Lírica, subjetividade e autobiografia

 

Lírica e espécies narrativas afins

 

 

Lírica e narrativa

 

Os dois tipos de texto lírico subjetivo

O uso da noção de subjetividade, nas artes poéticas obriga-nos a distinguir, no sujeito criado pela escrita – como faz a Psicologia para qualquer sujeito – duas instâncias ou categorias dife­rentes: a do ego “material, social e espiritual”, e a do eu “como sendo «o pensamento que reúne os diferentes objectos do pensamento» e que tem como tarefa o conhecimento dos diferentes «eus»” – ou seja, a do «eu» como auto-conhecimento e auto-consciênciaaquele sentimento de si a que se refere António Damásio (Damásio, 2004). Trata-se de uma distinção conhecida de W. James (Couceiro, 1992 p. 54). A dicotomia de James parece derivar de uma passagem de Hegel que a seguir comento e que se tornará fundamental para a psicologia e a teoria do ‘intimismo’.

 

Tanto um como outro destes dois ‘egos’ escrevem-se na primeira pessoa, na qualidade de su­jeitos do que dizem. Origina, porém, diferentes consequências genológicas a representação de um ou de outro. Especificando para o campo dos estudos literários, há a considerar a existência de dois tipos de textos poéticos, correspondentes ao modo como se coordenam e focalizam as referên­cias, que nos aparecerão figuradas em função de um ou de outro conceito de «ego».

 

No primeiro tipo a nomeação das referências é processada de maneira a que a leitura reconstitua aquilo que se filma como a vidência e vivência do locutor-sujeito. Ele corporiza e personaliza a focalização das coisas – ao fazê-lo sugerindo uma dada situação enunciativa (que pode não ser fixa, unânime, sempre igual) e, portanto, um «mundo» no qual ela se insere.

 

Mais especificamente orientada é a emergência do segundo tipo, onde a selecção e distribuição dos motivos está condicionada para configurar uma “consciência de si”, recursiva – que funcionará dessa forma como tópico principal. Aí, a focalização do locutor em torno de si é apenas um dos elementos da figuração de uma personalidade que se representa formulando-se, e não só ao mundo.

 

O transplante, para o texto literário, dos dois tipos, podia fundamentar-se na passagem de Hegel acima referida. Afirma ele que “o lirismo restringe-se ao homem individual e, consequentemente, às situações e aos objectos particulares. O conteúdo da poesia lírica é, pois, a maneira como a alma, com os seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo” (Hegel, 1993 p. 609)[50].

 

Na primeira afirmação (situações e objectos particulares, citando na alma juízos, sentimentos e sensações), a motivação principal é exterior ao sujeito (o mar, a mulher, a cidade – que são alguns dos exemplos que podemos recolher nos 100 poemas), apesar de ser visionada permanen­temente por ele.

 

Na segunda parte da afirmação hegeliana (a alma tomando “consciência de si mesma no âmago deste conteúdo”), o motivo principal é aquele que desfila como autor, sendo os outros subsidiários da alegoria autoral em composição. Aí assumem maior importância – na obra que temos em exemplo – motivos e tópicos como os grupos de referência e de pertença (Gonçalves, 1992 p. 129), ou a saudade da adolescência; e processos como os da modelação de senti­mentos inter-individuais complexos, ou o do artificiamento explícito e justificado de pontos de interesse reiterados variamente no que foi desenhado pelo texto como a sua ecologia. Por tais traços é que a leitura delineará mais precisa­mente uma topografia identitária e reflexiva.

 

Sendo o primeiro tipo o da subordinação referencial à perspetiva egocêntrica, a emergência do segundo implica, para além do condicionamento verbal à focalização do autor entre situações e objectos ou seres, a distributiva selecção das referências em torno da soma de eventos que permita figurar um sujeito formando um perfil que se define e questiona enquanto se escreve, imitando por isso e por vezes o relevo das palavras as características de um “diálogo do eu consigo próprio” (Quadros, 1971 p. 381). Trata-se, portanto, mais do que do fechamento interno sobre a primeira pessoa, traço apontado por Beaujour quando fala no «auto-retrato» (Beaujor, 1980 p. 90)[51].

 

Se o par subjetividade-lírica atingiu facilmente a consagração (ainda que os dois conceitos so­fram definições diferentes de um especialista para outro), foi-o ao arrepio desta polarização interna. A emergência do primeiro ou do segundo dos dois tipos de subjetividade referidos traz no entanto implicações diferentes ao nível genológico, seja no interior da lírica, seja fora dela.

 

Tais implicações não costumam ser discutidas nos termos em que – sus­tentado na poesia de M. António – as coloco. Porque não se costuma, falando acerca da lírica, derivar águas entre a torrente avassaladora das percepções e emoções de um sujeito construindo uma visão própria do mundo e o fio de sentido que alinha os campos semânticos mais variados para figurar o processo de aquisição e confirmação da auto-consciência, representando e questionando os estados ou atos que objectiva[52]. E, neste segundo caso, encontramos peças que, sendo subjetivas, não são líricas, integrando-se numa nebulosa de espécies híbridas (entre o ensaio, a lírica e a narrativa) que os cata­logadores não conseguem emoldurar adequadamente. O que implica uma desvinculação no par idílico subjetividade-lírica, visto que a primeira parceira vai para além da segunda e é, portanto, polígama.

 

Para reflectirmos acerca das consequências genológicas desta (outra) dupla conceituação de subjetivo (a anterior distinguia o conceito construtivista e o expressivista) temos, portanto, como instrumento, a definição da diferença entre os dois tipos. Em termos literários, ela resume-se

 

no condicionamento do primeiro à focalização dada como própria da personagem autoral;

no condicionamento do segundo à focalização da e na figura do autor.

 

O que implica dizer, no se­gundo caso, que estamos perante uma típica atitude autobiográfica: a que desenvolve a duplicação especulativa – mas por vezes assimétrica – do enunciador.

 

No segundo caso ainda, a relação que, em termos psicológicos, podíamos definir como «eu-não-eu» passa a ser triádica, pela intromissão nela de um mediador (a consciência do «eu»), que possibilitará a co-autoria do sentido do primeiro desses termos na diegese apresentada como servindo-lhe de identificação (Ricoeur, 1990 p. 191). O elemento intermédio pressupõe, por isso, alguma objectividade e algum distanciamento (do «ego») em relação ao «eu», na medida em que a «consciência do eu» pretende visualizá-lo e conceptualizá-lo, funcionando “como um outro” (Ricoeur, 1978; Soveral, 1993 pp. 18-19). Por isso Hegel, na Estética, alvitrava o imperativo psicológico de o poeta lírico se distanciar de si, dessa forma ampliando a “consciência da sua interioridade” – o que levava “a poesia lírica” a exigir “uma cultura artística adquirida, mas que deve, ao mesmo tempo, aparecer como resultado do desenvolvimento e ampliação expontâneas do dom natural” (Hegel, 1993 p. 234)[53].

 

O desenho da figura autoral, realizando-se por um discurso que mimetiza uma busca dela, torna-a mais subjetiva no sentido que atribuo à palavra no capítulo precedente. Enquanto a lírica do primeiro tipo lhe afecta só uma categoria da focalização (quem foca), a do segundo soma-lhe também a categoria do observado (o que se foca). Portanto, em face da construção do sujeito, o segundo tipo é mais intenso e completo.

 

Ora há quatro espécies, que usualmente lemos como narrativas ou enumerativas, cuja definição se intersecciona largamente com a da lírica mais subjetiva, a autobiográfica, que pretendo situar. A intersecção dá-se por causa do obsessivo locutor textualmente estruturado pela construção da consciência de si enquanto pessoa. Essas espécies são a «autobiografia», o «auto-retrato», o «diário íntimo» e o «memoria­lismo» – incluído o último, expressamente, por Fidelino de Figueiredo na lírica em prosa (Figueiredo, 1912 p. 25).

 

 

Lírica autobiográfica e espécies afins: indistinções comuns

A proximidade entre estas espécies fica denunciada pela dificuldade com que os teóricos as destrin­çam. São perigos que, de entre as obras comentadas no capítulo anterior, só o quadro genológico de Fidelino de Figueiredo acautelava, pela concei­tuação abrangente da lírica fundada na tripartição “maneira”, “modo” e género, de ressonâncias aristotéli­cas evidentes. Espreitemos algu­mas típicas indistinções entre lírica e narrativas subjetivas, para vermos como podemos con­jugá-las às op­ções genológicas de «M. António», que se revelarão esclarecedoras a vários títulos, incluindo esse.

 

Em 1948, quando Gusdorf publica um texto que se tornou referência para a teorização da autobiografia (Gusdorf, 1948), ele hiperboliza o seu apareci­men­to elevando-o à categoria de “uma nova revo­lução espiritual: o artista e o modelo coincidem, o historiador toma-se a si mesmo como objecto”. Ora, o facto de o artista se tomar a si próprio como objecto é uma das características apontadas por Hegel à poesia lírica...

 

No já citado livro de 1957, Kate Hamburger tinha tido que recorrer à correspondência com realidades empíricas para explicar a autobiografia, feita sobre “factos reais ou factos supostamente verídicos”. Ora, o “eu histórico” de tal espécie narrativa tem, nesse caso, o mesmo estatuto que o “eu lírico” do género “existencial” que é a lírica, porque ambos constituem “declarações de sujeitos acerca de objectos”, pressupondo-se que os sujeitos, as declarações e os objectos são “reais” ou “verídicos”.

Karl J. Weintraub, num artigo de 1975, reconhece (antes de estudar várias espécies intimistas) que a “poesia lírica raramente pode libertar-se de fortes elementos autobiográficos”. Procurando, logo depois, eleger um critério fixo e definido para separar autobiografia e lírica, afirma que o “elemento autobiográfico dessa poesia raramente tem como referente toda «uma vida», sendo que geralmente se centra num momento dessa vida e só em raras ocasiões se trata de um momento significativo da verdadeira essência da significação da vida”. Em consequência, o autor achará que “na autobiografia se rememoram aspetos significativos da vida, partes importantes da experiência”. Parece fixar-se dessa maneira uma conseguida destrinça genológi­ca, mas na verdade ela só vingaria se não concebêssemos que um livro de poemas e o próprio género são definidos no seu conjunto, não pelo conteúdo de cada peça, mas pela orquestração (ou caotização) de todas.

Ora, se a diferença entre lírica e autobiografia assenta no facto de uma só recordar instantes da vida e outra reunir esses instantes, ela deixa de ser pertinente ao considerarmos uma obra na sua totalidade. Um «macro-texto» lírico, onde surjam diversos momentos “autobiográfi­cos”, como adiante reafirmaremos, constitui, ele também, a rememora­ção de “aspetos significativos da vida, partes importantes da exper­iência”. Não pode garantir, pois, esse “critério excessivamente drás­tico”, a destrinça entre autobiografia e lírica.

Por vezes, o contraste entre autobiografia e lírica deriva também da dificuldade em organizar uma definição eficaz, quer de uma, quer de outra. Isso acontece porque podemos recrutar à lírica o que da autobiografia diz Olney, a saber, que a “prática da autobiografia é quase tão variada como o número de pessoas que a levam a cabo”. Só o facto de o número de praticantes da lírica ser infinitamente superior ao número de praticantes da autobiografia nos leva a detectar uma quantidade maior de variações nas obras líricas de uma dada época. Na verdade, também a sua prática é extremamente individualizada quando se trata de poetas e não de epígonos ou vulgariza­dores.

A dificuldade experimentada por Kate Hamburger ou Karl Weintraub encontra-se nos mais variados teóricos, e não só do campo da crítica literária. No âmbito do que chama «Antropologia Histórica», J-P Vernant  propõe uma sugestiva tríade entre indivíduo “strictu senso”, “sujeito” e “pessoa” - não interessa por agora dis­cutir os termos en­quanto tais. O indivíduo seria definido pelo “seu lugar, o papel que desempenha no seu ou nos seus grupos”. Dos outros dois, o “sujeito” cor­res­ponderia ao indivíduo que, exprimindo-se na primeira pessoa, falando em seu pró­prio nome, enuncia certos traços que fazem dele um ser singular”; o “eu, a pessoa” englobaria o “conjunto das práticas e das atitudes psicológicas que dão ao sujeito uma dimensão de interioridade e unicidade (...) à qual ninguém, com excepção dele próprio, pode ter acesso, pois ela define-se como consciência de si”.

A transposição destas distinções para o campo literário é justificada no seu texto a título de exemplo, fazendo-se corresponder o indivíduo “strictu senso” à biografia, o sujeito à autobiografia ou às memórias (“quando o indivíduo conta a si próprio o curso da sua vida”) e o “eu, a pessoa” às “Confissões e Diários íntimos onde a vida interior, a pessoa singular do sujeito, na sua complexidade e riqueza psicológica, formam a matéria do texto”.

Mais uma vez, a transposição para os estudos literários não atentou à natureza específica destes e, portanto, a distinção não é intrínseca – facto compreensível, dado que lemos um trabalho inserido noutra série científica. No entanto, a classificação de Vernant é sugestiva, pelo menos até ao momento em que fala na “consciência de si” associando-a explicitamente à pessoa – e, portanto, ao «diário íntimo». Porque tal atributo pode pertencer à autobiografia e não pertencer aos ditos diários. Senão vejamos.

É o próprio autor que nos lembra o que terá sucedido na Grécia antiga, onde se radicaria “a nossa ideia da individualidade e do carácter duma pessoa”, e onde não havia espécies biográficas – tal como hoje as concebemos – no discurso literário subjetivo, muito menos «Diários Íntimos”. A ideia básica de uma «consciência de si» emergiu, portanto, sem o género que a “exprimiria” – o que implica não ser exclusiva do diarista a “auto-consciência”.

Por outro lado, quando “o indivíduo conta a si próprio o curso da sua vida”, esse contar inclui ou pode incluir a construção de uma imagem íntima e complexa do protagonista, que, assim, tal como nas “Confissões”, formaria a matéria do seu escrito. Por tal motivo, aliás, a definição que Vernant dá de autobiografia é, em parte, a definição que A. Girard dá do traço comum essencial a todos os «diários íntimos»: todos eles transcrevem a relação de uma mesma experiência passada, que se desenvolve e vai aprofundando-se com o tempo.

Mas a pergunta, para nós, neste momento mais pertinente face às transposições de Vernant, visto que denuncia a proximidade entre as espécies referidas e a que procuramos definir, é a que tenta saber em que é que difeririam, nesse caso, a Lírica em verso do segundo tipo por nós concebido, e os “Diários íntimos” ou as “Confissões”. Não difeririam em nada mais do que na passagem do ritmo do verso ao da prosa nos casos em que a lírica fosse em verso.

Apesar da sua classificação não nos resolver o problema da distinção entre as diversas espécies subjetivas, há uma brevíssima passagem do texto de Vernant que  nos pode vir a ser útil: aquela em que ele utiliza a expressão “contar (...) o curso da sua vida”, e que nos recorda outras semelhantes aplicadas à noção de narrativa.

A dificuldade na destrinça da fronteira entre as várias espécies de discurso literário subjetivo deriva, não só dos conceitos operatórios utilizados por Kate Hamburger, ou Vernant – que são autores expressivistas – mas também da cumplicidade temática e estrutural entre autobiografia, memorialismo, diarismo e lírica, a qual nos permite sempre dizer que “a coincidência de pessoa entre as instâncias diegética e discursiva satisfaz a primeira condição do género autobio­gráfico” e ao mesmo tempo do lírico – a julgar pelo que na secção anterior observámos diversamente.

Expressão dessa cumplicidade é a definição literária de “monólogo in­terior” no Dicionário Roberts: “transcrição na primeira pessoa de uma sequência de estados de consciência que se supõe que a personagem experimenta”. Se a palavra personagem é aplicável ao próprio sujeito construído pelo texto como autor, em que diferem os monólogos dra­máticos dos poemas líricos, ou dos diários íntimos? ou do memo­ria­lis­mo e da autobiografia, que mais pormenorizadamente podem contex­tualizar os “estados” (o que faz M. António ao longo dos 100 poemas, sem no en­tanto ser estritamente memorialista ou autobiógrafo)?

A definição vem citada em epígrafe de um artigo de Danièle Sallenave publicado na colectânea Categorias da Narrativa . Esse artigo é, por sua vez, mais um exemplo das miragens que os diversos ensaístas sofrem na tentativa de marcarem com nitidez a fluida fronteira entre estas várias espécies. O quadro apresentado pela autora a pp. 109 é de modo geral sugestivo da mesma aproximação que levanta o Dicio­nário Roberts. Ele representa, porém, conotações mais difíceis de justificar, como as que distinguem «memórias» e “autobiografia”: a distância do memorialismo em relação aos acontecimentos é definida pelo vocábulo “pretérito” nesse quadro, enquanto que, para a autobio­grafia, é “pretérito/presente”, não percebemos porquê, dado que o pre­sente é um tempo fundamental para a própria noção de «memórias», é o tempo da enunciação delas, aquele que as condiciona, tanto quanto às autobiografias. Do mesmo modo nos parece infundamentada a diferenciação enunciativa entre as duas espécies: nas «memórias» haveria uma relação “eu / ele”; na autobiografia a enunciação seria sempre na primeira pessoa. Ora, o exemplo demonstrativo citado no comentário do quadro, tanto pode surgir em «memórias» como nas autobiografias, o que é natural, porque tanto numa espécie quanto noutra é possível o «eu» referir-se a si próprio na terceira pessoa, ou narrar histórias em que não entra diretamente. É mesmo provável que seja mais comum isso acontecer nas autobiografias do que nas «memórias», dado o maior grau de lirismo que parecer tocar a imagem do memorialista, estruturado fragmentariamente.

Por fim, para distinguir estas espécies híbridas, a autora traz a concurso uma terceira categoria, que denomina: “O destinatário é levado em conta”. Parece-nos que as distinções por ela geradas a partir dessa categoria são no mínimo confusas: o destinatário explícito das «memórias» é “a História, o julgamento dos homens” (p. 110), enquanto que nas autobiografias é “ou o leitor, ou a imagem que o narrador tem de si próprio” (id.). Perante essa “distinção” há questões a colocar: os homens que julgam e o leitor diferem em quê? A imagem que o narrador tem de si próprio é um destinatário explícito ou implícito? Essa imagem está ausente das «memórias»? A autobiografia não se organiza também em função da “História”, do “julgamento dos homens”, não é essa muitas vezes a sua própria justificação? É, de facto, difícil estabelecer as distinções pretendidas a partir destas categorias. Até por elas serem suficientemente vagas para também as podermos identificar nas obras líricas, em poemas mesmo não-autobiográficos.

O problema da distinção entre espécies subjetivas desafia, portanto, os autores mais variados. Ele suscita igualmente o interesse de críticos que recorreram a construtos teóricos radicados em tradições anti-expressivistas, como Eliot, nos seus Ensaios de Doutrina Crítica. Ao definir a lírica enquanto “solilóquio espiado”, o conhecido poeta e ensaísta não poderá distingui-la do «livro de memórias», nem dos «Diários». Porque há exemplares de todas estas espécies em que podemos igualmente vislumbrar o que diz Yvancos acerca da “situação comunicativa imaginária da lírica”: “é a de um solilóquio pelo qual o falante se sente a si mesmo como ser, se intui como interioridade”. A “interioridade” é precisamente um conceito repetido nas teorias sobre «diários» e «auto-retratos», como é o caso das de Gusdorf, Girard e Beaujour.

Também Jakobson – fazendo-nos lembrar a integração do memorialis­mo na lírica em prosa feita por Fidelino de Figueiredo – “exemplificou o conceito de lírica como género de «primeira pessoa e do tempo pre­sente» referindo-se aos contos e à autobiografia de Bóris Pasternak”, num texto publicado em 1935. E Frye, na Anatomia da Crítica, retrata mimeticamente o poeta lírico dizendo que ele tende “a escrever como um indivíduo que enfatiza a divisão da sua personalidade e a claridade da sua visão” – o que também sucede com o narrador autobiográfico, dividido entre o que se lembra nitidamente de ter sido e aquele que se propõe como quem narra o que ele foi, ou dividido entre si e a imagem de si, ou, ainda, nos diversos episódios, hesitante em face de questões que exi­giam reflexão aos olhos do senso comum. A divisão da personalidade, que instala uma nota dramática na pauta lírica, estruturada sobre oposições do tipo “interior / exterior”, ou “passado / presente”, é uma das características apontadas igualmente por Alain Girard ao “auto-retrato” dos escritos “intimistas”, conforme adiante referiremos. E também Gusdorf a enfatiza ao considerar psicanaliti­ca­mente a própria autobiografia.

Hernadi, para finalizarmos, faz mesmo a pertinente comparação entre muitas das “maneiras” líricas de “evocar uma voz interior”, e “a produção de auto-retratos de um pintor” (não por acaso o «auto-retrato» é também, como demonstra a teorização de Beaujour, uma espécie familiar à lírica e à autobiografia).

Qualquer destas espécies (umas estruturadas liricamente, outras com uma sequência típica das narrativas, outras ainda inqualificáveis entre os dois géneros) permite-nos de facto falar numa enunciação unívoca centrada na primeira pessoa, e num texto que constrói o retrato de um artista que “apresenta a sua imagem em relação consigo mesmo”. Estes tipos “confessionais” de literatura caracterizam-se por realizarem também, sobre a “diversidade de sentimentos, que cada espécie lírica representa”, uma operação que tende a referir, adunar e hierarquizar esses sentimentos. E sobre eles podemos dizer, como sobre qualquer artifício condicionado pela construção do retrato do autor, o que Berdiaev afirmava acerca do Ensaio de Autobiografia Espiritual: “Este livro que escrevo sobre mim próprio (...) é uma interpretação e um conhecimento (filosófico) do meu eu e da minha vida”. Mas, confirmando a estruturação do tecido semântico pela objectivação do «eu», diz ainda, em legítima defesa, que “aqui o egocentrismo é compensado pelo facto de que de mim e da minha vida faço um objecto de conhecimento”.

As narrativas estruturadas pela composição de um eu à procura do eu em processo de conhecimento, são todas caracteri­zadas pela necessária selecção dos motivos e dos tópicos em obediência a uma estratégia que retratará um esforço de auto-consciência numa urdidura ficcional, imitando o «ser em ato» a par da «vontade de ser» – o que desde logo nos dá a dimensão ética da autobiografia, ou da lírica subjetiva do segundo tipo. António Quadros, ao referi-lo em Ficção e Espírito, numa perspetiva expressivista, utiliza a palavra «plano» onde uso «estratégia», e acrescenta a oportuna expressão “muitas vezes informulado”. É precisamente por aí que a nosso ver passa a diferenciação entre autobiografia e lírica, que o mesmo ensaísta e publicista aproveita para distinguir entre autobiografia e «memorialismo» – fazendo (talvez involuntariamente) lembrar (como Jakobson, embora por outros motivos) o quadro em que Fidelino de Figueiredo integra o memorialismo na lírica – e que serve ainda para distinguir as líricas do primeiro tipo das narrativas autobiográficas.

A imagem da formulação (prévia à escrita) de um “plano”, far-nos-ia pressupor – numa leitura expressivista – a existência de um sujeito que necessariamente articula assim a sua experiência do tempo. Nessa perspetiva, a organização consciente da experiência determina psicologicamente o carácter diferencial da narrativa no seio da literariedade ou da poeticidade. Mas ela não precisa de ser consciente (formulada), nem precisa de mostrar-se imitando uma consciência prévia organizadora.

Georges Gusdorf, no já citado texto de 1948, aplica diretamente a constatação a uma teoria literária (mas expressivista) da narrativa autobiográfica, dizendo que “se trata, para ele [refere-se ao “autor da autobiografia”], de reunir os elementos dispersos da sua vida pessoal e de agrupá-los num esquema de conjunto” (o itálico é meu) que englobaria, não “um momento da sua aparência exterior” (como sucede com o auto-retrato de um pintor) mas a “expressão coerente e total do seu destino”.

Hegel, ao referir espécies narrativas afins à lírica, realçou a mesma di­ferença que procuro levantar. Falando sobre “cantos heróicos, baladas, romances, etc.”, observa que a “forma de um tal conjunto é então, por um lado, a de uma narrativa (o sublinhado não é meu), posto que relata o curso de uma situação, de um acontecimento, a mudança brusca nos destinos de uma nação, etc.”. É este “relatar o curso de” (lembremo-nos agora do “contar o curso da sua vida”, de Vernant) que nos indicia um plano (prévio - “consciente” - ou não - “informulado”), pela sugestão garantida num percurso “que progride para um fim”, em vez de listar (logicamente ou afectivamente) os tópicos sobre que se debruça. A organização “lógica” desses tópicos definiria o speculum medieval , que seria uma das “estruturas profundas” do «auto-retrato»; a progressão para um fim equivale ao “processo transformacional” com que Andrea Smorti, a partir de Todorov, resume uma das duas componentes fundamentais da nar­rativa (a outra alicerçar-se-ia na organização [ou reorganização] dos materiais pelo autor e pelo leitor ).

Daí que se fale no género narrativo como implicando uma diacronia estruturada sintagmaticamente , ou, como fez Ricoeur, implicando a mediação de um tempo configurado (afim ao «argumento» de Toma­chevski), para nos levar de um tempo que o “pacto narrativo”  postula como prefigurado para aquele que a leitura (condicionada por esse pacto) refigurará .

É possível aproveitar a ideia de António Quadros, de Paul Ricoeur e de Vernant sem cair no expressivismo. Porque, para um estudo literário intrínseco, não é pertinente saber se a narrativa resulta da consciência simbólica do tempo, ou de um plano previamente formulado, e se a lírica exulta, por oposto, na espontaneidade do autor enquanto compõe. Isso caberá no âmbito de uma teoria da criação, fundada na observação e reflexão sobre o funcionamento psicológico da mente humana, mas não no campo de trabalho em que nos situa­mos, inevitavelmente como leitores de um texto que nos é facultado seja qual for a sua autoria “verdadeira”.

O importante é que a narrativa se desenvolve articulando o plano do discurso com uma organi­zação cronotópica da diegese que nos serve de referência. Ela estrutura-se por uma delineação explícita (mas não necessariamente cronológica ou fiel à cronologia) dos sucessos narrados, uma delineação perceptível para o leitor e exemplificável no texto. A impressão, susci­tada à leitura, da existência de um programa formulado (ou prévio) deriva portanto – na autobiografia – de ela adoptar o símile, não apenas do romance, mas da narrativa em geral. É pela adopção desse simile que a autobiografia se distingue da lírica subjetiva do segundo tipo.

 

 

Distinção entre outras espécies subjetivas e a lírica de segundo tipo

 

Lírica, memorialismo, intimismo e narrativa: a relação «estrutura profunda» / «estrutura de superfície».

 

Dentro do que chamei “narrativa em geral” (descrita por Hegel como “relatar o curso de”), a de carácter biográfico (de que a autobio­grafia será uma possibilidade) pode ser concebida como a organização sistemática e acabada de uma vida (“contar [...] o curso de uma vida”, na palavra de Vernant), ou de um episódio decisivo de uma vida, incluindo os antecedentes que o explicariam “por dentro”, ou seja, a partir de uma focalização interna, subjetiva.

Esta afirmação de António Quadros permite encadear com maior nitidez o problema, mais que da biografia, da autobiografia. Clara Rocha, num trabalho publicado em 1992 , defende que “a compre­ensão do género memorialístico deve atender mais ao estrato semântico do que ao técnico-construtivo”. Situa por isso “as memórias” entre a autobiografia e a crónica, porque também nos dão “o testemunho dum tempo e dum meio” (p. 39). Mas, como se deduz pelas análises e pela tipologia em que António Quadros integra as diversas autobiografias que estuda, é fácil percebermos que, por um lado, a autobiografia também pode dar esse “testemunho” de que fala Clara Rocha - como se vê pelas Antimemórias de Malraux; por outro lado, o trabalho de António Quadros aborda condições para atender ao “estrato técnico-construtivo” na “compreensão do género memorialístico” (que não é um género mas uma espécie), precisamente em virtude do facto literário que tentamos aproveitar e que vem definindo as narrativas (a orquestração sequencial das referências em torno de um critério único de progressão).

A autobiografia, seguindo o símile da narrativa , tende a apresentar-se como se previamente  estivessem sistematizados os acontecimentos marcantes da vida do sujeito-locutor em função de um fio narrativo , de uma trama e de um «argumento» (Tomachevski) que ordenam as evocações, aparentemente espontâneas, do passado, e condicionam a leitura da identidade de um autor textual, colocando a intriga “ao serviço da personagem”  .

O memorialismo, por seu turno, suscitaria a ideia de um “discurso descontínuo e fragmentário” (no concernente às relações da sequência do discurso com a diegese que lhe compõe a referência, a prefigu­ração). Um discurso fragmentário que lhe permite sugerir “zonas mais profundas de intimidade” – tornando-se explícita, neste passo de António Quadros, a ligação entre o fragmentário e o íntimo, que define todas as espécies confessionais excepto a autobiografia – que pode ser delimitada assim, ou parcialmente assim, não sendo obrigatória nem diacriticamente alheia à composição de um ambiente íntimo.

Transversalizando entre o expressivismo e uma observação tendencial­mente estrutural, as afirma­ções do ensaísta português deixam-nos co­mo resíduo construtivo uma distinção não-semântica, mas sintáctica: a ordenação autobiográfica conduz a uma sequência unívoca, a uma progressão de atos ou episódios legitimada por uma “lógica”; a memorialísta aproxima-se mais da sequência caótica típica do «macro-texto» lírico. Aparentemente, num há regras para sintagmatizar as uni­dades semânticas que são os poemas, capítulos ou episódios; no outro isso deixa de acontecer. Dizê-lo é adoptar um critério técnico-cons­tru­tivo satisfatório para distinguir a lírica de outras espé­cies subjetivas.

Parece-nos pertinente fazer, de passagem, uma distinção entre o me­morialismo subjectivista de que fala António Quadros e o memo­ria­lis­mo concebido como “exterior”.

A ideia de que os «livros de memórias» permitem considerar as experiências “em si mesmas com independência do sujeito que as levou a cabo” obrigar-nos-ia a postular que existe um outro tipo de memo­rialismo. Esse outro tipo é levantado no artigo de Weintraub que citei mais atrás.

Quer-nos parecer que o raciocínio efectuado por Weintraub é passível de alguma crítica. Uma crítica que o autor antecipa ao assumir, apoi­ado no conceito de “tipos ideais” de Weber, que “a diferenciação entre a autobiografia e as memórias não pode ser rígida nem definitiva”.

Torna-se necessária esta concessão, porque o teórico elegera as «res gestae» como uma espécie de antepassado mítico e arqueológico das «memórias». Como naquelas se narra uma série de façanhas visando engrandecer a personagem central, admite-se que estas também se dispersam por diversos acontecimentos independentemente do sujeito que os protagoniza. Ficaria, desse modo, só a «dispersão» como a única característica aparentemente próxima do memorialismo sub­jec­ti­vista, tal como António Quadros o define, não se tratando neste caso de uma espécie subjetiva, ainda que mantenha afinidades com a dis­tribuição caótica dos livros líricos.

Porém, parece-me que as «res gestae» narram as façanhas de alguém também em função do retrato que pretendem compor – ajustando-se à descrição do «auto-retrato» em Beaujour quando são escritas por alguém que se apresenta como o herói das façanhas. No «auto-retrato» o autor iria nomeando, tópico por tópico, lugares (da vida, da memó­ria, da cultura, geográficos) que percorrem o espectro psicológico que uma dada comunidade modelaria para configurar uma personalidade própria do seu tempo, a regulação cronotópica da sua «paideia»; nas «res gestae» o autor iria nomeando, também tópico por tópico, as faça­nhas que fariam dele uma personalidade exemplar para o seu tempo. Em qualquer dos casos, o objectivo é apontar uma personalidade ideal, alicerçada numa consciência íntima, que explicaria as acções paradigmáticas – podendo estas, no entanto, sequenciar-se no discurso de forma lírica, ou seja, “fragmentariamente”, aparentemente desgar­radas umas em relação às outras.

Nessa medida, as «res gestae» subjetivas – como os «auto-retratos» – apontam a uma “vida interior” própria, que organiza a experiência e que seria típica também da autobiografia. A noção de “vida interior” acentua-se ainda mais quando passamos das «res gestae» para os livros de «memórias», que nelas (res gestae) se fundariam – o que obriga Weintraub à concessão weberiana, para justificar a muito relativa pertinência diacrítica do seu critério distintivo.

A distinção que o autor procura fazer entre autobiografia e espécies afins (nomeadamente, a lírica autobiográfica, as «memórias», os «diá­rios» e os «autorretratos literários») está alicerçada, aliás, em dois tópicos: um, é o da dificuldade em estabelecer uma compartimen­tação clara que as man­tenha separadas; o outro corresponde à dicotomia «momentos independentes / momentos depen­dentes da significação do conjunto» em que se referem. Na autobiografia só haverá lugar para o segundo tipo de momentos; nas outras espécies só haverá lugar para o primeiro tipo – falando, como é óbvio, em casos “exemplares” que a realidade não consagra com precisão .

Ora, se considerarmos que uma obra lírica é definida só na sua totalidade, como um conjunto de poemas de significação articulada, a pertinência da noção de “momentos independentes (...) da significação do conjunto” diminui bastante, pois é necessário conjugar os vários momentos para conhecer a sua “independência” ou fragmentação em face de um todo. Complementar­mente, uma lírica autobiográfica trans­porta no seu bojo, apesar da fragmentária aparência, uma diegese sub­jacente que liga os poemas e os torna dependentes uns dos outros por uma significação “do conjunto”. Pelo que me parece que a existência de textos com “momentos independentes” é rara, e, o que é mais importante, não se aplica ao tipo de escritos que vamos ler.

Penso, pelo contrário, justo promover – com António Quadros – a inclusão do memorialismo entre o conjunto das espécies autobio­grá­fi­cas, aproximando-o ao mesmo tempo, de acordo com Fidelino de Fi­gueiredo, das espécies líricas subjetivas, ou seja, daquelas em que a história ou a figuração de um «eu» assumem a centralidade da signi­ficação e da enunciação. Dado o facto – estrutural – de o memorialismo expor os acontecimentos seguindo mais de longe o “símile” narrativo do que o faz a autobiografia, integra-lo-íamos numa espécie mais próxima da lírica do que das narrativas em sentido estrito.

O memorialismo subjectivista – que nos recorda o que a crítica fran­có­fona chama «diário íntimo» – fica exemplificado, portanto, por Antó­nio Quadros, em O Mundo à minha Procura, de Ruben A., por nessa obra se realçarem, aleatoriamente, “insignificantes tropismos em microcosmos locais (portuenses, minhotos, portugueses)”, e dadas as pormenorizadas evocações da infância e de momentos particulares (não-públicos, nem civis). E ele é situado pelo crítico português como uma espécie da autobiografia.

Perfilhemos momentaneamente uma linguagem que deve algo à filosofia analítica (de Austin, de Searle), na medida em que se trata aqui da imitação de modelos discursivos diferentes para o caso da narrativa e da lírica. Na lírica, o modelo é o do discurso dominado pela emoção (e, portanto, por processos de transfiguração e de fragmentação); na narrativa é o do discurso que objectiva a emoção (utilizando processos figurativos e reunindo os fragmentos em função de uma temporali­dade nítida, explicitamente assumida com frases do tipo três anos mais tarde ou três anos antes) .

A lírica, imitando um sujeito cujo comportamento linguístico se deixou dominar pelas emoções, para dar-nos a impressão de espontaneidade , terá de provocá-la pela sugestão de uma ausência de programa narrativo (na organização do conjunto dos poemas, ou também no interior de cada um deles). Fica instalada assim uma descontinuidade aparente – a qual, por sua vez, pode ser reconstruída pela recuperação do que seria a sucessão narrativa, cronológica e topicamente organizada, das referências, recuperação que se efectua na receção da obra. Em grande medida o memorialista faz o mesmo que o lírico e fá-lo procurando o mesmo efeito.

Se depois reunirmos os cacos espalhados pelas páginas, aquilo que parecia ao leitor ser a disposição dos poemas (ou das evocações) de acordo com os fluxos e refluxos da memória, da saudade e dos acasos da vida, passará imediatamente a parecer-lhe uma narrativa, que deixou de evocar ou reactivar uma experiência total e pessoal de um referente, para passar a construir uma referência complexa (composta de referentes vários), destinada a activar no leitor a experiência total dela própria .

O cânone genológico que ensina que a lírica não deve dar a impressão de resultar de uma estratégia formulada previamente é que permite a alguns teóricos conectarem-na com o presente – que melhor definiríamos como o “aqui / agora”, equiparado pela psicologia ao campo cognitivo da criança no estágio anterior ao da aquisição da palavra . O espontâneo adjectiva-se aí como imediatismo.

O imediatismo potencia a ideia de fragmentação quando consideramos uma obra inteira e não somente um poema. É como se cada poema resultasse de um impulso breve e sem continuidade, ou mais longo e mais denso, mas “isolado” pelo fluir inflamado e imediato de outro rompante. Uma característica que seria comum à lírica, ao memorialismo subjectivista, ao «auto-retrato» e ao «diário íntimo», aparentemente escrito ao sabor dos dias, ao ritmo das ausências e comparências da memória e da vontade, onde cada capítulo, ou cada dia, valessem por si sós. Mas a apresentação fragmentada da diegese não deixa de fornecer à leitura elementos suficientes para descobrir­mos a anterioridade, ou posterioridade, de umas referências em relação às outras, anterioridade e posterioridade explícitas nas “récitas”, e cujo estatuto nos permite, por contraste, deduzir a distribuição aleatória das unidades. A estrutura típica da narrativa está, pois, lá por baixo dessa aparente espontaneidade, ou informulação, ou imediatismo.

Também deriva do “imediatismo” lírico outra característica comum a várias destas espécies: a da imobilidade do tema, que se desenvolve discursivamente por colateralidade, analogia, e não pela sucessividade ou contiguidade espacio-temporais . É uma imobilidade, porém, que assumirá ca­racterísticas próprias na descrição do discurso memoria­lístico, na medida em que as «memórias» se caracterizam às vezes por uma imobilização que centraliza em torno de uma unidade de sentido e de uma única personagem as diversas personagens que alguém vai sendo no decorrer da sua vida , apagando assim do relato da vida a imitação ou o sinal do inesperado e do involuntá­rio.

Nessa medida, a imitação lírica favorece mais a ilusão de autentici­da­de, a verosimilhança, porque mimetiza diversos momentos (alguns po­dendo caracterizar-se como inesperados) de um sujeito que se descobre como permanência ainda quando não se configure uma identidade única, imutável. Em cada poema lírico a personagem estruturadora não se retrata pela sua redução a um só tipo psicológico, de significado unívoco proposto ao longo de um livro. A conexão entre os vários «eus» é deixada à leitura, que se condiciona apenas por sinais mínimos ou básicos, em que se fundamentará o leitor para aproximar esses diversos «eus» de cada poema reunindo-os num tipo modelar e complexo, diverso de si próprio apesar de “concerteza [...] o mesmo”.

A distribuição caótica não significa que não haja uma ordem que organize os textos líricos, ou as memórias mais “intimistas”; significa sim que teremos de procurá-la, visto que o modelo genológico obrigou a escondê-la para que a obra parecesse espontânea, transparente, ou autêntica. As leituras biográfica, psicanalítica, ou de qualquer outra forma contextuais, dos mais diversos poemas ou conjuntos de poemas, são tentadoras precisamente porque nos fornecem um conjunto de «histórias-tipo» sobre as quais podemos com facilidade encaixar a emergência de cada fragmento. Elas substituem a trabalhosa reconstituição de uma diegese, sugerida a partir de fragmentos líricos específicos, por modelos narrativos aplicáveis a instantes diversos de obras diferentes, enfim, aplicáveis a tudo e por consequência mecanizáveis.

Torna-se, portanto, pertinente, para desalojarmos a obsessão psicolo­gista e sociologista sem abandonarmos a procura da clara destrinça entre espécies híbridas, recuperar a noção de «estrutura profunda», contraposta à de «superfície», conceitos operatórios que a gramática generativa desenvolveu nas últimas décadas, mas a que daremos um sentido literário, pois a nossa «estrutura profunda» é a que a receção poderá compor a partir da de «superfície», ou textual.

O que as leituras psicanalíticas e expressivistas legitimam e facilitam é a substituição rasa de uma estrutura profunda suscitada por cada obra, dentro das particularidades permitidas pelos géneros, por outra que estaria subjacente a todas elas (o incomensurável texto lírico do in­consciente) e que geraria estruturas de superfície minimamente previsí­veis (por exemplo o complexo de Édipo - estrutura profunda - faz com que nos mais diversos discursos - nas mais diversas estruturas de superfície - o pai do locutor ou do protagonista tenda a ser dado como ausente, por morte ou por outro motivo). É ao que nos conduz o sintomatologismo actual.

Mas as noções de «estrutura profunda» e «estrutura de superfície», como é sabido, estão envolvidas por uma crença polémica na existên­cia de “universais” linguísticos inatos que, inevitavelmente, entronca no terreno fértil da filosofia e da psicologia que vivam de especulações ociosas.

A associação entre recorrências universais na estrutura das línguas e a crença no inatismo é feita pelo próprio Chomsky. Num ensaio de 1975, ele explicita-a: “Mais intrigante, pelo menos para mim, é a possibilidade que o estudo da linguagem nos dá de desco­brirmos princípios abstractos que determinam a sua [da língua] estrutura e utilização, princípios esses que se apresentam universais por necessidade biológica e não apenas por mera causalidade histórica e que provêm de características mentais da espécie”.

Quer-nos parecer que a noção de “universais”, à qual se associa fortemente a de estrutura profunda, não será por si própria de recusar. A sua colocação na dependência de um inatismo insustentável em Psicologia é que a fragilizou.

A partir da ideia de que “o modo de aprendizagem decorre através da modificação duma organização estrutural já em funcionamento”, desenvolvida por Hubel e Wiesel em 1962  , e concordante com os trabalhos de Piaget, podemos concluir pela universalidade de certos tipos de conexões lógicas e linguísticas, estabelecidas antes por uma rede de relações imagísticas com as quais apercebemos o mundo . Chega-se a tais conexões a partir da relação entre o «eu» e o «mundo» no qual o «eu» ganha forma e toma sentido de si. O cérebro traz ape­nas algumas estruturas básicas (que a Psicologia do Desenvolvimento reconhece) que se vão aplicar, desenvolver e multiplicar em face dos estímulos exteriores (e do próprio corpo). Essas estruturas são tão simples que não se podem confundir com universais linguísticos, dizendo apenas respeito a conexões elementares na formação de imagens (é o caso, por exemplo, das noções de contraste e movimento). Elas organizam depois a orquestração das frases (e não é por acaso que o campo de maior alcance do generativismo é o da sintaxe), como sobre a organização dos livros, das histórias, dos pensamentos, das estrofes, dos episódios. Por isso podemos identificar “universais” sintagmáticos, não propria­mente linguísticos – no fundo, categorias de articulação (por contraste, por similaridade, por proximidade espacial nas suas variantes de en­caixe, coordenação, justaposição, etc.), utilizadas de forma muito pró­pria por cada um. Há, portanto, estruturas migratórias básicas mas ra­dicadas nas transacções recíprocas entre mundo e homem, não numa gra­má­tica humana inata, alheia ao meio que a desenvolve e a revolve, logo rígida.

Para além de não levar em devida conta os dados trazidos, não só pela Psicologia Experimental, ou pela Cognitiva, mas também pela Neurobiologia e pela Psicologia do Desenvolvimento, quer-nos parecer também que, quando sublinha as semelhanças entre os diversos povos no que diz respeito a uma aprendizagem e a um uso da língua com traços estruturais comuns, Chomsky não leva muito em conta os diversos fenómenos sociais (e, particularmente, os normativos) implicados no ensino, transmissão e aquisição das línguas maternas .

Não parece, portanto, necessário nem conveniente creditar com valores de verdade o inatismo insustentável de Chomsky para aceitar, enquanto conceitos operatórios, os de «estrutura profunda» e de «superfície». Não estamos, po­rém, no momento próprio para encetarmos uma discussão sobre tal as­sunto, nem nessas áreas de trabalho. Mas, como vimos, estamos pe­rante instrumentos que podem ser úteis à leitura das espécies literárias aparentadas com os 100 poemas e toda a lírica de M. António.

Levando em conta a pertinência de tais constructos, e a morosidade que nos colocaria uma dispersiva discussão sobre os «universais», tentaremos defini-los em termos “pragmáticos”: independentemente de, “na realidade das coisas”, haver ou não “universais”, ou uma premeditada “estrutura profunda” coberta por outra “superficial”, quando estamos perante uma obra poética, artificial, temos dois textos a ler. Um deles é o texto codificado, tal como se apresenta aos olhos de todos; o outro é o texto que resulta da descodificação levada a cabo por cada leitor , quer ela coincida ou não com um eventual “plano prévio” do autor. Este segundo texto é aquilo que, numa perspetiva criacionista e não chomsquiana, chamo de “estrutura profunda”. A “estrutura profunda” de um conjunto lírico – dada a organização racional do trabalho de leitura – resulta do ordenamento lógico dos fios semânticos que a descodificação das referências consiga estabelecer sobre o interior do «macro-texto» constituído por uma obra poética. Ela não está necessariamente “lá”, no livro, mas é exaurível a partir dele, num exercício de “abdução”, constituindo-se como um objecto teórico.

Esta ideia está, aliás, de acordo com o que propõem certos linguistas, ao reagirem às convicções chomsquianas sobre os “universais” e o inatismo deles. Claude Hagège sustenta, por exemplo, que os “univer­sais de forma não são, na realidade, universais das línguas, mas antes condições gerais de coerência da linguística, exigências de ordem epis­temológica”. Alerta-nos, em seguida, para o perigo de confundirmos “o processo com o objecto a que ele se aplica”, calculando inerente à língua o que é inerente ao seu estudo .

Na perspetiva de Hagège  os “universais” ou a “estrutura profunda” são conceitos de receção, de leitura, de pesquisa, mas não pertencem obrigatoriamente à definição do objecto em causa. É nesse sentido que utilizo aqui o sintagma “estrutura profunda”. Um sentido que me parece – como acima referi – natural numa concepção criacionista em que o sujeito e o objecto se recriam na relação de conhecimento.

Ao nível da “estrutura profunda” pode, pois, não haver diferença entre a leitura da lírica e a da narrativa. Utilizando os termos de Genette na “Introdução” ao Discurso da Narrativa , a «história» ou «diegese»  é sugerida tanto por um livro lírico quanto numa «ficção»; a narrativa, em sentido estrito, é que difere. Ou, mais profundamente, o estabelecimento de um contraste entre a sequência pela qual os acontecimentos são configurados  e a sequência em que teriam ocorrido e à qual chegamos por inferências e silogismos abdutivos.

A relação entre a narrativa em sentido estrito e a «diegese», por um lado, e a relação entre a disposição lírica e a mesma «diegese», por outro, é que permitem estabelecer as diferenças genológicas que pro­curei trabalhar neste capítulo e, parcialmente, no anterior. Apesar dos contrastes entre narrativa e diegese, no género narrativo a “estrutura profunda” (aquela que para o leitor seria a sequência «natu­ral» dos acontecimentos pressupostos) e a “de superfície” pos­suem as duas em comum o facto de se apresentarem sob uma sequência explícita e nítida (quando não há miscigenação genológica estrutura­nte), sugerindo critérios racionais de ordenação. No género lírico, só a “estrutura profunda” é planificada, sequenciando-se a de superfície por sugestão de impulsos emo­cionais espontâneos, ou seja, caotizando-se a de superfície.

A dependência em que, no nosso trabalho, fica ainda assim a “estrutura profunda”, ou de receção, em face daquilo a que Fernando Belo chama o “sintagmatismo de argumentação”, ao invés de perturbar a apropriação do conceito, confirma a sua oportunidade, visto que a nossa leitura – concebida a lírica enquanto obra e não enquanto soma aleatória de poemas – é sintagmática (evitando embora sê-lo em absoluto). E se, em linguística, fica por resolver o problema da sinonímia quando nos cingimos à explicação e aos pressupostos transformacionais, na leitura literária a base de tais problemas é removida pela facto de o modo, ou a articulação, ser tão significativo quanto o paradigma. Se é dilemático, em linguística transformacional, que duas estruturas diferentes signifiquem o mesmo – portanto, que duas ordens ao nível sintagmático possam corresponder a uma só ordem ao nível paradigmático – isso em literatura fica resolvido pelo facto de cada ordem sintáctica ter, por si só e em si só, um significado literário com implicações próprias ao nível paradigmático. Duas frases de idêntico significado são, na palavra poética, impossíveis. Não é indiferente à leitura poética dizer-se “os muros vibram sob a sua voz” ou “a sua voz faz vibrar os muros”. No primeiro caso foca-se primeiro o efeito, no segundo foca-se primeiro a causa. Isso pode implicar que no primeiro caso o poeta privilegia um critério objectualista e analítico de composição, enquanto no segundo se deixa o domínio ao personalismo (a voz), e à designação dos objectos na dependência das causas.

Para a leitura poética é tão importante uma entrada semântica quanto a sua exacta colocação numa cadeia de significantes e significados – e veremos na conclusão desta obra como, por exemplo, se acordam os paradigmas da crioulidade à sintaxe típica do género lírico, ou à sintaxe justapositiva e elíptica dos versos. Aqui não tem, pois, cabimento a primazia da semântica ou a da sintaxe , a do paradigma ou a da localização, porque não se pode compreender ou chegar a qualquer dos eixos sem levar em conta o outro, dada a sua concomitância, sustentada sobre o carácter necessário das articulações sintácticas entre paradigmas ou “elementos” e o carácter paradigmático de cada articulação.

 

Distinções e proximidades entre espécies «híbridas» e a lírica dos 100 poemas

 

Aquilo a que podíamos dar o nome de distribuição fragmentária da diegese, nas composições líricas, foi igualmente observado por Massaud Moisés , ao notar, expressivisticamente, “a tendência do «eu» para abarcar ou deformar os objectos do mundo exterior” (tendência observável nos 100 poemas, por exemplo quando o locutor fantasmagoriza o interlocutor [a amada], ambiguizando ou duplicando uma suposta identidade por projecção de um rosto do passado sobre o que nos é dado como sendo o do presente, ou equivalendo ao do pre­sente, suscitando no leitor a dúvida sobre a “realidade”). A estrutura lí­rica “de superfície” é que permite, pela fragmentada exposição da diegese que recomporemos numa escala de receção, manter a desfi­gu­ra­ção ou duplicação do rosto escrito, sustentando uma ambi­guidade que o tratamento narrativo da superfície acabaria sempre por esclarecer.

Para tal desfiguração – não só do tempo mas agora dos próprios objectos e seres em jogo – concorre por igual uma outra característica, normalmente atribuída à lírica no século XX, e expressa por Massaud Moisés nestes termos: “a ambiguidade do conteúdo expresso e da linguagem nele utilizada”. Esta característica será apontada ao «auto-retrato» na teorização de Beaujour, e aos escritos “intimistas” estudados por A. Girard, demonstrando, mais uma vez, a proximidade entre a lírica e tais espécies, ora apresentadas de acordo com os códigos narrativos, ora apresentadas de acordo com os do ensaio, ora com os da lírica.

Se a lírica de M. António apresenta uma maioria quantitativa de poe­mas em que predomina um discurso modelado por critérios líricos de composição, critérios do segundo tipo de lírica inicialmente estabe­le­cido mais atrás; e se nela encontramos afinidades com as espécies que se aparentam à lírica de segundo tipo (“autobiográfica”, por assim dizer); é porque estas espécies e esta poesia (de M. António) são híbridas, oscilando entre modelos genológicos diversos, num esforço de cruzamento que obscurece a sua classificação e parece acordar-se aos postulados genológicos românticos, modernistas e post-modernistas .

A aparência de um “plano prévio”, como veremos, não será por tal motivo suficiente para distinguir a lírica autobiográfica de certos es­cri­tos “memorialísticos”, “diarísticos”, ou de certos «auto-retratos». Ain­da que a distinga das autobiografias e das memórias autobiográficas.

 

Os traços distintivos do «Auto-retrato» face à autobio­grafia, e os 100 poemas

A caracterização de uma sucessividade própria – favorecendo a am­bi­guidade e contribuindo para a desfiguração e anacronização dos objec­tos – é também assumida por Michel Beaujour, que visa com ela distinguir «auto-retrato» de autobiografia. No seu estudo sobre a “retórica do auto-retrato”, diz o autor que a diferença entre as duas espécies é a diferença entre narratividade e “dispersão” – lição que tira de Lejeune . A narratividade e a dispersão equivalem na sua gramáti­ca às designações de sequência cronológica e de sequência tópica – podendo esta subdividir-se em lógica ou temática.

Não concordo em que o auto-retrato se ordene lógica  ou tematicamente , por oposição à ordem cronológica autobiográfica . A ordem cronológica – reportada à diegese – está em qualquer narrativa sob a dependência de uma outra ordem – a do discurso – determinada por critérios que podem incluir o que Beaujour denomina lógico e temático.

Genette, nas Figures III, nomeou diversos anacronismos gerados numa altercação de sucessividades que, pelo menos em certos casos, pode ser explicada pela predominância de uma organização tópica,  lógica, ou temática, sobre a cronológica. O seu trabalho não surge sozinho. Ao longo dos anos 60 e 70 a crítica literária, como afiança Ricoeur, descronologizou a análise narrativa, remetendo o “aspecto cronológico somente à estrutura de superfície”. Quer no âmbito desse trabalho, quer no âmbito da proposta abrangente de Ricoeur – procurando conjugar o “aspecto cronológico” ao “configuracional” – não há lugar para o argumento que Beaujour levanta contra Lejeune para firmar o seu “novo género”.

Lejeune que também, num trabalho sobre Sartre , concita o facto de a ordem da autobiografia não ser necessariamente nem fundamental­mente cronológica – podendo ser o que ele chama de “dialéctica”  . Não sabemos se conhecendo este passo, Michel Beaujour faz uma ligeira crítica ao alargamento do conceito de autobiografia em Lejeune, numa passagem que me parece, mesmo por si própria, mesmo se a considerarmos fora de qualquer contexto para além daquele que cita, pouco sólida. Porque Lejeune, ao admitir a ordem dialéctica sobre­pos­ta à cronológica, não faz mais do que assumir uma das consequências da integração genológica da autobiografia na narrativa. Para além disso, como lembra o autor do “pacto autobiográfico”, a cronologia é já, em qualquer narrativa, uma interpretação , e uma interpretação não é uma cronologização, antes se aproximando da ordem que o autor intitula “dialéctica” ou “tópica”.

A crítica de Beaujour a Lejeune peca, também, por não levar em conta o trabalho sobre Sartre, onde fica ultrapassada a razão pela qual o autor de Miroirs d’Encre postula a “existência de um outro género” (p. 8). O trabalho sobre Sartre mostra que Lejeune não realinhou a sua ideia de autobiografia a partir da leitura de Leiris, como insinua Beaujour, porque ele prova-nos que a estrutura da própria narrativa, já atrás o disse, não é necessariamente cronológica, e ao fazê-lo evita a criação de mais um “género”, que se legitimaria pela alegação de que o «auto-retrato» não é narrativo, por não ser condicionada a sua estrutura à organização cronológica das referências. A identifica­ção entre cronologia e narrativa, que parece típica do senso comum, não resiste a uma análise cuidada do género.

Por outro lado, nada obriga o que Beaujour designa como auto-retrato a ter uma sucessão lógica ou tópica imediatamente apreensível, ou ex­plícita. Se for verdade que o «auto-retrato» é uma espécie literária, e uma espécie literária não-narrativa porque não se organiza cronologi­camente, então teremos de reconhecer que os 100 poemas não cons­ti­tuem um auto-retrato mas uma autobiografia – e, portanto, uma nar­ra­tiva, dado que são organizados cronologicamente. Como até um des­prevenido leitor observará, não é exactamente assim que pode­re­mos definir essa antologia, apesar da sua epidérmi­ca ordem cronológica.

Para contrariar os argumentos de Lejeune parece-me também insufi­ciente a afirmação do autor segundo a qual uma narração, por muito “desarrumada” (brouillée) que pareça, não deixa de se definir cronolo­gicamente, “pois que a desarrumação (brouillage) da récita convida sempre a «construir»-lhe a cronologia”. O pressuposto de Beaujour há-de ser fundamental para a leitura dos 100 poemas – cuja definição não é, propriamente, a de uma autobiografia no sentido narrativo que o en­saísta francês dá à palavra. Mas o contra-argumento não serve, em nosso entender, porque ele se pode aplicar inversamente à organização lógica ou temática dada como típica do género que pretende instituir. Isso é viável na medida em que o desenvolvimento ou a ordenação de um discurso por “lugares” (no sentido geográfico e retórico, mas sem­pre tópicos, palavra que será fundamental para compreender os Mi­roirs d’Encre ) permite igualmente reorganizar ou organizar uma cronologização das referências, tanto quanto uma “récita” pode ser “desarrumada”, relativamente à tábua cronológica, por motivos dialéc­ticos ou temáticos. Parece-me que a diferença não reside na pos­si­bi­li­dade de cronologização do discurso, mas na sugestão de uma estrutura formal aberta para as espécies líricas, e de uma outra “prévia”, ou fechada, no caso das espécies narrativas, mantendo-se neste nível pertinente a destrinça feita acima. O problema é que o «auto-retrato» – como foi teorizado por Beaujour – lacunarmente não implica a existência de um ou de outro tipo de “estrutura de superfície”.

Isso acontece por causa da conotação, promovida pelo crítico francês, entre ordem tópica e «auto-retrato», por um lado, e or­dem cronológica e narrativa por outro. Beaujour lembra, a propósito, a diferença entre “memória abstracta” e “concreta”, feita por Gusdorf em Memóire et Personne. A primeira – que aproximo do discurso narrativo – reorganiza a segunda, ancorada no “verdadeiro” fluir dos acontecimentos. Ora, a reorganização do fluir “espontâneo” numa ordem sequencial em função do significado que ela terá – como expõe Gusdorf em La Découverte de Soi – é conduzida por uma lógica determinadora da ordem de exposição dos tópicos e da própria selecção dos motivos, ou seja, que é também ela tópica (temática) e dialécti­ca, mas não cronológica no sentido estrito.

A diferença entre auto-retrato e autobiografia fundamenta-se muitas vezes na conotação da primeira dessas espécies com a utopia, ou a construção de um discurso utópico .

Morfológica e etimologicamente, «u-topia» remete-nos para uma localização extra-espacial, figurada na ilha de Thomas Morus e na dos Amores, por exemplo. O episódio camoniano da Ilha dos Amores é exemplar para imaginarmos como se concretiza literariamente a representação da uto­pia. Após a viagem terminada, estava “laçado” o mundo, cumprido o trabalho (“Deus quis que a terra fosse toda uma”, disse Pessoa na Mensagem), e, portanto, materializara-se a noção de  totalidade do es­paço. É quando essa totalidade está preenchida, descrita, quando se inicia o regresso (que sentido fará o regresso?, para onde se regressa quando se vem de uma totalidade?), que os nautas encontram uma ilha que se move, ou seja, um lugar isolado dos outros e inidentificável no espaço global (no mapa-múndi), que acabava de ser topografado, por não ser possível dar dele uma referência fixa. A figura do movimento permite modelizar um sítio que não está no espaço, ou seja, transforma a ilha num não-lugar, numa «u-topia».

Nessa medida, o conceito de utopia não é pertinente para situarmos os 100 poemas, visto que a mapeação dos referentes é pedida para a descodificação do eventual significado de toda a lírica do autor, como verificaremos a partir do Cp. III.

Na definição de Beaujour, porém, a “utopia” típica e distintiva dos au­to-retratos consiste em fotografar os lugares por ângulos “in­ti­mistas”, isolando-os da sua realidade extra-textual. Tal visionamento recorda a definição trazida por António Quadros à análise que faz do “memorialismo subjectivista” de Ruben A., que lhe permitiria atingir “zonas mais profundas de intimidade” e lhe determinaria o carácter tipicamente fragmentário.

Trata-se de algo que se pode passar também numa narrativa, afigurando-se que, a esse nível, a diferença entre auto­biografia e auto-retrato pode ser de grau e não de natureza. Tal processo de “intimização” ou liricização da narrativa, no campo da lírica, terá sido levado ao extremo, na literatura portuguesa, com a Mensagem, de Fernando Pessoa (que narrativiza e dramatiza as personagens pela mimetização da sua “intimidade”, ou da “intimidade” do autor com elas), a Jornada de Cristóvão de Távora, de João Miguel Fernandes Jorge (para o concernente ao que poderíamos mais estritamente chamar a crónica íntima ou intimista), ou as Lembranças para S. Tomé e Príncipe (no que diz respeito à “intimização” de mo­delos descritivos). No caso da Literatura Brasileira, Jorge de Lima aplicou o mesmo processo na sequência «Anunciação e Encontro em  Mira-Celi», e na Invenção de Orfeu  . Na literatura angolana, uma obra como as Memórias e Epitáfios, de Mário António, coloca-nos perante a dúvida sobre a sua localização no espectro genológico precisamente por causa da desarrumação provocada pela dominância de traços e tópicos “íntimos” sobre o modelo da narração ou do ensaio (esse é, de resto, o artifício carimbado por M. António que mais se aproxima do que nos Miroirs d’encre é visto como «auto-retrato»).

Na semantização da palavra «utopia» promovida por Beaujour, a aproximação entre auto-retrato e utopia só pode ser parcialmente aplicada aos 100 poemas, colocando-os ainda assim próximo dessa espécie híbrida, visto que muitas vezes eles isolam uma parte da paisagem, retratando-a por traços “íntimos”. Algumas observações aconselham-nos, porém, a ter cautela nesta aproximação genológica.

A topologia de que fala Beaujour para o auto-retrato – ao conotar a es­pécie sobre que se centra com uma “lógica espacial” – é uma «topo-lo­gia» (p. 34), em que a noção de espaço se desloca ou ambiguiza. Tra­ta-se de uma lógica “dos lugares”, mas antes do mais dos lugares do discurso, dos «topoi» no sentido retórico da palavra . O espaço dessa lógica é, portanto, o da organização do pensamento por temas ou mo­tivos recorrentes – se passarmos para termos estritamente literários.

Ora, se pudermos falar numa «topo-logia» nos 100 poemas, a lógica do espaço tem aí uma significação diferente, estrita, como veremos no capítulo III e nos dois que se lhe seguem. A antologia não apresenta uma organização tópica (dos poemas e da sua conjunção), como toda a poesia lírica em verso assinada por M. António, apesar de desenvolver o seu eixo semântico pela espacialização do motivo central que é o autor e, portanto, «topo-lógica-mente».

Este facto permite-nos distinguir o «auto-retrato» – tal como o define Beaujour – da lírica autobiográfica da antologia de M. António, na me­dida em que ela mimetiza a dispersividade espacial das «memórias», ou daquilo que Gusdorf chamaria a “memória concreta”, nos seus fluxos e refluxos. Os 100 poemas não estão, portanto, subordinados a uma sequência discursiva condicio­nada pela cronologia nítida e civil dos acontecimentos referenciados (se não atribuirmos aos poemas a categoria de «acontecimentos»), mas também não se apresentam sequenciados por uma organização tópica evidente (no sentido retórico – e de Beaujour).

Outra diferença, entre a lírica dos 100 poemas e a teorização do «auto-retrato», reside no tipo de conjugação das unidades (os poemas ou os capítulos).

Nos Miroirs d’Encre ficam associadas a multiplicação analógica e não-centrada dos hai-kais e a inventariação tópica que se pretende as­sociar à teorização da nova espécie, e que organizaria a sua sequência . Parece-me que a referida conotação resulta obscura e polémica.

Em primeiro lugar, há diferenças de género que perturbam a comparação: os hai-kais são curtos poemas analógicos e com regras miniaturialmente determinadas; os «specula», que estariam (com outras espécies) na estrutura profunda do auto-retrato, determinando a de superfície enquanto listagens de pecados e virtudes acompanhadas de «exempla», se têm uma sequência denominada pelo teórico francês como “lógica” ou “dialéctica”, não permitem uma organização estritamente analógica do discurso – na medida em que analogia se oponha a lógica e a dialéctica, oposição subjacente ao livro em causa.

Por outro lado, o auto-retrato visionado por Beaujour imitaria a transcrição dos “tópicos de vida” inscritos numa dada memória (e, por isso, numa biografia). O discurso típico dessa espécie constitui por consequência uma «re-flexão» (diálogo do enunciador com os tópicos do enunciado) ou um «dia-logo» (fictício) com um interlocutor (fic­tí­cio, íntimo, simulação ou duplicação do próprio enunciador en­quanto personagem textual). Trata-se, em qualquer dos casos, de uma enun­ciação tópica personalizada.

Os hai-kais – espécie aforística e analógica, de reduzido (e rigidamente condicionado) número de palavras – não possuem obrigatoriamente, ou não representam tendencialmente, uma enunciação pessoal, não deixam de ser hai-kais quando a não registam. O que significa ser indiferente à sua estrutura a presença textual de alguém por ela desi­gnado como pessoa ou como autor. Daí que se tornem detectáveis diversas ocorrências de hai-kais impessoais, de estrutura temática (na parte estrutural da definição com que Hernadi erige a teorização do modo – que não é, portanto, um género).

Se nohai-kais a ideia de pessoa não é fundamental, enquanto nos «auto-retratos» é fundamental e estruturante, a ordem analógica de uns será diferente da ordem lógica ou tópica dos outros, ainda que esta última fosse também analógica. Nesses aspetos (o da multiplicação analógica e o da impessoalidade ou pessoalidade das enunciações), os 100 poemas situam-se de uma forma peculiar: neles é fundamental a noção de pessoa (até porque tratam da formação e figuração da ideia de sujeito), mas as personagens principais do diálogo enunciativo (o locutor e o interlocutor a quem – quase sempre amorosamente – se dirige) podem ver-se multiplicadas em outros, quer através de projecções analogicamente fundadas, quer através da intersecção entre as figuras do presente da enunciação e outras passadas, ou o que foi o autor no passado. Não sendo impessoal, esta lírica adquire portanto uma personalização itineran­te, fundada em analogias e intersecções que indiretamente a aproximam dos hai-kais e a distanciam da teoria do «auto-retrato», pois abalam a noção unívoca de pessoa ainda quando dessa ficção dependam.

Outro ponto, em que a teorização dos Miroirs d’Encre se diferencia da descrição que podemos fazer dos 100 poemas, é aquele que associa o «auto-retrato» ao “tipo de texto em que o leitor é ficticiamente colo­ca­do em posição de sujeito da enunciação, porque ele assiste à elabo­ração do texto. É então que a presença em si da enunciação, fundadora do auto-retrato, suscita a virtualidade duma presença em si do leitor”.

Beaujour conclui desta forma um capítulo dedicado à “memória intratextual”. A noção de memória intratextual, e o modo como ela é trabalhada nesse capítulo, suscitam-nos algum parentesco entre o «auto-retrato» e os 100 poemas. Mas os processos aí descritos, de re­corrências intra-textuais, funcionam em qualquer obra ou grupo de o­bras organizados ou organizáveis (pela leitura) enquanto macro-tex­tos – como sucede com a lírica de M. António (será essa uma das teses que iremos experimentar). Mesmo o conceito de «macro-texto» talvez não possa formar-se sem a verificação, nas obras que o suscitam, de um sistema de recorrências que dá corpo à noção de «memória intratextual», a qual, enquanto leitura e releitura que num texto se faz do próprio discur­so, é notada por Alain Girard para o «diário íntimo» .

A noção de memória intra-textual não distingue, pois, o «auto-retrato» de outras espécies que lhe estão próximas, e nem mesmo de algumas que lhe estejam longínquas. E, se a noção de «memória intratextual» é pertinente para estudarmos a lírica assinada por M. António, a obrigatoriedade de o «auto-retrato» se fundar na “presença em si do leitor”, tal como ela foi teorizada por Beaujour, afasta-nos da proximidade entre essa espécie e a antologia do ABC  .

É-nos finalmente útil a reflexão de Beaujour quando ele afirma que o auto-retrato “tenta constituir a sua coerência segundo um sistema de evocações, de reincidências, de sobreposição ou de correspondências entre elementos homólogos e substituíveis, de tal maneira que a sua principal aparência é aquela do descontínuo, da justaposição ana­cró­nica, da montagem, que se opõe à sintagmática de uma narração”. Daí que “a unidade do auto-retrato não seja dada, pois que podemos sem­pre juntar elementos homólogos ao paradigma, enquanto que aquela da autobiografia está já implícita na escolha do curriculum vitae”. É precisamente como um curriculum vitae poético a estrutura dos 100 poemas: à indicação de cada ano seguem-se os trabalhos realizados nesse ano; tal como nos curricula isso permite mostrar a progressão (se a houver) numa determinada carreira ou área do saber, assim também na antologia essa organização permite mostrar o percurso poético do “autor”, narrativizando desde logo esta figura central.

Os termos utilizados por Beaujour lembram, sintomaticamente, o que Tomachevski diz da Lírica ao falar em “colateralidade”. Por isso afirma Clara Rocha que, da caracterização anotada por Beaujour para o auto-retrato, se conclui pela existência de “parentesco” dessa espécie “com o poético” (o género lírico, na acepção da autora), “e não é por acaso que certos autores optam pela expressão poética quando se trata de fazer o seu auto-retrato”.

Mantenho, no entanto, que a diferença entre autobiografia e auto-retrato não está na aparência que o ensaísta francês atribui a uma e outro, mas na estruturação semântica superficial das duas espécies: a primeira organizada em função de um “fio” narrativo, a segunda em função de uma listagem de itens “espaciais” que loca­li­zam a personagem autor nos códigos morais e culturais do mundo em que se retrata – independentemente de essa localização nos deixar pis­tas que a tornam cronologizável.

Aquilo que me parece ser a estruturação semântica profunda dos 100 poemas aproxima-se mais da autobiografia, parecendo organizar-se em torno de uma linha de sentido progressiva, que é a fornecida pela formação poética da personalidade do “autor”. Essa linha de sentido é, expressivisticamente, reconhecida por Weintraub como o guia do “autêntico e genuíno esforço autobiográfico”. A distância temporal e mental que o crítico detecta nas narrativas autobiográfi­cas – acor­dando-se à análise de Gusdorf – é também uma condicionante de muitos dos 100 poemas. Ela permitirá ao texto gerar no leitor uma impressão de saudade e de cisão, ao mesmo tempo unindo e separando o presente e o passado, ao mesmo tempo sustentando a visão lúcida, amadurecida, que o sujeito-locutor possui da ingenuidade que lhe determinara a infância, e uma retrospectiva modeladora de uma an­te­rioridade já mítica. A antologia assume portanto um carácter híbrido, de que a duplicidade «sequência cronológica / sequência caótica» nos dá sinal inequívoco.

 

O «Diário íntimo» e a lírica dos 100 poemas

A desnarrativização do conjunto constituído por cada ano, imposta pelos preceitos do género, aproxima-o mais, não de um eventual «auto-retrato», mas de algumas características do que a crítica francesa habitualmente chama «diário íntimo» – logo no adjectivo se dando o sentido da deslocação que o conceito arrasta a partir da ideia de “diário”.

Alain Girard, que em 1963 publicou um extenso estudo expressivo onde faz uma leitura clínica do tema , aponta várias características que podem ser vistas como relativas à composição da figura do “autor” nessa espécie de escritos. Embora a interpretação das recorrências seja sempre projetiva, elas são detectadas enquanto elementos textuais, enquanto ocorrências repetidas na caracterização que as palavras fazem do que apresentam como seus sujeitos. Isso permite-nos alhearmo-nos da interpretação clínica e projetiva, e, simultaneamente, verificarmos as coincidências e diferenças entre os tópicos verbais, que Girard identifica na imagem do sujeito-locutor do «diário íntimo», e os tópicos literários a que recorre a lírica de M. António, para figurar o que nos dá como seu autor.

Estas recorrências estão resumidas nos três sub-capítulos do Cp. I da parte III da obra do estudioso francês: a «Procura de Si», a «Perda de Si» e a «Conquista de Si». A «Procura de Si» e a «Conquista de Si» recordam-nos os ensaios de António Quadros sobre a autobiografia e o memorialismo. A «Perda de Si» é que não se explicitava nesses escri­tos como obrigatória condição dos mesmos – embora esteja implícita no facto de alguém se procurar.

Como veremos ao longo do Cp. III, a lírica dos 100 poemas é reorganizável a partir da sua leitura tripartida, precisamente, na fase da “procura de si” (por exemplo feita pela sugestão genealógica e pelo constante retorno, textual e saudoso, à infância e à adolescência), na fase da perda de si (representada na passagem da adolescência à idade madura, sob a figura de uma cisão entre a identidade anterior e a actual), e na fase da conquista de si (que se opera através da saudosa recomposição da personalidade inicial, concretizada na composição dos poemas, ou “sonhos”).

Os diversos itens de que se compõe cada sub-capítulo da obra de Girard podem comparar-se igualmente com a leitura que vamos extrair aos 100 poemas. Passo a enumerá-los.

O facto de quase todos os diários estudados por Girard começarem na adolescência dos autores , encontra correspondência no facto de o passado pessoal que marca a identidade do sujeito (e pelo qual se inicia a sua história) ser também o que se reporta à adolescência.

O intimismo “anti-heróico”, acompanhado pela inquietação consigo próprio , é assumidamente uma das características do retrato do “autor”, estabelecida com clareza e intensidade numa composição cujo título é significativo: «Anti-Heróica»Só dois poemas, a meu ver, fazem a excepção ou a diferença para o retrato “canónico” do anti-herói no «diário íntimo»: «Até se Revoltarem os Escravos» e «Dizem-te Bela». O primeiro desses poemas é, no entanto, único – pela sua estrutura formal e semântica – em toda a antologia; o segundo é seguido por outro que lhe faz o contraponto pessoal e anti-heróico («Para Luanda»), como se a fidelidade ao modelo exigisse o imediato retorno a tal tópico: “Sinto a tristeza de um amor rompido / As máscaras coladas sobre os rostos / Que de ti fazem mãe estranha e só / De mim, filho de quem esqueceste o choro”. Quer dizer que essas duas ocorrências não são significativas, pelo menos de modo a destituírem o retrato intimista e anti-heróico traçado ao longo dos restantes versos.

A construção de um mundo interior vasto, ou rico, ou intenso, tão válido ou mais que o “exterior” – e a marca de solidão e ilhamento que acompanha essa “inte­rio­ri­dade”  – são também tópicos largamente detectáveis nos 100 poemas, onde a cisão, no «eu» e entre o «eu» e o mundo, origina todo o processo identitário posterior, e orienta os «ilhamentos» e «cruzamentos», que definem as relações entre o sujeito-locutor e as referências dadas como contextuais, ao longo do que chamaremos os “livros de itinerância”. A consequente projecção dos “estados de alma” na paisagem, por igual apontada aos “diários íntimos” por Girard , é também recorrente nesta lírica, onde a figura da projecção é generalizada a diversos níveis da construção poética.

A afirmação de sinceridade, e a de uma expressão por inteiro, conjugadas à sensação de que a imagem social não corresponde à real (interior) , estão presentes logo desde a “Justificação” inicial da antologia, como ainda neste capítulo veremos. Elas marcam também o que nos versos é dado como a função da poesia na relação pessoal com o mundo: a de promover o reconhecimento da identidade verdadeira (a interior) na sociedade onde o sujeito público intervém e vive. Esta função é, por igual, característica dos escritos intimistas, uma vez que é por eles que sabemos que a imagem social de alguém não corresponde à sua imagem “real”, ou íntima.

infelicidade, sobretudo no amor, e a compensadora visão da glória, a que se refere o item “A Felicidade e a Glória” do trabalho de Gi­rard, apresentam-se também na antologia, embora com uma frequência diversa: muito mais comum a infelicidade que a compensado­ra menção à glória (As “grosses têtes que me folhearam”) .

Passando à secção dedicada à «Perda de Si», o item referente ao “autismo e narcisismo”  evoca a teorização do «eu-omphalos», feita por António Quadros nos ensaios dedica­dos à autobiografia e ao memorialismo, inseridos em Ficção e Espírito. É inevitável, em qualquer texto centrado na figuração do autor, pelo menos o narcisismo, porque ele tem de imitar um «eu» olhando para «si». E, como o discurso tende a voltar-se sobre a sua primeira referência, ele tende a voltar-se sobre si próprio – facto de que a “memória intratextual” é apenas uma das consequências, outra sendo a inflexão autista que acompanha a tendência autorrecursiva dos textos subjetivos, juntamente com a marca de estranheza de si próprio que se cola ao «eu» quando ele se procura integrar num mundo circundante e novo . O “autismo” (ou seja, a patologia que suspende o circuito estímulo-resposta quando o estímulo é “exterior”) associa-se na antologia à figura da cisão (trabalhada sobretudo no Cp. IV desta tese), e, nos que chamarei «livros de itinerância», coloca-se na dependência da figura da viagem, da inserção num ambiente inteiramente novo, no qual irão procurar-se elementos oriundos do «ovo» inicial (o que pretendo mostrar ao longo do Cp. V da tese).

A consequente relação do “intimista” com o corpo, contraditória quan­do não dialéctica, assalta igualmente a lírica de M. António, como se chega a explicitar no “corpo prisioneiro” que acompanha o “sonho, à margem”, e o povoamento da “paisagem”, em Rosto de Europa ; no “Corpo absoluto”, também de Rosto de Europa ; ou no “corpo / Alheio ao coração”, de Coração transplantado .

Quanto aos 100 poemas, as 52 ocorrências da palavra já seriam por si significativas da importância dos seus significados. Mas o corpo surge ainda fortemente associado à morte , à identidade  (quer definindo os pescadores dos dongos, quer porque só “morto” o corpo “será teu” [da mãe, na «Carta do Afogado»], quer no “corpo que perdi / Ou perverti”, juntamente com a identidade primeira, como se diz em «Do Amor Reencontrado»). O corpo é também associado à identidade enquanto “guarda” algo (v. nota seguinte), ou enquanto “corporiza” um ambiente em que se insere, como sucede por exemplo em «Setembro» (p. 149), ou em «Onde uma vez Tocaste» (p. 153), onde a fusão corpo-ambiente é oposta às marcas da guerra ou da violência. Ele será também associado à preservação, quer da vida (como sucede nos poemas de amor e em «Retrato»), quer, simplesmente, de algo que ele “guarda”  ou “aguarda”, ainda quando fugidio . A sua figuração é, portanto, inseparável da ideia de pessoa e da pessoa do locutor, tanto quanto dos interlocutores com que, de quando em quando, dialoga. Para além disso, ela abre a porta de comunicação (por vezes frustrada) do «eu» com o mundo, tornando-se dessa forma fun­damental para a própria noção de personalidade e do seu equilíbrio ou desequilíbrio ao longo da cronologia povoada pelos poemas.

Mas também no corpo se inscreve o “sentimento de fracasso”, que afectará inicialmente as relações amorosas do sujeito-locutor , e, ainda, a sua configuração enquanto ser social  . Coincidentemente, Gi­rard afirma que “este sentimento colore todas as páginas dos diários íntimos e explica a sua atmosfera dominante” – o que leva à leitura clínica (já referida no Cp. I) dos “diários” como “mecanismos de compensação”. A par, a “consciência de culpa” assiste igual­mente à composição do «eu» nos 100 poemas e nos autores “intimistas”.

Este sentimento de fracasso é também situado, na interpretação ex­pressivista e de cariz psicológico do autor, ao nível de causa das constantes rememorações a que acima fiz alusão, quando falava em “memória intratextual”. A repetida presença destas rememorações, e o facto de estudarmos ao longo de toda a lírica do autor os diversos papéis e tipos da reiteração, levam-nos a dis­pen­sar­mos neste passo um fastidioso rol de comprovativos da frequência do recurso (retórico, recorda Beaujour) na antologia do ABC. O constante retorno só indiretamente se articulará, porém, nos sentidos da antologia, ao “fracasso”, conjugando-se antes ao aprovei­tamento das definições de saudade e à recuperadora uni­versalização do crioulo .

Fundamental no desenho da figura do autor, nos 100 poemas e na líri­ca “itinerante”, é, como nos “Diários íntimos”, a “experiência sempre renovada da descontinuidade dos estados de consciência e do esboroar (esmigalhar, “émiettement”) do tempo”, experiência que traz igual­men­te à lírica do autor e aos 100 poemas o “desdobramento da personali­dade”, apontado expressivisticamente por Girard  em registos pessoais.

Quanto à referência à necessidade de escrever um diário, exposta no início da secção dedicada à “conquista de si”, tal como é definida por Girard, é um tópico só possível numa abordagem expressivista e clínica. Ainda quando a irregularidade e o retorno ao texto sejam tam­bém constantes (inevitáveis: ninguém é regular, muito menos quando cria) na cronologizada lírica da antologia, notando-se mais a irre­gu­laridade pela distribuição de poemas por anos (um deles não possuiria qualquer poema, por exemplo, outro apenas um, e outros muitos).

No que diz respeito às funções “terapêuticas”, “éticas” e “religiosas” citadas por Girard , elas também não são aplicáveis a um estudo literário dos 100 poemas, ainda quando seja possível apontar aí a imitação de diálogos “do eu consigo próprio”, que se aproximam dos “exames de consciência”, ou do que os psicólogos possam descrever como mecanismos de compensação; ou, ainda, quando seja possível encontrar expressivisticamente uma correspondência para a “função religiosa” nas referências às religiões em jogo no “mundo” sugerido a partir dos versos. Também a “função estética”, vista como é pelo prisma projetivo, não se torna pertinente ao tipo de estudo que desejamos desenvolver.

A “conquista de si”, alheia às escalas dos casos clínicos, está presente nos 100 poemas na medida em que eles representam o processo através do qual um sujeito readquire, em circunstâncias adversas, o controle (parcial embora) da sua identidade. Isso é estudado no Cp. III, quando nos debruçarmos sobre a relação entre a figura do pai, a semantização do par “sonho/poesia” e o processo identificador (portanto, configurador) do sujeito.

Uma função, para o «diário íntimo», idêntica à que tem a poesia para o locutor da antologia do ABC, no que diz respeito à “conquista de si”, é indicada por outro livro expressivista, o de Gusdorf . Citando Amiel, ele recorda-nos que o diário nos conduz “da dispersão à possessão de nós mesmos”. Para Amiel, porém, o “diário” não é, por escolha metodológica, uma “introspec­ção” mas uma “reformulação de si”, ou seja, instrumento moral e clínico através do qual a pessoa se regenera civicamente.

As funções clínica e moral do diário supõem, no entanto, uma activi­dade criativa por parte do seu relator, que se modifica através dela. O retorno criativo ao passado, para modificar ou influenciar o curso da personalidade no presente, será também lisível na configuração que tenho em mente, como verificaremos ao longo do Cp. IV.

Feitas estas ressalvas, e acautelando em propósitos críticos o estudo vasto e perspicaz de Alain Girard, ressalta para a leitura um relevo do locutor dos “diários íntimos” muito próximo da estatuária psicológica elaborada ao longo dos 100 poemas, e em toda a lírica assinada por M. António. Trata-se de uma coincidência que permite, com maior nitidez, enquadrar a antologia genologicamente, no que diz respeito ao problema central da configuração do locutor no texto.

Um enquadramento reforçado pela indexação cronológica dos instantes poéticos, equiparável à do “diário” – que indica datas mais particu­lari­zadas (a hora, por exemplo).

 

Estabelecimento da hipótese

Ao nível da conjunção dos poemas entre si, sem separadores temporais, a situação genológica do livro já é mais problemática: ele não deixa de possibilitar o estabelecimento de um “fio” narrativo, como a autobiografia, mas também não o apresenta explicitamente, aderindo à aparência “dispersa” dos «diários» e de algumas «memórias». Apenas imposições genológicas mais técnicas, oriundas da lírica (o uso predominante de versos, o modelo formal – ou seja, os poemas), afastam claramente esta obra de um «diário íntimo», permitindo-lhe de quando em quando alterar o “tom confessional” e a aparência do “diálogo do eu consigo próprio”.

Podemos pois, em resumo e por conclusão, afirmar que, das diversas espécies de discurso literário subjetivo estudadas, as que mais nos interessam localizam-se na intersecção da narrativa com a lírica. Destas, as mais próximas são o «diário íntimo», o memorialismo e, muito parcialmente, o «auto-retrato». Elas afastam-se da autobiografia por não seguirem o símile narrativo, e aproximam-se dela por construírem o sujeito em função de uma referência constituída pelo percurso biográfico que é dado como seu até ao momento em que a obra fica pronta, a obra de que ele é o motivo central.

A especificidade genológica dos 100 poemas, garantida pela sua fidelidade a uma noção comum de lírica (conjunto de poemas em verso, que podem conter momentos dramáticos ou narrativos) e pela proposição cronologizada de dados biográficos, leva-me a conceber uma espécie própria, a qual até aqui procurei de alguma forma teorizar – não por imodéstia, mas apenas pela necessidade de definir as regras a partir das quais a leitura podia decifrar o código utilizado. A espécie é a que já anteriormente intitulei de “autobiografia lírica”: dispersivamente configuradora de um sujeito-locutor à procura de si, através de composições predominantemente escritas em verso e nas quais a relação entre a linguagem e a referência oscila entre a matriz analógica, a descritiva, a reflexiva e a narrativa.

Um agrupamento de composições em verso passíveis de funcionar como excertos de auto-retratos, ou memórias, ou diários, ou como fragmentos líricos de uma autobiografia; um conjunto lírico do qual possamos extrair – reordenando-as pacientemente, narrativizando-as – uma cadeia de sucessividades representadas como próprias da vida de quem se configura nessas composições como autor; tudo isso constitui uma espécie de autobiografia desmontada, fragmentada, obediente aos ditames e aos ritmos impostos pelo género lírico – e só aparentemente caótica. Quer dizer: uma obra lírica, desde que estruturada na composição de um retrato biográfico do sujeito, e portanto instituindo esse sujeito como referência centralizadora, funciona – dentro do seu género – como uma autobiografia dentro da narrativa, como uma história onde o locutor se torna “o herói intelectual consciente ou inconscientemente realizando uma autognose” que dará a chave da compreensão, definição e sentido da sua existência (passada) e da sua personalidade (passada e presente).

 

O pacto «M. António»

Se o enquadramento genológico dos 100 poemas, e da lírica em geral assinada por M. António, nos conduz à noção de uma autobiografia lírica, espécie híbrida com tópicos muito próximos dos do «diário íntimo»; se, por seu lado, a autobiografia possui um tipo de contrato entre o texto e o leitor que a especifica entre os outros géneros ou as outras espécies; convém estudarmos comparativamente os contratos, ou pactos, possíveis para sabermos se o pacto desta lírica autobiográfica é idêntico ao das autobiografias típicas.

Para situarmos, pois, com maior precisão, os seus versos, é preciso levarmos em conta os vários tipos de pacto que um artifício literário pode estabelecer com o seu leitor. Esses tipos foram fixados por Lejeune nos seus trabalhos sobre os textos autobiográficos, muito em especial no livro significativamente chamado O Pacto Autobiográfico.

Os três tipos inicialmente fixados por Lejeune são, precisamente, o “pacto ficcional”, o “autobio­gráfico”, e, entre eles, um tipo zero .

A definição destes tipos é conjugada à relação entre o nome do autor aposto à capa e o nome do protagonista, ou da personagem central,  conforme se vai relacionando com a figura do autor e do narrador  ao longo da obra. Quando não há relação explicitamente estabelecida entre autor e protagonista é que estamos perante a inexistência de pac­to (o tipo zero). O tipo zero pode verificar-se, quer quando há coinci­dência, quer quando há diferença entre nome de autor e nome de prota­gonista. Mas poderá também articular-se à inexistência de referências que permitam com segurança identificar o nome do autor e o do pro­ta­gonista. Nesse caso, o texto é “indeterminado”. O sub-tipo indetermi­nado é o que primeiro nos interessa no quadro de Lejeune.

Outra situação que também nos interessa é aquela em que, não sendo explícito se há ou não coincidência de nomes entre au­tor e protagonista, o pacto estabelecido pelo título ou pelo prefácio diz ao leitor explicitamente que quem escreve e o protagonista são uma e a mesma pessoa, seja qual for o seu nome. É o que sucede com uma obra que se chame, por exemplo, “História da Minha Vida”, ou que tenha por subtítu­lo uma determinada indicação genológica subjetiva (do tipo “Autobiografia”), mas que pode no entanto ser contada na terceira pessoa.

Uma terceira espécie que nos interessa é aquela em que, havendo coincidência entre autor e protagonista, só ao longo da leitura do texto nos vamos apercebendo dela, uma vez que nenhum dos recursos que envolvem o livro (a capa, o prefácio, o título, a denomi­nação do género, etc.) nos indica previamente esta coincidência.

A lírica de M. António apresenta marcas de qualquer dos três tipos, embora se aproxime mais do terceiro aqui descrito. Em primeiro lugar, como sucede nas espécies indetermina­das, ela não nos indica explicitamente se o nome do autor e o «eu» dos poemas são o mesmo. O nome do autor é M. António, sem indicação de família; o nome do organizador da antologia não vem indicado na nota justificativa que ele escreve. O «eu» dos poemas não nos apresenta o seu nome.

No entanto, pode-se entender que a nomeação de um «eu» nos poemas se articula necessariamente ao facto de a capa indicar 100 poemas de M. António. O «eu» dos poemas seria, portanto, M. António, dessa forma se estabelecendo um pacto autobiográfico (dado apresentar-se como biográfica a referência das composições). Também na nota justificativa inicial, embora esta não esteja assinada, a recorrência do tópico da autenticidade, da correspondência entre a vida e a poesia, reforça no leitor a identificação entre o «eu» dos poemas e o nome da capa, ainda que a não garanta.

Por outro lado, numa leitura atenta e pormenorizada dos poemas, encontramos um, «Quinze de Agosto”, em que podemos assentar, à maneira do terceiro tipo citado por nós, a correspondência de nomes entre o autor e o protagonista. O poema inicia-se por dois versos: “Este Quinze de Agosto já não tem / (Não tem o quê, Toneca?)”. Supõe-se que alguém (noutros versos associado ao «eu» locutor pela enunciação na primeira pessoa ), fala a alguém (ou a si próprio) e o interlocutor responde-lhe chamando o «eu» por um nome familiar (Toneca). Ora, «Toneca» é diminutivo de António e o nome de capa é constituído por uma inicial («M.») e por «António». A partir daí, por inferência, o leitor confirma a impressão de coincidência entre o autor e o enunciador, colando-os numa só pessoa.

Nos outros livros, publicados após os 100 poemas, a associação entre o nome de capa e o «eu» dos versos é bastante mais difícil. Só a inscrição de notas contextuais, circunstancializando a obra, aponta a autoridade da capa – que, se acrescenta essas notas, é porque participou da situação enunciativa . Em Lusíadas, as passagens em que o «eu» se assume como poeta  é que ajudam a fazer a identificação com o autor, sendo no entanto raras. Em Era, tempo de poesianenhum recurso é utilizado para equivaler o locutor ao autor. Pelo que a indeterminação aumenta, na tentativa de conotar o nome de capa com a figura do locutor, nos livros escritos após a antologia do ABC . Tal facto aconselha-nos a colocação, da lírica posterior, na zona indeterminada em que, nem o pacto autobiográfico, nem a iden­ti­ficação nominal do autor e do enunciador, são explícitos.

A lírica do autor fica, portanto, enquadrada como uma espécie de au­tobiografia lírica em que o pacto e a identidade nominal são predo­mi­nantemente implícitos. Isso aumenta o carácter híbrido destes escritos e alerta-nos, desde logo, para a noção de cruzamento, neste caso para o cruzamento de marcas genológicas diversas. Como veremos na nossa conclusão, o cruzamento é um conceito chave para descodificarmos a configuração do sujeito-locutor na lírica de M. António e a respectiva poesia.

 

A lírica autobiográfica e o organizador dos 100 poemas

 

Pertinência da Espécie

 

A minha tese é, portanto, a de que os 100 poemas de Mário António são passíveis de uma leitura autobiográfica no sentido em que falam (embora fragmentariamente) na formação de uma personalidade “autoral” e na tomada de consciência que essa personalidade realiza sobre a sua identidade, colocando-nos perante as questões genológicas que temos vindo a enfrentar . Tal hipótese, de leitura “narrativizada” da obra lírica, não é estranha à própria concepção do género exposta por ensaístas como Laurent Jenny .

Referindo-se a cada poema em particular, ele diz: “Tem-se a impres­são, por vezes, ao lê-los, de que «é toda uma vida» que eles narram em silêncio, selada no metal de algumas palavras, a que se chama «e­vo­cação»“. A leitura que Jenny faz do poema SPLEEN, de Baudelaire, demonstra essa proximidade possível entre a lírica e a narrativa (concebida como “o devir de um sujeito” - na acepção, excessivamente generalizada, de Bremond ). Também na lírica as “metamorfo­ses” do “Sujeito-Herói” possuem “um sentido e uma lógica”, não sendo “indife­ren­te” a sua “evolução”. A sequência lírica apenas desembaraça o poeta da refe­rência a “toda a progressão interna”, mas é pela «nar­ra­ti­vização» das metáforas que “o antagonismo das três pessoas gra­maticais” adquire sentido, ou é seman­ti­za­do .

Também Gusdorf admite a existência de “poemas autobiográficos”  (citando a propósito Lamar­tine), bem como Weintraub, de que acima falei a propósito mesmo deste facto, e James Olney , que lembra ainda uma “tendência” explicativa dos poemas líricos autobiográficos: a que faria os seus sujeitos “criar autobiografia em cada obra por meio de formas diversas, dissimuladas ou encobertas”.

Mais atenta a uma perspetiva historicista e contextualizante, E. Bruss entende que foi a importância crescente da lírica no século passado, a par das mudanças a nível temático e no sentido da intensificação da auto-referência, que pôs a lírica em competição com o género autobiográfico. Nessa perspetiva, a existência de poemas autobiográ­ficos seria principalmente o resultado dos tópicos de uma época bem determinada , facto que talvez não concorde com uma análise histórica mais detalhada.

Lejeune é, parece-nos, quem mais claramente veio definir o que chama de “poema autobiográfico”. Em O Pacto Autobiográfico , ele define-o como uma composição narrativa  em verso que trata da vida individual, ou da história de uma personalidade, identificando autor, narrador e personagem principal, bem como alicerçando-se sobre uma “perspetiva retrospectiva”.  Quanto às proximidades e diferenças, entre as classificações de Lejeune e a descrição que podemos fazer dos 100 poemas, elas foram estabelecidas acima, quer no que diz respeito à narrativa quer no que respeita a outros aspetos. O importante para nós aqui é verificarmos que também Lejeune aceita a existência de poemas autobiográficos e, melhor que os outros, define as condições que a estabelecem.

Só que, todos estes autores, atidos à concepção de Lírica centrada sobre a consideração de poemas e não de livros de poemas, não pensam (como fazemos aqui) na existência de obras autobiográficas constituídas predominantemente por poemas líricos em verso. Uma vez que, para mim, tal como fixei no Cp. I a partir de uma citação de Kate Hamburger, o género lírico terá de se conceber em função da totalidade que constitui um livro, entendo que existem obras autobiográficas configuradas, exclusivamente ou não, por poemas líricos em verso – desde que a conjugação deles através de uma leitura unificadora permita reconstituir o percurso de uma vida (ou de uma parte de uma vida) enunciada como sendo a do autor.

O que se passa nos 100 poemas é, portanto, isso. Algo idêntico ao que Jenny, Gusdorf e outros observam nos “poemas autobiográficos” – para nós apenas unidades de um conjunto maior e caracterizável de forma idêntica.

Se a leitura autobiográfica da antologia inicial (e, posteriormente o confirmaremos, de toda a obra lírica de M. António) não estranha algumas abordagens feitas às definições de lírica, ela também é natural no contexto africano – pese embora alguma precipitação dos críticos “empenhados”, que tanto procuraram exorcizar o “intimismo” – de que, corporeamente, se revestem estes versos.

Como lembra José Carlos Venâncio, “(...) devido ao percurso transcultural que muitos intelectuais e dirigentes políticos africanos ti­veram de atravessar para assumir a modernidade, a auto­biografia protagonizada por eles revelou-se como um dos géneros ou subgéneros literários mais profícuos na literatura africana”. É precisamente na transversalidade do percurso cultural que Georges Gusdorf põe a tónica, ao referir de passagem as Autobiografias de Africanos recolhidas por Westermann. Elas “manifestam a comoção das civilizações tradicionais no seu contacto com as europeias. O mundo antigo está em vias de morrer dentro inclusivamente dessas consciências que se interrogam acerca do seu destino, convertido, de bom grado ou pela força, ao novo estilo de vida que o homem branco trouxe de além dos mares”.

A transversalidade do percurso assume também condições próprias nas comunidades literárias: um escritor africano como Câmara Laye conta a “sua” história ao mesmo tempo aos europeus e aos africanos “desenraizados” como ele – mas não aos que permaneceram nos quimbos, vivendo ingenuamente em acordo com as tradições (orais) pelas quais o escritor se teria iniciado. A europeização do público – inevitável após a introdução do ensino, dos produtos e das práticas típicos da Europa e dos EUA – condicionaria sempre o autor a dirigir-se aos europeiza­dos e, portanto, estimularia sempre a composição de uma história na primeira pessoa por modelos autobiográficos onde cada “assimilado” pudesse rever-se.

Complementarmente, as contradições da modernidade – sobretudo num país africano e para um intelectual marginalizado pelos seus compa­nheiros, ou «ilhado» face a várias comunidades circundantes e menos miscigenadas – refuncionalizam a prática autobiográfi­ca. No dizer expressivista de Morgenthau e Person, “a origem do narcisismo  não pode ser compreendida sem que se leve em consideração o dilema humano a que ela pretende dar solução. Este dilema é a alienação. O homem moderno é assediado por duas manifestações de alienação, uma existencial, que os seres humanos experimentam em to­dos os tempos, e a outra histórica, para a qual o narci­sismo é a resposta. O dilema existencial do homem, que transcende tempo e lugar, consiste na necessidade de des­cobrir significação em uma vida que é finita, enquanto as aspirações e a imaginação humana não o são”.

Especificando os tipos de situação histórica – geradores de epidemias diferentes de narcisismo – os autores acrescentam: “a subtileza do dilema, no entanto, varia de acordo com o tempo e o lugar. É mínima num meio em que a pessoa sente que está ocupando um lugar prede­ter­minado em um universo que faz sentido. É o que particularmente a­con­tece em certas organizações tribais onde a ênfase no eu é mínima. É máxima na preocupação contemporânea com a própria individuali­dade, o que se poderia chamar o sen­so do eu”.

O dilema relacionar-se-ia também com o “desamparo” espiritual ou mental (étnico, em nosso entender) do homem sem “lugar, grupo, deus ou tribo com quem se identificar e através dos quais se rea­lizar” – situação ainda mais agravada no caso do tipo intelectual citado por Venâncio, ou no de um poeta marginalizado pelos seus companheiros em função de opções estéticas diferentes.

As características genológicas da obra lírica de M. António são, por­tanto, naturais dos espaços-tempos por onde errou a sua infância, ou a recordou peregrinando. O que apenas confirma a focalização da leitura sobre que me centro aqui.

Confirmada a pertinência da hipótese interpretativa que acabo de fixar, falta-me explicar uma dúvida que, sendo simples, pode parecer incómoda: se é no sentido de uma compreensão autobiográfica que o próprio organizador da antologia reúne os poemas (como adiante confirmaremos), porque é que ele optou pelo género lírico e não escreveu uma narrativa?

Creio estar a resposta na própria nota introdutória da antologia. Aí a dispersividade lírica é dada como expressão de um ritmo “íntimo”, integrado nos ciclos cósmicos e, dessa forma, exprimindo com maior autenticidade a pessoa do locutor. A obediência ao ritmo “íntimo” – ou seja, ao critério da dispersividade e da aleatoriedade aparentes – neutraliza a crítica dos que, como Gusdorf, apontam às autobiografias e aos diários uma necessária transfiguração (e, por tanto, inauten­ticidade) do «eu», visto que aí os acontecimentos são todos ligados por um fio (cronológico ou lógico) alheio ao diverso correr da vida.

A escolha da disposição lírica visa, pois, acentuar a impressão de verosimilhança e de fidelidade autobiográfica. A narrativização, se passasse a uma “estrutura de superfície”, poderia deixar ao leitor essa desconfortável impressão de rosto forçado no encadeamento artificial dos episódios.

 

 

Cronologia, autobiografia e  a apresentação dos 100 poemas

 

As marcas de um modelo narrativo subjacente não presidem, claro está, à composição de cada um dos 100 poemas ali transcritos, que são obras tipicamente líricas na sua maioria. No entanto, como iremos ver ao longo da análise, elas são constantes (a par das de lirismo), quer na composi­ção dos poemas, quer na articulação dos referentes por eles postos em jogo, ou, ainda, na conexão dos poemas e dos “capítulos” – determinados aqui pela sequência do calendário civil.

A hipótese que avanço, de ter a antologia por um dos seus modelos o discurso narrativo autobiográfico, foi mesmo primeiramente sugerida pelo critério que me parece ter servido para agrupar os poemas que a constituem. Eles não foram gradeados por grupos temáticos, ou pelos motivos domi­nantes em cada um, ou ainda pelo tipo de referência que utilizavam. Uma breve nota introdutória diz-nos que foram reunidos cronolo­gicamente, sendo a cronologia fixada pelas datação das com­posições.

A nota orienta, pois, a leitura da antologia desde logo, suscitando a consideração de um «macro-texto», ou de uma “disposição”, de uma macroscopia ordenada subjacente – ainda que legitiman­do-se na ilusão de espontaneidade nos microcosmos ou poemas. Mas aqui, também, a legitimação pela espontaneidade não neutraliza a ideia de um “fio” semântico unívoco, não só porque ele ressaltaria da interpretação do conjunto, ainda porque a sinceridade que se assume é-o em relação a um crescimento (poético) e o seu significado coincidirá, portanto, com a conclusão do processo de amadurecimento a que se ancora.

Pelo papel enquanto condicionador da leitura – e dada a brevidade concessiva do texto – vale a pena transcrever na íntegra a nota justificativa onde são dadas as indicações de leitura que tenho vindo a referir.

 

“JUSTIFICAÇÃO:

 

  O tempo da Poesia é o tempo solar e o ciclo da obra poética o ciclo das estações. O Poeta não escreve livros: como o camponês, aguarda o tempo da safra para exclamar: Minha colheita, meu ganho: Poesia! Poesia!  (*)

         Em consequência, só as recolhas cronológicas podem dar uma ideia não enganadora da Poesia realizada.

         Foi por o ter verificado quem já pôs em circulação livros de poemas que, por terem sofrido limitações edito­riais, hoje bem pouco representam, cada um de persi, da sua Poesia, – que este livro aparece. E, também, porque uma oferta, sem condicionamentos, da Editora ABC, possibilitou o empreendimento.

         Neste livro se incluem, todos os poemas publicados em Poesias (1956), Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo – Poemas angolanos (1962) – de resto, esgotados – e, em número sensivelmente igual, poemas que, dessas diferentes épocas e posteriores, permaneceram sem publicação em livro.

________________

 

* António Manuel Couto Viana

 

Antes ainda de comentar a nota, a inclusão da referência literária que constitui o nome de António Manuel Couto Viana suscita uma rápida observação. Por um lado, ela irá conectar-se com as múltiplas referências literárias da obra e das líricas posteriores; por outro, ela permite alertar o leitor para a estruturação arquetípica do texto.

De facto, como anexa Michel Beaujour ao auto-retrato, podemos dizer que também a lírica autobiográfica, sob a ilusão da espontaneidade, e salvaguardada a retórica, recorre aos arquétipos fundadores de uma dada cultura ou civilização. Isso é particularmente visível na au­tobio­grafia de Jung (também comentada por António Quadros) e pode ser observado na lírica de “M. António”.

A citação de Couto Viana, bem como a menção aos ciclos cósmicos marcando o tempo e ritmando a vida, denunciam desde logo a aproximação a determinados modelos culturais e a certos mitos colectivos que ajudam a formar a ideia de sujeito.

A fundamentação da escolha do critério assenta em que – seguindo a Poesia “o ciclo das estações” – “só as recolhas cronológicas podem dar uma ideia não enganadora da Poesia realizada”. Mais do que uma explicação, trata-se de uma espécie de declaração de autenticidade poética, acentuada pela ideia de que o autor espera pelo tempo da safra para aclamar a poesia – ou seja, reforçada pelo símile entre a ligação à palavra feita pelo poeta e a ligação à natureza a que obedece o agricultor. Assim, a autenticidade da relação entre o poeta e a palavra verifica-se cósmica e ecologicamente sancionada, pelo que a distância entre a sua existência pessoal e o texto que nos assina se tem por inconcebível.

Os dois últimos parágrafos (a segunda metade) da nota servem para confirmar a sugestão de verdade, que seria maior neste livro do que nos anteriores, visto aqui não haver limitações editoriais – ou seja, visto que não foi necessário suprimir composições que testemunhassem um ou outro passo importante da biografia e da aprendizagem poética do sujeito público “M. António”. Vem a propósito sublinhar que esses livros anteriores tinham já funcionado antologicamente uns em relação aos outros, com excepção, natural, para o primeiro. Mas, mesmo esse primeiro (Poesias, de 1956), tinha os poemas pormenorizada­mente datados, marcando assim o carácter ao mesmo tempo antológico e autobiográfico do livro. Todos os outros volumes incluem sempre poemas dos anteriores, como se cada obra nova fosse uma reorganização do que até aí tinha sido escrito – e, portanto, da existência autoral, da história do autor enquanto autor.

Voltando à justificação inicial, ela faz-nos, por estas declarações de autenticidade, recordar o que Lejeune chama de “pacto referencial”, ou seja, aquele em que um autor (e neste caso a identificação do prefaciador com o autor é muito ténue) jura “dizer a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade”. O pacto referencial completaria o pacto autobiográfico (estipulado por uma declaração do tipo “eu, quem assina”), afastando o registo autobiográfico do conceito de ficção.

Mas a autenticidade, na nota justificativa dos 100 poemas, só indiretamente se reporta à vida do autor, que não se nomeia de forma ex­plícita. Segundo a “Justificação”, a antologia exprime, acima de tudo, o crescimento poético, ou seja, ela é autêntica em relação ao que o prefaciador afirma que foi escrito, numa proximidade nítida com a caracterização que Vico faz da sua autobiografia, segundo M. Sprinker, que sublinha que, para “o próprio Vico, a história da sua evolução intelectual não é tanto a história da sua pessoa como a do conjunto de obras que fizeram dele um «homem de letras»“. Só por antes associar a produção poética à prática recolectora (no entanto, de quem semeou primeiro) é que o texto leva o leitor, por inferência, a projectar sobre a antologia o mito da autenticidade projetiva que ela, interiormente, reclama – como se verá pelo excerto que transcrevo no final deste capítulo.

Assim, os 100 poemas posicionam-se, mais uma vez, de uma forma própria no interior dos modelos possíveis: o “pacto referencial” é-o tendo por referência os próprios poemas e não o que eles dizem; mas, no interior dos poemas, é reafirmado (e, portanto, conservado) um pacto referencial típico da autobiografia, que não foi explicitamente ou inteiramente feito antes. Ora, a conservação do pacto tal como ele se estabelece no início é condição do género, segundo Lejeune.

No entanto, uma vez que a autobiografia se distingue da biografia por nela a identidade sustentar a semelhança e não o contrário, o ‘desvio’ não se torna muito significativo face à teoria de Lejeune. Mais mar­cante é o ‘desvio’ em relação ao pacto autobiográfico, marcado pela associação apenas implícita entre autor e enunciador-protagonista.

Nas pp. 31, 33, 34, 35 e 37 da versão consultada, Lejeune fala nos códigos do prefácio, e das auto-apresentações nas badanas ou nas contra-capas dos livros, que recomendam o uso da terceira pessoa, postulando a partir daí a possibilidade de uma identificação entre o autor textual e o nome de capa. Refere-se a frases do tipo “quem vos fala”, “quem escreve estas linhas”. Esses pequenos textos, fortemente codificados, funcionariam para o leitor como curtas autobiografias. A “Justificação” é passível de ser lida como uma variação dentro desse tipo, pois o autor justifica o aparecimento de “este livro” referindo-se a si próprio (autor da nota) na terceira pessoa; no entanto, em nenhum momento a nota nos diz que quem a escreve é o subscritor dos versos: isso é deixado ao critério do leitor e aos efeitos de capa e de conjunto que adiante estudaremos. Por tal facto, a nota aproxima-nos da espécie autobiográfica em que à terceira pessoa não é acoplada nenhuma referência explícita, sendo o contexto a sustentar a inferência que conduz à identificação do locutor com o sujeito público.

 

Uma cronologia relativa: uma autenticidade enganadora

 

A reunião das unidades por onde as referências diegéticas se dispersam – ou seja, os poemas ou composições – ao promover o seu agrupa­mento por uma cronologia é que permite que elas sejam lidas como transparentes testemunhos de uma vida conforme foi acontecendo e sendo escrita, uma vida que é a do locutor.

Se interpretássemos projetivamente a obra – de acordo com as sugestões da justificação inicial – seríamos levados a concluir que a reunião cronológica transporta para a estrutura da antologia a expressão da espontaneidade absoluta, teorizando a escrita no “autor”, e legitimando-se no facto de a nota sugerir isso pessoalmente ao leitor (se o leitor associar, levado pelos efeitos de capa e os posfácios, o nome do sujeito público à autoria da nota justificativa).

Prefiro no entanto reflectir sobre a necessidade que tinha a antologia de nos apresentar uma paternidade especificamente sua (não a dos textos) que a organiza, como “homo legens”, pessoa que assegura a responsabilidade moral e jurídica da leitura que publica os poemas.

Este sujeito enuncia-se na terceira pessoa (“quem já pôs em circulação livros de poemas”) marcando o seu distanciamento face ao lírico de cada um dos textos, onde a enunciação na primeira pessoa impera. Com a autoridade que lhe advém dessa disjunção, ele indica ter integrado todas as composições publicadas nos livros anteriores, utilizando a mesma linguagem distanciada e tendencialmente impessoal (“Neste livro se incluem”).

A função imediatamente apreensível da presença explicativa de um organizador na antologia é a de justificar ou apresentar o critério estruturador e a obra – trabalho desnecessário, porque a distribuição dos poemas é precedida pelo número dos anos em que foram compostos e, se a antologia se publicou, é porque de alguma forma e para mais do que uma pessoa estava justificada a vinda a lume de um conjunto fragmentado entre gavetas e opúsculos.

A redundância da justificação inicial esconde, porém, a sua verdadeira utilidade, que é a de sugerir previamente à leitura a “ancoragem” do ego de cada poema a um sujeito público que reclama direitos acerca da “sua Poesia”, ainda quando fale de si próprio na terceira pessoa. Este processo joga com a noção comum (e filosófica) de sujeito: o sujeito pode não ser absoluto, mas é sempre “unitário”, mesmo quando se enuncia na terceira pessoa ao se apresentar e na primeira ao se construir. Por essa noção não resiste o leitor comum à associação entre o «ego» dos poemas e o da antologia, que assume e enquadra o poeta “original”.

Uma vez “ancorado” o locutor a um sujeito “posterior” e público (portanto, “real”) que o organiza enquanto “consciência intencional”, a nota justificativa leva-nos a pressupor que os textos representam uma pessoa que foi crescendo (poeticamente) ao longo daqueles anos “antologiados”. As diferenças que possamos detectar entre os seus vários poemas devem, por consequência, ser explicadas a partir da ideia de crescimento – a qual impede que seja posta em causa a unidade do sujeito pela sua variação ou diversidade.

Como corolário imediato, podemos concluir que a nota explicativa nos introduz à referência que a antologia passar  a constituir colando-lhe um rótulo narrativo autobiográfico (o rótulo narrativo era já explicitamente introduzido pela justificação do critério cronológico, ao se falar do tempo da Poesia como “solar e o ciclo da obra poética o ciclo das estações”). Isso contribui para que adquira foros de garantia de autenticidade projetiva a oferta ao leitor da legitimadora ficção do respeito pelo carácter espontâneo com que o percurso lírico se foi concretizando. Para que tal garantia de autenticidade saia reforçada, é que o antologiador afirma ter incluído os poemas todos que publicara anteriormente (poemas cuja unidade e ancoragem a um mesmo criador assentam igualmente nas leituras de conjunto apostas ao final da recolha – uma de Amândio César e outra de Alfredo Margarido).

Para acreditarmos, como leitores expressivistas, no respeito pela autenticidade e espontaneida­de alicerçadas sobre a cronologização da antologia, para não pensarmos que tal escrúpulo de fidelidade era mais uma das ficções do texto, tornar-se-ia necessário, porém, que as datas dos poemas coincidissem nos livros anteriores e neste, coisa que não acontece, por diversas vezes. E era preciso também que os poemas publicados pelo autor anteriormente, em livro, fossem mesmo todos incluídos ali, conforme ele afirmava ter feito – o que também não sucede. Era conveniente, por fim, que as composições não fossem modificadas, para verificarmos o crescimento “real”: e algumas foram-no, como iremos ver.

Se as composições excluídas foram raras, e as modificações nem sempre significativas, as diferenças na datação já surgem com maior frequência.

Para verificarmos a correspondência de datas precisamos de ler os outros conjuntos para os quais este reenvia ao reclamar um mesmo subscritor. A primeira observação a fazer é a de que há livros onde se firmam datas (Poesias, AmorPoemas & Canto Miúdo) e um outro em que não (Chingufo). Dos três em que se indicam datas, os dois primeiros fixam-nas várias vezes apontando mês, dia e ano, ou só mês e dia, o que permite comparar a sequência cronológica mais precisa desses livros com a ordem pela qual os poemas se seguem na antologia, no interior do ano a que pertencem.

O leitor que não se tenha informado acerca disso, ao ler a sequência das composições de cada ano (nos 100 poemas) pensará que ela também tem carácter cronológico – mas, se a confrontar com as datas precisas anteriores, verá que não tem.

O poema «Desemprego», por exemplo, traz em Poesias a data de “6-6-1952”, e na antologia aparece como o sexto desse ano; «Rua da Maianga», escrito um dia antes segundo as Poesias (“5-6-1952”), aparece no entanto como o nono de 1952 nos 100 poemas.

Encontra-se, pois, aqui, um primeiro nível de rompimento com o critério cronológico: no conjunto dos poemas de cada ano, a ordenação interior não se explica pelas datas, e parece aleatória. Não se trata de falhas interpretáveis pelas limitações naturais da memória: os livros anteriores permitiam ao antologiador encontrar uma datação exacta de pelo menos algumas das composições.

O segundo rompimento observa-se quando notamos as discrepâncias entre datas anteriores e as da antologia, discrepâncias mais numerosas em relação aos livros com datas referindo o mês e o dia do que em relação a Poemas & Canto Miúdo. Os versos intitulados «Dois Momentos», por exemplo, publicados primeiro em Amor com data de “-X-1954”, aparecem na recolha do abc como os únicos de 1955 – demonstrando que a sequência cronológica anteriormente sugerida não foi respeitada na íntegra.

Na sequência chamada «O Amor e o Futuro» encontramos igual­mente os dois tipos de diferença já citados: poemas que desaparecem e datas alteradas. A diferença mais saliente na série é, porém, de conjunto: enquanto nas Poesias e em Chingufo há um só poema com esse título, seguido por uma série nomeada como «Outros Poemas do Amor e do Futuro», nos 100 poemas há uma só sequência, sob o título genérico «O Amor e o Futuro». A série da antologia e as anteriores possuem, no entanto, o mesmo número de composições – quatro – apesar de aquela incluir uma que estava separada das outras nos livros anteriores. Isso acontece porque uma das composições da sequência inicial é retirada, sem qualquer aviso.

Também nas datas assinaladas a cada poema desta série encontramos diferenças. O último deles é o primeiro de 1954, a julgar pelas datas de Poesias; mas, para manter a sequência unida, o organizador da antologia coloca essa composição entre as de 1953, sem que nenhuma nota nos avise acerca da alteração da data, ou da inconformidade de datas para o último poema.

Note-se que estas diferenças estão ainda sustentadas numa progressão cautelosa do organizador dos livros anteriores. Os livros Poesias, de 1956, e Amor, de 1960, são os dois primeiros publicados sob o nome do autor e é neles que as datas estão mais pormenoriza­da­mente assinaladas. Na publicação apresentada pela listagem da nota justificativa como a terceira (Poemas & Canto Miúdo, de 1960) as datas já vêm indicadas de forma genérica. Em Chingufo (de 1962) desaparecem todas as referências a datas. Essa progressão é também uma progressão do antologiador, e não só do poeta. Chingufo, por exemplo, constitui-se como selecção alargada de poemas dos livros anteriores, espécie de ensaio geral dos 100 poemas.

Estas diferenças provarão, portanto, ao leitor expressivista ou ingénuo, que quem subscreve a nota justificativa, insinuando-se como antologiador de si próprio, não pode em absoluto garantir a exactidão das datas ou a inclusão total das obras anteriores (a memória, que não garante o sinal das queimaduras mas também não se socorre das informações a que o leitor tem acesso, só por condescendência podia explicar o facto). Pelo que somos levados a concluir que minimamente o antologiador terá ficcionalizado ou modelado a cronologia que nos propõe, fugindo à regra de ser fiel à unidade locutor-autor empírico, que o seu sujeito público parecia querer impor ao assumir recorrentemente as datas dos poemas como referência literal. Ele prova-nos, assim, que a referência é sempre o resultado de uma construção artificiosa, que submete a leis suas os elementos que vai tomar à vida pessoal.

É claro que a referência literal é sempre abolida, no trabalho poético, em favor da operatividade heurística exigida pela redescrição modelar – da realidade ou da irrealidade. Por isso, o que nos versos se nos apresenta como literal é um modelo do que seria literalmente referido – e é um modelo de literal·. A sinalização de um quadro enunciativo “concreto” promovido pela indicação de datas “reais”, porque não podemos recuperar esse quadro na sua realidade original, deve quando muito ser lida como sustentáculo para o efeito de verosimilhança. Também sobre tal efeito se fundamentará a ideia de uma “autobiografia”, de uma imitação narrativa do “sentimento radical de si” e da “vontade de ser” [54], que o «eu», no interior dos poemas, insiste em dizer autenticamente transcritos para os versos:

 

É tarde, porém. As letras estão vencidas,

Não há remédio. Não tive tempo algum

De viciá-las. Levam de mim

Cérebro e músculos e mãos e pés

Nervos, tremores. Levam de mim

Delicadezas (Ó meu Rimbaud!:

Oisive jeunesse

À tout asservie

Par délicatesse

J'ai perdu ma vie)

Para as lançarem, mal-gastas, na primeira esquina.

 

 

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