simulacro do eu” – mesmo condicionado pelas regras básicas que delineiam também o funcionamento desse “eu” – alerta-nos para o facto de estarmos a observar um artifício e não uma pessoa. Por esta especial condição de leitores, que “desfazem” o símile poético, é que é preciso termos o cuidade de manter a destrinça entre “crítica de poesia e psicologia do autor”, como diziam Wimsatt e Beardsley (Wimsatt, et al., 1983 p. 92) – ou do sujeito, acrescentaria – ainda que a Psicologia nos possa dar elementos e teorias que permitam repudiar ou reformular o expressivismo no próprio campo em que ele podia fundamentar-se.

 

Os dados que discuto, como se vê pelo discurso de Krysinski, suscitam explicações a partir de teorias psicológicas próprias para descrever o funcionamento da memória e os processos criativos. Ora, o sujeito empírico é o objeto de estudo da Psicologia, e o locutor construído pelo texto é o objeto de estudo da crítica e da teoria literárias, tal como a atuação do sujeito público do poeta pode ser estudada pela teoria da comunicação. E se, por dados oriundos da Psicologia com estudos textuais, é possível defender que a relação entre autor e texto passa por condicionamentos comuns submetidos a “jogos” diferentes num caso (o da personalidade) e em outro (o da obra de arte), no campo mais estrito dos estudos literários é claro que, perante a “dimensão dilatória e a lógica metonímica do texto, que instituem a leitura sem necessidade de recurso à garantia de paternidade [v. o “modo temático” de Hernadi], a sinceridade da enunciação (por onde invariavelmente também se articula a intenção do autor) surge como um falso problema” (Martins, 1993 p. 133).

 

O meu interesse na construção do sujeito-locutor pelo texto, reformulando uma tradição interrompida pelo expressivismo romântico (Genette, 1986 pp. 53-54; Dolezel, 1990), aceita que todos os tipos de relacionamento entre o sujeito textual e o autor e os leitores “transcendentais” são passíveis de se conceber (e foram lógica e poeticamente imaginados na «Autopsicografia» de Fernando Pessoa, por exemplo). Mas, atento às especificidades do nosso campo de trabalho, reconheço também como um desvio metodológico a intenção ou tentação de “rastrear a origem psicológica de um poema” (como escrevia Eliot num ensaio de 1954 (Eliot, 1962)), a “falácia genética” ou a “tentativa de fazer derivar a crítica literária das causas psicológicas do texto [ou no texto, dir-se-ia hoje], acabando irremediavelmente no biografismo [hoje, psicanalítico] e no relativismo” – como escreveram Wimsatt e Beardsley em 1949 (Martins, 1993 p. 132; AAVV, 1983 p. 86ss).

 

Os mesmos argumentos metodológicos (que nos afastam da transferência de campo da crítica e da teoria literárias para a Psicologia) também nos distanciam da explicação sociológica das origens e dos fins do texto literário, visto que tal explicação nunca poderia dispensar a intermediação expressiva do sujeito empírico e a intermediação interpretativa do leitor efetivo (por igual desconhecido na sua totalidade, que por isso não pode ficar suposta na análise das estratégias textuais) (Yvancos, 1992 p. 220).

 

O acento posto na leitura só é válido enquanto nos conduz a um trabalho que procure constituir as possibilidades de configuração que o jogo verbal faculta, ou seja, que procure demonstrar que uma “imagem não é recebida da mesma maneira todos os dias”, que ela “nunca é […] objetiva” (Bachelard, 1988 p. 229). Esse é um trabalho baseado nas fixações dessa imagem num quadro ao qual se retirou o contexto “transcendental”, que nos diz como o texto se possibilita a si próprio, como viabiliza múltiplas leituras e, se possível, nos indica algumas dessas leituras. Arredadas da linguagem escrita as “condições psicossociológicas de produção […] o texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico como psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa situação nova: é o que faz, precisamente, o ato de ler” (Ricoeur, 1991 p. 119).

 

 

Sujeito poético e ciências humanas

Como temos visto, o expressivismo importa conceitos ou noções de sujeito das outras ciências para os estudos literários. Tal operação não é inédita, recordando-nos processos idênticos realizados no século XIX e tendo por referência disciplinas como a Biologia – que, concebida enquanto estudo experimental dos organismos vivos, constituía o paradigma científico da época para muitos autores como Brunetiére (Figueiredo, 1912).

 

A importação do que chamo aqui o ‘modelo de sujeito’, segundo o exposto nos pontos anteriores, opera apenas com um dos vários figurinos que as outras ciências humanas nos podem fornecer. Atrás lembrei, por isso, outros, oriundos também da Filosofia e da Psicologia. Filiando-me numa tradição recuperada e reformulada por autores como Mukarovsky, Wimsatt e Beardsley, mas que se prolonga até hoje, apesar de reconhecer possível encontrar nas mesmas ciências modelos de sujeito plásticos, quue facilmente se adaptam aos nossos objetivos, ou postos à prova por métodos científicos ou experimentais, optei por evitar essa importação, só a aceitando quando ela se reporta a conceitos que, inevitavelmente, esboçam o perfil da condição humana (é o caso dos condicionamentos que limitam o número e a variedade da informação de que o poeta ou artífice dispõe para trabalhar).

 

Isso não significa que procure realizar uma reflexão em que o estudo literário fica isolado das disciplinas congéneres. Evito isolar-me e procuro enriquecer, ou precisar, as minhas hipóteses de trabalho através da comparação constante com os conceitos fixados em outras áreas.

 

Mas a comparação que farei com a Filosofia, a Linguística, a Psicologia, a Pedagogia, a Antropologia ou a Sociologia, visa somente estudar o grau de similaridade existente entre o nosso estudo, da criação do sujeito no texto poético, e o estudo do modelo construído pelas teorias de outras ciências que abordam o mesmo problema.

 

Trata-se de uma comparação de conclusões. Ela insere-se no esforço de encontrar estruturas e formas de organização do conhecimento que sejam comuns às diversas ciências humanas. Para além de comuns (portanto, para além de as detetarmos) é necessário que possam contribuir para uma teoria caracterizada por conectar as diferentes disciplinas dessa região do conhecimento (ou seja, é necessário que possamos relacioná-las consequentemente). Um esforço desse género procura atentar assim ao postulado de uma multiplicidade de causas, de sujeitos e de objetos cuja consciencialização terá determinado uma das recentes mudanças de paradigma nas ciências sociais e humanas. Ela foi focalizada por Fokkema (Fokkema, 1989 p. 326) para os estudos literários a partir da teoria dos valores e numa perspetiva muito próxima da do criacionismo de Leonardo Coimbra: “a teoria do valor intrínseco tem um poder explicativo muito fraco e, por outro lado, não pode ser criticada. Ela tem largamente cedido lugar à teoria do valor relativo, que nos diz que a atribuição de um valor a um objeto por um sujeito depende ao mesmo tempo das qualidades do objeto e dos critérios, dos conhecimentos, dos interesses e das disposições do sujeito”. Ao crítico, penso, caberá determinar as “qualidades do objeto” e com que possíveis “conhecimentos”, “critérios” e “disposições” elas se articulam.

 

Um texto que pode ser revisto nessa perspetiva (da renovação da teoria do valor em ciências sociais) é o de Eduardo Esperança publicado em «Qualitativos: a viagem possível pelos mundos do complexo» (Esperança, 1991) e respetiva bibliografia. De alguma forma também pode ser relido Um discurso sobre as ciências, de Boaventura de Sousa Santos (Santos, 1993). Para várias das ciências de hoje, um panorama pode ser colhido num livro bem mais diverso e mais interessante, Caos e metapsicologia (AAVV, 1994). Um caso muito próprio nesta mudança de paradigma foi o aparecimento de Contra o método, onde Paul Feyerabend explanou a sua teoria anárquica do conhecimento, fundamentada na evolução essencialmente irracional da pesquisa científica (Feyerabend, 1977).

 

Alguns colegas podem estranhar que, passando por essas leituras, ainda me religue a livros como os de Leonardo Coimbra, mas o que ele nos prova é que em princípios filosóficos anteriores (como o do criacionismo) se firmara já a visão do conhecimento como relação criativa e de duplo sentido, em que a “pessoa” e as relações interpessoais integram e superam os “imperialismos” do “sujeito” e do “objeto”. Compare-se com as teorias de Leonardo Coimbra, por exemplo, o já citado Discurso sobre as ciências, de Boaventura de Sousa Santos, especialmente em passagens como esta:

 

[…] é necessária uma outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos

 

                   (Santos, 1993 p. 53)

 

Revisite-se, também, o extrato de Fokkema citado atrás, inserido num conjunto de afirmações que fazem a recuperação da distinção entre sujeito e objeto como norma científica a manter, embora se admita “a interferência do sujeito e do objeto” (Fokkema, 1989 p. 329).

 

Recorde-se, depois, a conhecida bibliografia de e sobre o autor e o conceito de criacionismo na filosofia portuguesa e, particularmente, a obra Deus, o mal e a saudade de António Braz Teixeira (Teixeira, 1993). Leia-se, também, um pequeno artigo do próprio Leonardo Coimbra em que, de forma breve, contrapõe o criacionismo aos “imperialismos” supracitados. Ele aparece na série Dispersos de Leonardo Coimbra editada pela Verbo (Coimbra, 1984). Releia-se, também, o texto «O conhecimento», incluído em O pensamento criacionista (Coimbra, 1983 pp. 11-18). Acerca das relações entre os conceitos de «pessoa», «objeto» e «sujeito» veja-se esta passagem de O criacionismo:

 

Não precisamos de sobrepor à síntese objetiva uma síntese subjetiva. A realidade não se divide nas duas coisas – sujeito e objeto. O sujeito e o objeto são vagas anunciações da pessoa ativa e livre tendo como instrumentos de ação os determinismos subordinados

 

(Coimbra, 1958 p. 257)

 

A arte seria o resultado da “inflexão” da “trajetória do pensamento científico” para “a irredutível realidade – a pessoa” (Coimbra, 1958 p. 81).

 

Na confluência dos vários discursos das ciências humanas e sociais, o papel dos estudos literários ou filológicos será tanto o de importador quanto o de exportador de conceitos e de teorias acerca da natureza da composição do sujeito. Mas a importação (como a exportação) terá de ser filtrada por uma especial atenção ás relações entre estruturas de conteúdo e técnicas usadas para produzir esse conteúdo. A filtragem se garante pela comparação dos resultados entre o estudo da construção dos modelos em literatura (por exemplo do modelo de sujeito) e nas outras áreas. Daí, é possível que também outras disciplinas de humanísticas importem, a seu critério, materiais produzidos pelos críticos – como sucedeu com a adoção dos conceitos atinentes ao estudo da narrativa pela Psicologia (Smorti, 1994) e pela Filosofia (Ricoeur, 1990).

 

A importação «ab ovo» de modelos exógenos é típica de ciências que estão no seu começo (e por isso muitas delas foram diretamente beber à fonte da filosofia). Uma disciplina cujos principais instrumentos operatórios foram definidos há muito, e são constantemente reformulados pela sua experimentação e reinterpretação na prática da leitura textual, pode seguramente partir para o trabalho com as ferramentas próprias do ofício.




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