Ancoragens e desembarques
Fiz muitas vezes essa viagem:
De Zero a Zero.
Fiz essa viagem
Cruzando, inalcançado, um Infinito.
(.../...)
Fiz muitas vezes essa viagem. Duvido:
É de homem?
(Rosto de Europa)
O tempo da poesia
Efeitos de capa e envoltórios
O livro intitulado Era, tempo de poesia é o primeiro dos que saem assinados por M. António após a publicação dos 100 poemas. O envoltório que o apresenta reenvia diretamente para o autor daqueles, logo pelo nome que se repete, aqui como em todas as outras obras literárias que assina (incluindo as de cariz narrativo).
A repetição constante do nome em textos literários permitia evitar a confusão que, a princípio (e apesar dessa repetição já se ter verificado nas páginas dos jornais da terra), fizeram alguns leitores, como Teófilo José da Costa. Reportando-se aos dois autores de dois artigos sobre Cordeiro da Mata, ele diz:
M. António, que julgamos chamar-se Manuel António, (pois não o conhecemos pessoalmente) poeta e crítico de reconhecido mérito que, pelo seu estudo e dedicação às letras se tem imposto de maneira notável à consideração do público amante da literatura, bem como Mário de Oliveira (que também não conhecemos) - outra personalidade do mesmo ramo dos nossos dias.[57]
«M. António» e «Mário de Oliveira», no caso, eram a mesma pessoa. Reduzindo a designação a «M. António» e repetindo-a sempre, cria-se um sujeito público unívoco e personalizado, restringido aos livros de arte literária, sem margem para ambiguidades.
Como disse atrás, a indicação do sujeito público ou autor, sendo sempre feita pelos nomes pessoais (“próprios”), ocludindo os de família, marca mais uma individualidade que a inserção na comunidade. R. G. Hamilton observa de passagem a estratégia de diferenciação do sujeito público face ao sujeito civil, ao anotar, em Literatura africana literatura necessária – I, que “Mário António – nos seus livros costuma assinar M. António” (p. 110)[58]. Apenas não observa que essa diferenciação se faz pelos nomes da pessoa em vez de se indicar um nome de família, a par ou não dos nomes pessoais. E isso é importante, entre outros motivos porque a redução à individualidade acentua o carácter lírico da obra, ou a sua designação como lírica e subjetiva. Porque a nomeação reduzida ao «eu» contradiz a natureza familiar, ou tribal, da narrativa[59].
Concordantemente, o nome da avó ou o da mãe nunca entram nos poemas (onde entram os de algumas mulheres de quem o locutor se recorda amorosamente); e mesmo quando, em Afonso, o Africano, se escreve um “Epitáfio” a Aníbal Arquimedes, irmão de Mário António Fernandes de Oliveira, nada nos indica se há entre eles uma relação familiar. Pelo contrário, o nome do irmão (também sem indicações de família, também reduzido aos seus nomes próprios) é tratado literariamente, jogando o texto com o mito do famoso general cartaginês e com uma derivação progressiva da palavra Arquimedes, articulada à profissão do irmão: arquimedisse. É claro que, para quem saiba que o irmão de Mário António Fernandes de Oliveira era topógrafo, e que ele era chamado “engenheiro” por alcunha, o texto funcionará de outra forma. Mas, para o leitor comum, pode mesmo tratar-se de um engenheiro que trabalhasse na construção de estradas, equiparado hiperbolicamente, pelo seu esforço no trabalho, a Aníbal e a Arquimedes.
Repetindo-se de livro para livro só o nome “M. António” dá-se ao «eu» da enunciação uma correspondência fixa, que lhe trava a sua típica itinerância (no sentido de Benveniste e Ricoeur), mas que se centra numa figuração literária[60] e não necessariamente na filiação, publicamente reconhecível, que serviu para construí-la e explicá-la. A referência à genealogia pode ser ocultada, bem como “ilhar-se” a diegese inicial, já que a identidade está centrada na presença textual de um «eu» com personalidade jurídica própria e direitos de capa firmados.
É isso que sucederá em todos os livros que se seguem aos 100 poemas, acompanhando ou acentuando uma tendência que se vinha a configurar no final da antologia: a tendência para a suspensão, marcada estilística e semanticamente. Contrariando a «suspensão» e a individualização radical, a assinatura por nomes de família (por exemplo “Fernandes de Oliveira”) – ou por um nome pessoal e um apelido, como é mais comum (por exemplo, “M. Oliveira”, ou “Mário de Oliveira”) – incluiria de imediato a identificação do autor na figura de um sujeito civil com uma biografia conhecida a partir dos seus antecedentes, igualmente conhecidos, na sociedade de que ele vinha. “Fernandes de Oliveira”, ao dar uma indicação de família, dá uma história social (e étnica) dessa família, que os nomes podem sugerir etimologicamente mas que se prende sobretudo com os antecedentes próximos que a comunidade conhece. A oclusão do apelido permite, por isso, à leitura ignorar a transcendentalidade do “autor”, afirmar a existência fictícia, a realidade “de papel” que ele é, libertando o leitor para a configuração do sujeito exclusivamente condicionada pelo que o texto disser dele.
E, mais uma vez, a criação ficcional promovida pelo artista surge independentemente das justificações que o sujeito “real” apresentasse fora dos livros, Pelo testemunho pessoal de Tomás Jorge Vieira da Cruz, amigo do poeta desde a infância, vim a saber que o autor explicava a sua decisão, por um lado, para não confundir o nome com o do pai, que publicara também em jornais de Luanda; por outro lado, porque o português “Mário António” o proibira – após a chegada a Lisboa, nos anos 60 – de usar o “seu” nome público. Tal homem publicara um livro em 1948, intitulado Poemas, e colaborava também na Imprensa portuguesa[61], pelo que entendia ser detentor de uma figura pública à qual não se devia colar outrem. Isto, só por si, demonstra quanto é importante para um artista a jurisdição sobre um nome literário, que funciona como uma prévia demarcação de território exclusivo.
A segunda explicação (a que se prende com o português “Mário António”) não coincide com a realidade enunciada nas capas anteriores a 1963, quando o poeta parte para Lisboa; de facto, se o uso de «M. António» deriva de uma proibição que se dá em Portugal, e se Mário António só vem a Portugal, pela primeira vez, em 1963, como se explica ter ele já antes usado nos seus livros o mesmo nome público? Isso demonstra a falibilidade dos “testemunhos pessoais” do autor, que nunca deixa de ser um criador do seu próprio mito.
Quanto à primeira explicação, ela não encaixa muito bem no figurino de uma relação de continuidade entre a poesia do pai e a do filho, o qual é estabelecido, como vimos nos dois capítulos anteriores, ao longo dos 100 poemas. A realidade textual entra, pois, aí, em contradição com o testemunho do autor, alertando-nos para a necessária concepção do texto como algo que inventa a referência, mesmo a referência que o funda ou legitima na ficção enunciativa.
A “ancoragem” do «eu» itinerante à figura de um autor (independentemente de quem ele é na sociedade onde escreve) não recorre apenas ao uso e repetição de um nome nas capas dos livros. Estende-se pela menção a direitos de cópia (que assegura um contrato social que pressupõe a realidade autoral), pelas datas e locais de publicação e de composição (reafirmando a existência do autor pela do contexto em que ele terá escrito e publicado), por inserção de notas de imprensa ou privadas (de cartas pessoais, por exemplo), através das quais alguém fala do sujeito público dos versos de um livro anterior que, dessa forma, é fundido com o locutor.
Se o nosso entendimento da lírica assinada por M. António é o de constituir ou permitir ela uma leitura autobiográfica no sentido não-expressivo do termo (no sentido criacionista ou construtivista), teremos de atentar ao modo como, nos livros posteriores aos 100 poemas, se garante a reiteração do «eu» a uma mesma figura pública dada como autor.
Em Era, tempo de poesia, para além da repetição do nome, utilizam-se outros recursos no envoltório (não no miolo) da obra que licitam a reiteração identificadora.
Sob o índice, uma brevíssima anotação (de uma linha) evoca indireta e estruturalmente o trabalho anterior, e dessa maneira reforça a colagem do locutor dos versos e do nome de capa ao sujeito público dos 100 poemas. Diz ela que “Todos os poemas são datados de Janeiro a Setembro de 1963”. Não se trata da minuciosa enumeração de datas que encontramos em livros antes publicados, nem da sistemática ordenação cronológica da antologia do abc, mas de uma nota que, mesmo assim, engloba num período determinado a produção que designa, dando continuidade ao processo de autentificação pela cronologia que condiciona toda a leitura anterior e que deixa no ar a sugestão de um relacionamento expressivo entre um período particular da vida do sujeito público e os poemas ali transpostos.
A anotação final é completada, na sua função de ancoragem, pela referência ao local de impressão – onde se começa por dizer que o livro é uma edição de autor, desmentindo a assinatura editorial da capa (Imbondeiro). Ora, se alguém se afirma autor para assegurar os direitos relativos à obra, é porque o sujeito civil assume a responsabilidade dos versos, reatando assim a sua ligação aos mesmos.
As duas notas (a que fica sob o índice e a do verso da página) colocam dessa forma o tempo de poesia no lugar que, pelo ano de publicação, lhe pertencia: entre os 100 poemas e os livros de itinerância, de que falaremos na próxima secção deste capítulo. Porque, ao reduzir a importância das datas a uma anotação final, a obra também se aproxima das posteriores, onde desaparece a localização temporal que circunscrevia os poemas e o seu locutor logo desde o invólucro da edição.
A localização temporal dos poemas emenda igualmente a sugestão da chamada «folha de rosto», onde se inscreve o número do ano de publicação: 1966. Trata-se de uma correcção de leitura, providencialmente colocada sob o índice, que reaproxima cronologicamente este conjunto da antologia do abc, dando-nos por isso uma indicação precisa para guiar a interpretação dos referentes por ele construídos.
Por outro lado, a reunião de um grupo inicial de poemas unidos pelo título («Tempo») e por um motivo romanesco (vários momentos da relação amorosa com uma mulher) volta a fornecer ao leitor sugestões narrativas que o convidam a religar o livro ao percurso indiciado pela antologia inicial, como por uma análise mais pormenorizada da diegese sugerida por esses poemas poderemos ver (o que faremos na secção 1.3. do presente capítulo).
Situação técnica
Também o trabalho poético é similar ao da última fase dos 100 poemas, que no fim do capítulo anterior tentei definir. Das 35 composições, só em sete as figuras de suspensão não surgem, ou não têm significado: os dois primeiros poemas e «Tempo IV» (p. 15), «Arimo Quimbare» (p. 35), «Poeminha» (p. 55), «Muíi, o Ladrão» (p. 59), «Os Fabricantes de Palavras» (p. 65) e «Post-Scriptum» (p. 77).
Dessas sete, a primeira deve o facto à determinação dicotómica da sua estrutura: concentra-se numa só estrofe, composta por dez versos, sendo que os oito primeiros repetem sempre, alternadamente nos ímpares e pares, “Era” e “Antes” (“de”, ou “que”). Só nos dois últimos a proposição de uma analogia, algo ambígua[62] (a alertar-nos para a intensificação metafórica e para a tendência descontextualizadora), à qual é reservado o verso final, impõe a mudança de estrutura, deslocando o “antes” para o meio do penúltimo verso. A dicotomia temporal, anaforizada, impede naturalmente a emergência do transporte.
«Arimo Quimbare» deve por igual a ausência de figuras de suspensão à sua estrutura. Trata-se de imitar uma invocação ou interpelação (de ressonâncias bíblicas logo denunciadas no incipit: “Ó bíblica figura”). A estrutura de interpelação fica marcada explicitamente pela anáfora inicial (“Ó”) que surge em todos os versos excepto dois, dos quais um (o último) exprime o lamento perante o Ser invocado no anterior (“Criador da Vida”), recordando a sensação de perda que registámos no capítulo IV: “Tanto que me não deste!”. Ou seja, a ausência, no verso final, da estrutura frásica dos anteriores cumpre ainda com o modelo da interpelação. Este modelo, para ser eficaz, convida a evitar o transporte e o corte rítmico, impondo uma leitura unilinear, que dispensa a receção de se dispersar numa análise dupla: do conteúdo determinado pela sintaxe e do corte imposto pelo ritmo dos versos, da composição racional da frase e da composição emocional do verso.
Por sua vez «Muíi, o Ladrão» foi, segundo a nota anexada ao título, composto para o conjunto músico-teatral «Ngongo», o que veio condicionar a escolha de algumas das suas estruturas às formas de mais fácil memorização (métrica regular – 6 sílabas – e anulação de efeitos associados à poesia erudita, como o de transporte).
«Os Fabricantes de Palavras» está fixado numa dicotomia que se repete invariavelmente em todo o poema: os versos ímpares avançam com informações caracterizadoras da personagem colectiva cuja nomeação os versos pares e o título vão repetindo. Isso condiciona a articulação entre versos de modo a evitar figuras como a do transporte; por sua vez, o corte rítmico iria afectar seriamente a dinâmica própria desse tipo de composição (enumerativa, tendente a uma leitura corrida, repetitiva, ao jeito de “cantilena”).
O último dos sete poemas em causa («Post-Scriptum») não possui a figura do transporte, mas apresenta uma interposição ritmada impondo a ruptura da predicação: “vosso sorriso foi – não o mostrei – pedra no rosto”. Tal interposição, no entanto, vai contra as opções estilísticas seguidas ao longo do poema, que imita o tom de uma imprecação e interpelação impulsivas, as quais se combinam com as constantes ironias propostas e levam à construção de versos sem quebras interiores, visto serem eles lidos como descargas emotivas descontroladas – e onde, portanto, cada frase constitui uma unidade ao mesmo tempo sintáctica e rítmica.
Portanto, dos sete poemas que não apresentam figuras de suspensão, ou em que essas figuras não são dominantes, ficam apenas dois em que tal facto não se justifica enquanto consequência das limitações criadas automaticamente pela escolha de um determinado modelo discursivo, que era o que de forma mais direta se combinava com a mensagem a “exprimir”. Isso confere ao conjunto uma ainda mais clara dominância de composições onde surge o tipo de figuras que vinham caracterizando com maior intensidade os últimos dos 100 poemas.
A retoma de constantes estilísticas bem localizadas numa progressão poética anterior contribui, dessa forma, para recordar, ao leitor de Era, tempo de poesia, o locutor e artífice da antologia que agrupava todos os livros publicados antes, e que se justificava por ilustrar a evolução do artista enquanto tal. Ficam assim colocados os poemas deste livro numa espécie de sequência “natural” daqueles com que o anterior terminava.
Situação diegética
Chamo aqui situação diegética ao posicionamento desta obra face aos 100 poemas pelo que diz respeito aos referentes e à história que eles nos sugerem.
Os referentes de Era, tempo de poesia reenviam todos para o espaço inicial de identificação (Angola, particularmente Luanda, e a Huíla, sendo esta a cidade onde o livro se imprimiu). No entanto, a descontextualização dos motivos, a que me refiro atráz, ambiguiza muitos deles, dificultando a determinação de um quadro enunciativo ou “inspirador” que facilitasse a leitura do romance do autor. A reforçar as ambiguidades aparece o poema «Os Domingos deles» (p. 41), onde a terceira pessoa do plural não se esclarece inteiramente e onde o fenómeno meteorológico referido (“chuvinha precoce / Em todos os Agostos!”) se pode referenciar no espaço miticamente (e posteriormente) nomeado por Rosto de Europa, tanto quanto no declinar do “cacimbo” em Angola. Esse poema reforça, pois, o crescendo ambíguo ou descontextualizador, ao não construir uma referência definida, uma referência que não se pudesse misturar com qualquer outra das que nesse contexto eram possíveis.
Apesar disso, a inexistência de qualquer indício de uma deslocação para fora do berço inicial e a verificação de os referentes não-ambiguizados serem todos próprios do ambiente duplo dos 100 poemas (duplo no sentido de anterior e posterior à adolescência), conduzem o leitor à sugestão de uma permanência no lugar.
A primeira parte da obra (incluindo o poema de apresentação, homónimo ao título genérico) estrutura-se por uma dicotomia confirmadora da reiteração e adscrição do locutor. O tempo de poesia, que era, e o tempo posterior que fica, por ausência ou por oposição, postulado, constituem os dois pólos dessa dicotomia, e religam-nos à cisão fundadora da complexa personalidade do locutor dos 100 poemas.
Mas não é só o primeiro grupo de poemas que o faz. Nesse aspecto, todo o livro é atravessado pela dicotomia profunda que logo o título denuncia: “Era, tempo de Poesia” implica a localização do tempo que era no passado, por oposição a um presente que o não encerra.
No poema homónimo que faz a introdução da obra, a já citada oposição – anaforicamente reiterada – entre o que caracteriza o tempo anterior e o que caracteriza o posterior, apenas abre, por isso, um “fio de leitura” englobante. Ao tempo anterior são remetidos os acontecimentos que colorem uma sensibilidade intensa (o “riso interrompido antes de ser a gargalhada aberta”, o “intumescer dos vasos”, a “cólera explodida”, o “sabor na língua demorado”); ao presente se adereçam o desinteresse e a insensibilidade (sugeridos por um conjunto de palavras e expressões como “espreguiçar”; “a mão se erguer, a boca abrir”; “o fruto ser apenas alimento”). Acima de tudo, o tempo da Poesia se define pela audição de uma palavra inviolada, virgem, que talvez se tenha desgastado ou banalizado com a emergência e consolidação da persistente insensibilidade.
A sequência de composições intituladas «Tempo» vai pormenorizar esta sugestão, centrando-se no motivo da mulher (que era apenas ou essencialmente Mulher, por isso também inominada). O motivo desenvolvia-se, por sua vez, no sentido da entrega, conotada com o passado e com esta poesia (posta “contra o mundo”, contra “os fusis com ódio / Dos olhares”) e sacralizada (“sagrado ofertório”). A relação do «eu» locutor com o motivo feminino oscila entre essa entrega – entrevista – e a impossibilidade da posse, atirada para o presente e o futuro (“Não a terás jamais”; “Parar / Nas espáduas expostas”), ou alguma espécie de insensível irrealização (“Sua forma de amar / Era o enfado”), que justifica a espera desse tempo mítico em que “nós e a verdade formos um” (último verso da sequência) – tempo por referência ao qual a bipolaridade aparentemente sem saída se abre novamente para o futuro.
A dicotomia passado / presente explorada pelo grupo inicial de poemas – que sustentam o título do livro – remete-nos assim para tópicos que encontráramos na antologia anterior: o retrato sensual e ideal da mulher, a irrealização ou incompletude no amor, tudo estruturado em função da distância a que fica um passado cujas ilusões ou sonhos o presente desfizera. Trata-se, como vimos nos 100 poemas, de uma distância que funda a cisão no sujeito-locutor e lhe reclama saudosamente a re-união com “a verdade”.
Estes tópicos, reiteradores do locutor, conectam-se com outros explorados nos poemas seguintes.
Os poemas seguintes perfazem a maioria do livro, em número de 25. Só em cinco há referentes que, de forma direta, remetem para o mundo liricamente construído nos 100 poemas. Desses cinco, «Arimo Quimbare» e «Muíi, O Ladrão» ligam-se à anterioridade do sujeito apenas pelo vocabulário do título, a partir do qual enquadramos o retrato ou a história que nos sugerem num espaço geográfico já conhecido. Nos seus versos, porém – se os lêssemos isoladamente, se não fossem titulados – nada nos indicaria estarmos em Angola ou África.
Ficam, portanto, só três poemas em cujos “conteúdos” assoma claramente uma realidade familiar ao passado inscrito na antologia anterior. Dois deles intitulam-se «Turismo» e remetem o leitor informado, ou o leitor local, para a zona da Huíla, onde o livro foi impresso; o terceiro, pela presença de motivos como o cacimbo (central na composição) e o morro, evoca desde logo versos similares dos 100 poemas.
A escassez de nomeações diretas de elementos extraídos ao que os textos anteriores firmaram como o berço do locutor deve-se às opções técnicas e retóricas que estudámos. Ela dificulta, no entanto, a adscrição – pelo conteúdo – deste «eu» aos outros. Essa dificuldade será minorada, não só pela insistência em certos recursos estéticos vindos de trás, também por um tratamento dos motivos que, embora mantendo-os descontextualizados, evoca por repetição a sua anterioridade.
É o caso, sobretudo, do motivo que constitui a mulher – motivo recorrente, que se torna tópico, tendo acompanhado as produções assinadas pelo autor desde os tempos de estudante. De facto, o primeiro poema assinado por “Mário António” e publicado n’O Estudante (órgão dos alunos do Liceu) era dedicado às “setimanistas”. Foi nesse número, aliás, que “Mário António” começou a colaborar no jornal, com o poema e um artigo onde faz a crónica da visita “à nossa colónia” das estudantes “da A. E. F.”[63]. O tópico tem, como já vimos, desenvolvimentos específicos ainda antes de Era, tempo de poesia, que se vão repetir agora. Em dois dos poemas da segunda parte do livro («Vento sobre o Capim»; «E, no entanto, eu Sei») retoma-se o assunto do amor não realizado e da mulher que deseja mas impede a realização do desejo. Estes dois lugares religam a segunda sequência (“dispersa”) de composições a uma memória intra e inter textual, de um texto que a leitura reconstitui unificado pelo nome do autor e pelo percurso biográfico proposto por ele. Tínhamos visto isso já na sequência de poemas intitulada «Tempo», pelo que a sua repetição ajuda a consolidar uma ideia de sujeito único reportando-se a histórias únicas ou coincidentes, o qual nos 100 poemas tivera queixas parecidas (por exemplo, em relação à “branca”).
Também a nomeação da chuva permite estabelecer aproximações à antologia inicial, quer pelo tratamento familiar de «Chuva»[64], quer pela sua colocação opositiva em «Os Domingos deles» – onde os termos “eles” e “chuvinha” reforçam o carácter opositivo do texto. A par dela, a cidade reaparece – ainda que descontextualizada – como elemento motivador recorrente e central em «Esventrada Cidade» e «Cidade Catódica». A recorrência desse motivo inclui um dos traços semânticos mais marcantes no espaço que rodeava o «eu» e que era o da mudança desfiguradora do ambiente, a qual ajudara a provocar o sentimento da cisão no sujeito. Aqui também a cidade (logo pelos títulos) se apresenta como diferente do que fora para o locutor, reforçando opositivamente os laços entre o «eu» do tempo de poesia e o da antologia que o antecede.
Resumo e síntese: o lugar de Era, tempo de poesia na lírica de M. António
A colocação no passado do tempo de poesia (e de paixão), os lamentos perante a desfiguração da cidade, o acento posto nas figuras de suspensão (onde podemos incluir o esforço descontextualizador), remetem-nos para o reforço do papel da memória na construção poética.
A composição das referências passa a fazer-se predominantemente sobre o passado, em função dele – e por isso a coerência de significação do texto estranha o presente, num tópico já analisado pelos estudiosos dos escritos intimistas.
Mas não é somente memória e estranhamento: esta poesia reconstrói o passado, isola-o do seu contexto – num outro ponto comum com os livros subjetivos[65] – ao mesmo tempo em que deixa que a figura da cisão se vá inscrevendo na composição dos versos em contraponto e complementaridade com a do transporte. Ou seja, ela sustenta-se numa memória criativa que aproxima do vago, do sonho (na medida em que liberta da realidade estritamente visualizável) os elementos identificadores iniciais e que, ao mesmo tempo, continua a eleger técnicas que remetem para a consciência de um corte, de uma quebra na continuidade temporal que poderia garantir a similaridade pessoal. Ela remete para uma memória recriadora, cindida e saudosa de união.
A diminuição da visibilidade dos motivos irá ser intensificada pela progressão descontextualizadora, aumentando por compensação o papel dos identificadores que o são por tornarem visível o que já não o é, ou seja, o papel do sonho, da saudade e da própria poesia.
Não se renovando, no entanto, a cisão – mantendo-se pressupostos os motivos de uma cisão anterior, mas não surgindo motivos que provoquem um novo corte identitário – a retoma de elementos definidores de uma personalidade anterior fica sem inovação no âmbito da obra. Esta coloca-se, por isso, principalmente como “resto” ou “anexo” da antologia formadora, não indiciando, nesse aspecto, a progressão posterior da lírica assinada por M. António, nem da «autobiografia» que ela irá sustentando.
A diferença entre este “anexo” e a lírica posterior observa-se com mais nitidez se a colocarmos ao nível dos géneros ou espécies arquetípicos para que ela nos remete. Se a lírica dos que chamaremos os “livros de itinerância” irá sustentar uma leitura autobiográfica do “romance de autor”, Era, tempo de poesia surge mais como um “post-scriptum” aos 100 poemas. A sua função aproxima-se da que Beaujour aponta aos vários volumes dos Essais de Montaigne (pp. 113-126). Cada novo volume, cada novo conjunto, reescreve, emenda, acrescenta, enfim, reformula fragmentos do anterior, apelando à noção de memória intra-textual, que reorganizaria os mesmos conteúdos de uns textos para outros. Por isso entendi que este livro, funcionando como uma espécie de satélite do anterior, inclui-se ainda na lírica inicial, em que a figura da cisão ganha corpo no tempo e no sujeito mas ainda não se vê espacialmente representada pela imagem da deslocação.
O mesmo sucederá com o poema-livro Nossa Senhora da Vitória, que, ao repetir na terceira pessoa a representação do momento fundador da crioulidade mestiça, faz um “post-scriptum” aos 100 poemas, ou melhor, reescreve sem grandes alterações uma das componentes principais do seu “conteúdo”.
Os livros de itinerância
Recuperar a representação espacial dos movimentos de trânsito e recurso, sustentados na refuncionalização ou actualização dos sentimentos de queda e saudade, é fundamentar a copulativa dos livros publicados posteriormente aos 100 poemas e anteriormente à antologia final, 50 Anos 50 Poemas. A conexão generaliza-se, pela familiaridade da temática e dos motivos, de cada um desses livros entre si para a consensualização entre cada um deles e a antologia anterior, emergindo das comparações a imagem do «macro-texto» que toda a lírica assinada por M. António constitui, burilada como está por constantes recorrências que retrovertem para uma memória que seria «intra-textual» em relação a esse «macro-texto».
Ao passo que os trânsitos e recursos pontilham de livro para livro, no interior das obras a dinâmica duplicidade que eles instalam à sua passagem fica também marcada, construindo-se assim um conjunto de “sintagmas disjuncionais” (na acepção greimasiana[66]) cuja amplitude pode ser menor que a do poema e maior do que a de cada obra.
Nesta perspetiva consideram-se agora quatro obras fundamentalmente: Rosto de Europa, Coração transplantado, Lusíadas e Afonso, o Africano.
É certo que, no campo delimitado pelo nosso interesse (o da poesia lírica em verso), há mais duas obras a considerar neste período. Mas o livro Era, tempo de poesia, publicado no Lubango em 1966 pela Imbondeiro, nem sempre é referido nas obras seguintes[67] – o que se pode explicar pelo facto de os seus poemas serem datados de 1963 e poderem incluir-se, como acabamos de ver, na “poética” da última fase dos 100 poemas; Nossa Senhora da Vitória : Massangano, 15 de Agosto de 1968, resume-se ao poema homónimo, o qual não aparece em qualquer outra recolha, e trabalha uma referencialidade típica da antologia inicial, até pelo esforço de objectivação social da crioulidade que, como já vimos antes, constitui. Pela maneira de se relacionarem com o resto da obra nas indicações bibliográficas facultadas nas capas e badanas dos outros livros, e pela própria produção, somos levados portanto a pensar que o organizador dos mesmos nos queria deixar a ideia de ocuparem estes dois livros um espaço anterior e intervalar, que por esse motivo não é incluído entre os quatro que me parecem mais ligados e que no parágrafo acima nomeei.
Os recursos de capa e os processos de «ancoragem» do locutor.
Destas quatro obras, as duas primeiras mimam a partir do título, como referência, outro espaço que não aquele em que se forma a identidade cindida do locutor da antologia inicial. As duas últimas nomeiam (como as primeiras), logo nos poemas de abertura, espaços diferentes de Luanda ou Angola ou África. E não só espaços diferentes do inicial: cada uma localiza o locutor numa região do mapa diferente da que localizava a escrita no livro anterior.
A deslocação anunciada pelo início de cada obra contrapõe-se na capa ao nome do mesmo sujeito público da primeira antologia, de Era, tempo de poesia e Nossa Senhora da Vitória («M. António», como sempre surge nas capas dos livros).
Nos dois primeiros livros, tal nome também não vem só: na badana de Coração transplantado, a face que figura o autor público encima um extracto de um artigo de Roger Bastide sobre Rosto de Europa, indicando-se explicitamente isso antes da citação; também no final, como é hábito fazerem muitos poetas, estão incluídas duas recensões sobre a obra de Mário António – uma de Natércia Freire[68], outra de José Blanc de Portugal[69] – ambas acolhendo os 100 poemas, antologia que por sua vez terminava já com um artigo de Amândio César e outro de Alfredo Margarido, numa “Marginália” (título que se vai repetir em Rosto de Europa nomeando uma secção idêntica) onde os títulos dos artigos apontam a existência do “poeta angolano Mário António” e da “poesia de Mário António”. Em Rosto de Europa a badana traz, no mesmo lugar onde surge em Coração transplantado, um rosto idêntico – então ainda numa fotografia nítida – que encima diversos extractos de recensões à obra assinada por Mário António – incluindo a Era, tempo de poesia. De novo em Coração transplantado, uma bibliografia já extensa liga toda a obra do autor à sua figura (incluindo todos os livros de poesia até então publicados, ficção e ensaio, dando-se assim notícia da existência de uma figura pública mais vasta à qual deveria começar a ser associada em Portugal aquela poesia, que não era portuguesa mas crioula de Angola).
O recurso a tais artifícios, que podíamos chamar “de ancoragem”, prolonga-se depois em Afonso, o Africano através de um extracto de uma obra do ensaísta e publicista americano Russell G. Hamilton[70], e de outro de uma carta de um amigo sobre a poesia do autor. A introdução do último elemento reforça agora a sugestão de uma correspondência autêntica entre o ser social e transcendental Mário António e o «eu» lírico dos poemas, dado que transcreve um documento da esfera do privado.
Em Lusíadas o recurso à paradoxal intimização das capas fora levado a um extremo: uma carta de Heitor Gomes Teixeira e, na contra-capa, um poema de homenagem (supõe-se que inédito) subscrito por alguém que se representa em nota seu professor “em Luanda, 1950”[71]. Passando do registo público ao privado – e, portanto, do social ao mais intimamente biográfico, ao menos “civil” – o processo de “ancoragem” faz com que a imagem que podemos criar do autor não se limite à receção da sua obra na imprensa (ao sujeito público) mas fique integrada numa teia de relações pessoais que figuram um círculo de amizades cuja existência confirma ao leitor a correspondência entre uma figura pública inserida afectiva e biograficamente numa sociedade e o sujeito lírico dos versos, o mesmo para todos os livros.
A unidade sujeito / obra, naturalmente aceite pelos leitores comuns a partir de elementos tão simples como o nome que se repete, encena-se ainda em Lusíadas pela colocação, após o extracto da carta de Heitor Gomes Teixeira, de uma indicação bibliográfica, “mínima”, que aponta os 100 poemas, Rosto de Europa e Coração transplantado. A indicação mínima final estabelece o percurso mais significativo do que a bibliografia já extensa do autor, indicada na p. 4 de Coração transplantado, possibilitava. Ela dá, portanto, uma primeira orientação valorativa de leitura sobre o conjunto da obra, uma sua primeira escalonação, após a que fora facultada pelo antologiador dos 100 poemas.
Trânsito e recurso no interior das obras
A nomeação de um espaço novo pelo início de cada livro (novo em relação às obras anteriores), associada aos factos apontados acima, reitera ao leitor a existência de um mesmo sujeito social, com a sua história própria, sugerindo uma leitura narrativa do percurso do “poeta” que se estende sobre o conjunto (desde a primeira antologia até Afonso, o Africano) – instrumentalizando, não apenas a funcionalização do visível como condição do dizível, mas a deslocação espacial enquanto origem transcendental do “impulso poético”.
A localização inicial do «eu» num novo espaço, se sobre ela isoladamente meditasse, podia confundir o leitor acerca da identidade do locutor com a sua história. Por isso analisaremos agora, na conjugação das quatro obras, como é feita a ancoragem do «ego» de cada uma à do sujeito lírico dos 100 poemas – para além dos recursos de capa sinalizando-nos o mesmo sujeito público organizador da antologia.
A narrativização das obras pela distribuição da referência a novos espaços no interior de cada livro é acentuada e contrastada pela presença nos mesmos de elementos que participaram do “ovo” inicial e cuja ocorrência cativa, portanto, uma memória intratextual estendida sobre toda a obra lírica assinada por M. António. Essas referências recursivas estão por sua vez distribuídas de dois modos: ou indistintamente, ou especificamente (sendo-lhes reservado um espaço próprio, o equivalente ao capítulo de um ensaio ou de um romance). Lembrando-nos do que dissemos nos dois capítulos iniciais, podemos associar uma recorrência indistinta, caótica ou aleatória ao género lírico, e uma recorrência específica, localizada ou seriada ao género narrativo.
O primeiro e o terceiro livro citados utilizam apenas uma distribuição lírica (indistinta) das recorrências; o segundo e o quarto acumulam a distribuição lírica e a específica (ou narrativa).
O Rosto de Europa
O constante vaivém entre referências à identidade, ou aos identificadores iniciais – e referências a novos espaços e novas realidades, pode ser estudado em pormenor em Rosto de Europa, aí se distribuindo liricamente, por um acaso, os “retornos” da palavra ao berço de origem.
Nesse livro, logo o título subtilmente carimba a chegada a uma nova referência. Mas uma referência que – depois vê-lo-emos – também não é unívoca. Textualmente isso marca-se pela figura da acumulação semântica: para além da cópula, direta, entre “Europa” e o continente onde está Lisboa, a fundamentar um dos veios de significado; adscreve-se-lhe o mito de Europa que, pela sua natureza (reconhecida no uso de [de] em vez de [da]), alerta para a já notada interposição de estruturas míticas em escritos auto-centrados; e, finalmente, reelabora-se o círculo de identidades literárias para reescrever o verso europeu de Fernando Pessoa (que será citado no livro seguinte): “O rosto com que fita é Portugal”.
O título insere, portanto, a assinatura do autor num espaço novo míticamente caracterizado, em mais uma coincidência com os escritos intimistas (Beaujour). Mas, ao mesmo tempo (e também por causa da caracterização ser mítica), insere-o numa comunidade literária nova (a do mito de Europa e a da Mensagem). Assim, ele mantém a identificação simultânea que alicerça a eficácia do artifício na sugestão de “autenticidade”: ao locutor enquanto pessoa inserida num espaço físico específico soma-se o poeta em diálogo com uma determinada comunidade literária.
A escolha do termo “rosto” remete, ainda, para o sujeito lírico dos 100 poemas. Pela regra da ocularidade; por ser o rosto um dos pontos de união entre pai e filho no poema «Retrato»; pela velha fotografia das «Donas do outro Tempo». Alertando para a pertinência da ocularidade, num livro onde ela será refuncionalizada, o título mantém igualmente as relações cúmplices entre os escritos de M. António e os livros “intimistas”, onde essa característica é fundamental.
A seguir ao título, o poema inicial sugere a presença de um locutor não-europeu, primeira característica a propor, no miolo da obra, a identificação com o M. António dos 100 poemas: “Eis que te aprendo, / Europa, / Eis que te aprendo!”. Esta passagem de Rosto de Europa é utilizada por Manuel Ferreira para exemplificar a adesão a valores europeus; como vemos, ela funciona apenas enquanto conotadora do locutor “novo” do livro com o “antigo” da antologia. A Europa que ele aprende é a Europa que ele apreende, com os “olhos mulatos”, não a que lhe confisca os valores. Veremos, mais adiante, como tal apreensão, longe de alienar a valores estranhos, é pelo contrário a via que universalizará uma percepção crioula da realidade, redescobrindo em D. José o marajá desterrado. Mas regressemos, por agora, ao estudo dos artifícios que o texto articula para identificar o seu locutor a um sujeito lírico anterior.
Em «Lição» (segundo poema da colectânea) se começa a especificar mais a figura deste “novo” locutor: “Onde o mistério, se olhas / Com teus olhos africanos / Pra ti apenas?”. Não se trata, pois, só de um não-europeu, mas de um africano que pela primeira vez conhece a realidade europeia e os seus mitos através do rosto dela, Portugal.
A situação de aprendizagem é repetidamente representada no livro, mas sobretudo até ao poema «Universitária» (p. 17). As suas características são peculiares e merecem mais atenção da nossa parte, porque representam a refuncionalização das dolorosas cisões que formaram o «eu».
Ela parece exigir primeiro um “esquecimento”, uma paragem, uma oclusão da identidade afecta ao território identificador inicialmente referenciado (a identidade dos “olhos africanos”), a qual evitaria o condicionamento ao passado (Krishnamurti) para libertar a aprendizagem da violência do conceito (Fedida) pré-estabelecido. O texto configura aqui uma forma de conhecimento que se pode, na verdade, conectar a diversas tradições – entre as quais a do povo peul , para o qual a aprender implica deixar-se, quanto possível, de se ser o que se é, e esquecer-se o que se sabe[72].
A aproximação a um sábio africano demonstra como não nos podemos alicerçar nesta postura de M. António para defender que ele se estava a afastar de alguns valores de África. Pelo contrário, ele estaria a reutilizá-los para apreender a nova realidade, coisa que faz com entusiasmo mas sem deixar de se sentir saudoso do «colo» de origem, como se verificará pelo que iremos dizer adiante.
Essa não é, porém, a única aproximação que podemos fazer entre a postura de «pasmo» veiculada aqui e a delineação da aprendizagem nas diversas tradições, como vimos. Para que ressalte mais nítida a configuração desta “epistemologia”, convém compará-la com as outras de que temos conhecimento e que se lhe assemelham – estruturalmente ou referencialmente.
O trabalho de Fédida, a que aludi atrás (O Conceito e a Violência) centra-se mais numa relação de conhecimento que implica a existência de um pensamento sistemático e mecanicista, mas não necessariamente um passado pessoal, incluído por Krishnamurti na totalidade englobada sob a designação de “condicionamento”. Porém, aqui, trata-se de um passado pessoal, que se conclui ter de impugnar momentaneamente enquanto substantivo, por método ainda africano, esquecendo a preocupação de o harmonizar com o presente, que será comentada mais tarde.
Para além desta diferença, o livro de Fédida está empenhado em leituras psicanalíticas, podendo conduzir-nos ao erro de confundir um processo de aprendizagem com o conceito clínico de perversão, o que sucederia se integrássemos o «apagamento» momentâneo da personalidade numa dialéctica de construção e deconstrução de conceitos que constituiria um fim em si mesma. Para conceber as coisas dessa forma, terá igualmente contribuído a leitura que Fédida fez de Sade, Masoch e Deleuze, mas a ideia não é aplicável à lírica de M. António, onde a sugestão de «apagamento» é um meio e constitui-se provisoriamente, integrada na dialéctica da cisão e da saudade.
As experiências realizadas pela Psicologia Experimental em torno das reacções de «feed-back», ou recuperação do espanto, aproximam-se mais do tipo de processo aqui imitado ou sugerido. Trata-se de experiências que a prática televisiva rentabilizou e vulgarizou em programas que consistem em apanhar (daí chamarem-se «apanhados») de surpresa alguém desprevenido a quem se provoca o espanto perante algo inédito, gravando-se depois as tentativas de reintegração do facto na “normalidade” conceptual das vítimas. A reintegração na normalidade é também significativa, porque ela quase sempre consiste em encontrar curtas narrativas explicadoras que reinterpretam o imprevisto e o integram no previsível – neutralizando, assim, a causa do espanto, recondicionando o sujeito na reincorporação do passado (do que sabia).
Mas, mais perfeitamente ainda que a descrição da Psicologia Experimental, a realização poética de Alberto Caeiro configura este “método” de aprendizagem não-escolar, estribando-se na decomposição da semântica dos substantivos abstractos (como Natureza, Deus, Amor) para encontrar as realidades singulares que a cada momento os substituem ou encarnam. A sucessão de negações de «O Guardador de Rebanhos» é uma sistemática série de técnicas de apagamento dos conceitos para reconceptualização posterior sob o alibi do concreto.
A imputação de alienismo à lírica itinerante inaugurada por este livro não percebeu que o método é o mesmo de Caeiro (ou de Krishnamurti, ou dos peul), só que aplicado a, e por, uma biografia cultural própria, em função da representada presença do narrador num espaço novo. Ela parte de uma mal interpretada biografia para desvirtuar a natureza do processo – substituindo a onticidade pela eticidade, que não está em jogo ainda.
A particularidade lírica dos livros de itinerância é, pois, derivada de uma história cultural específica, de raiz e formação angolana. Em Alberto Caeiro trata-se de um movimento psíquico no interior da cultura de um dado sujeito, nestes livros de M. António o processo é o contorno que adquire agora – perante “novos mundos” – a figura da cisão entre o sujeito e o seu passado no entrechoque de culturas diferentes (e também semelhantes, como depois se verá). O «apagamento» do «eu» para abrir a mente ao conhecimento (o que Pessoa propõe através da figura da negação) provoca um afastamento face ao passado que põe em causa a própria personalidade anterior – ainda que seja por momentos – abdica dela como o budista faz para atingir o que vive além do pensamento.
E, por detrás da abdicação, está, não qualquer escola filosófica ou mística europeia, mas a condição de visibilidade legitimando uma nova cisão perante o “fundo / (...) que jazia / Dentro de ti”, cisão que visa habilitar a “pessoa” para que ela se torne mais transparente no seu encontro com a realidade, que nunca vira, ainda quando o sangue lh'a anunciasse. A figura da cisão, e a sequência que com ela se inicia, vindo a reatar o «eu» ao locutor dos 100 poemas, coaduna-se por isso melhor à imagística de José Marinho na Teoria do Ser e da Verdade, particularmente a do trânsito e recurso. Aí se defende que não há cisão sem saudade, e que cada novo trânsito implicará o complementar e contrapolar movimento de recurso ao que se deixou. Portanto, não há afastamento do sujeito (em relação a si próprio, ou em relação ao mundo) sem o movimento que ao mesmo tempo repõe a união ou reunião do sujeito. Isso mesmo se confirma pela atenta observação dos poemas iniciais do livro.
A ideia de apagamento da identidade inicial e dos seus identificadores é sugerida nos dois poemas que seguem o quadro traçado pelo primeiro: nas duas últimas das três estrofes de «Lição», nas duas últimas das cinco estrofes de «Para depois». Mas trata-se já de um apagamento que, na configuração macro-textual do autor, nos remete para o sujeito que se oclui ou oculta (porque, na verdade, não está relegado mas escondido), facilitando a ancoragem do «eu» dos poemas ao locutor da antologia. Não é, pois, um “apagamento” em absoluto porque, ao nível da receção, o processo é inverso: a tentativa de esquecer a personalidade anterior evoca no leitor essa mesma personalidade.
Por outro lado ainda, o apagamento provoca um ilhamento no passado da identidade pessoal, como logo em «Invernal» fica explícito: “Resto-me inteiro em meus cacimbos idos” (p. 21). O verso transcrito constitui igualmente a revisitação do «eu» anterior após as referências à necessidade do seu esquecimento ou adiamento, mais uma vez dando razão a José Marinho quando afirma que a cisão é sempre acompanhada por um processo unitivo (ou reunitivo) que lhe responde e a completa.
Após o breve apagamento, o que inevitavelmente se segue é o retraçar do corpo como reidentificador da pessoa e da sua anterioridade, a par da inserção dessa pessoa (actual e anterior) na geografia nova, quer através da sinalização da mestiçagem (por referência ao sangue[73], ou por designação direta[74], ou da crioulidade[75], quer através da reafirmação dos traços africanos distintivos[76], ou da projecção trans-histórica[77]. Uma inserção que, no entanto, não é plena, denunciando a subjacente presença, ilhada mas inteira, da primeira identidade, a dos crioulos ou dos angolanos que cafrealizaram a cerveja e ficam, no novo espaço, isolados e saudosos, o que se figura em «Ninguém se ri como nós».
O retorno da locução à identidade que nos 100 poemas se firmara por constantes cisões, e ao mesmo tempo a reiterada adscrição do locutor ao sujeito público da antologia, incluem como não podia deixar de ser a reafirmação do «eu» como poeta – central, já o víramos, para a reunião da identidade cindida. Esta reafirmação preenche duas composições colocadas muito próximas no livro (apenas fica entre elas outro motivo fundamental da antologia, e do livro que se lhe segue: o amor).
Em «Não eram palavras, não» (p. 57), evoca-se explicitamente o “rapaz de quinze anos” no qual se manifestara a dactilografia táctil da vocação lírica. Mas também a crença na transparência inicial das palavras, ou a conotação entre a poesia e o sonho, remetem para momentos similares da bibliografia anterior.
Em «Era só isto» (p. 61) é de igual modo a conotação da poesia com o sonho (onde o “só” denuncia o fim da ingenuidade inicial) que remete imediatamente para os 100 poemas, a par da conotação entre escrever os versos e dar-se, já explicitamente fixada na «Carta do Afogado».
Estas recorrências contaminadoras não evitam a dedicação geral dos versos à aprendizagem e inserção do «eu» em um novo espaço, inserção que perturba inevitavelmente as certezas em que se fundava a primeira identidade. O movimento unitivo, saudoso e reidentificador só se completará se atentarmos no outro livro assinado no mesmo ano pelo mesmo nome: Nossa Senhora da Vitória.
Trata-se, como já disse, de uma redescrição – na terceira pessoa – da história formadora da crioulidade local. Objectivada pela recuperação de um mito (o da origem do nome de Massangano), ela evita que o texto seja repetitivo em relação aos 100 poemas, onde a formação da crioulidade é retratada por uma história pessoal e familiar.
A relação entre os dois livros contemporâneos é firmada na conjugação dos conteúdos por eles propostos. Rosto de Europa fala na partida de um crioulo mestiço de Angola para Portugal; Nossa Senhora da Vitória fala na mistura dos portugueses com africanas e na transposição do culto mariano para Angola. Eles narram, portanto, movimentos efectuados em direcções inversas. Como diria Yeats, “um ser correndo para o futuro cruza-se com outro que corre em direcção ao passado”.
Tal facto é tecnicamente acentuado pelo envoltório de cada livro. Rosto de Europa não guarnece com datas os poemas; Nossa Senhora da Vitória tem como subtítulo uma data e um local: “Massangano, 15 de Agosto de 1968”. A data (15 de Agosto) evoca o título de um dos 100 poemas, e a preocupação de condicionar a leitura pela data remete-nos para outros livros de poesia lírica em verso anteriormente publicados pelo mesmo nome. A importância da localização espacio-temporal fornecida pelo subtítulo justificará, complementarmente, a ausência de referências à data de impressão e publicação, como que frisando tratar-se de uma obra que deve ser lida pela simbólica data em que se indica ter sido escrita (sendo a outra desnecessária, por insignificante). Os livros parecem, pois, organizados de forma a simetrizarem-se, simulando um o trânsito que determinará as obras seguintes, e firmando o outro o recurso que recupera a definição (cultural, racial e genealógica) da existência do sujeito enquanto ser social e histórico desenhado pelo e como o «eu» dos 100 poemas.
O Coração transplantado
Em Coração transplantado, o “capítulo” especialmente reservado às marcas de anterioridade é constituído pelas quatro canções finais em versão bilingue (quimbundo e português), que formam a segunda parte da obra e remetem para a terra de formação do locutor dos 100 poemas. Esse capítulo faz o contraste com o resto da obra, onde se anotam liricamente impressões de uma viagem a Londres e recordações que durante ela o sujeito ia tendo acerca do seu passado.
As composições em quimbundo e português estão separadas das anteriores por uma breve explicação que monta o cenário no qual elas teriam “acontecido”. Trata-se de uma nota fundamental por três motivos: pela neutralização do conceito de autoria individual, para que concorre; pela sugestão narrativa transmitida ao inserir os poemas numa história pessoal que é aquela que vimos acompanhando; pela renovada colocação do sujeito entre culturas.
A neutralização do conceito de autoria individual obtém-se, na nota, pela atribuição de co-autoria a Dª Maria da Conceição Abreu[78], “que nunca pensou em fazer versos”. Ao dar estes como “acontecidos”, o texto adjectiva o processo criador de si próprio pela “transplantação cardíaca” havida entre os dois (autor e co-autora), não pelo somatório dos resultados alcançados com a adição de duas individualidades artísticas. A “paternidade”, ou responsabilidade pela criação, fica transferida portanto para a situação em que se encontrariam os dois intervenientes do pequeno “quadro” que a nota cenicamente esboça. Cenicamente, quer dizer: dramatizando, compondo um cenário, como fazem os autores de peças de teatro, ou recordando a indicação de cenas “inspiradoras” em dedicatórias de poemas ultra-românticos no século XIX em Angola, composições onde essa indicação era inseparável da leitura do conteúdo.
A dramatização da circunstância biográfica referida como “inspiradora” evoca ainda uma origem apresentada como socialmente conhecida (pelo nome que se atribui à outra personagem), sustentando o reenvio do leitor ao sujeito público Mário António e suas complexas histórias de amor – e reafirmando com tais meios a sugestão de autenticidade que a lírica auto-centrada, ou subjetiva, promove. O recurso tem, pois, uma função dupla: sugerir uma situação “autêntica” (ou seja: para a qual se indica uma correspondência no mundo real) e colocar o locutor como personagem de uma “cena” que assume ela própria a responsabilidade pela criação dos versos.
Em qualquer dos dois casos, a “cena” (ou “cenas”) que a nota sugere realiza a regra da ocularidade atrás citada, tornando visível uma situação na qual o reidentificador (a língua quimbundo) é recuperado (recorde-se a “velha fotografia” a partir da qual se evocam as donas do outro tempo, ou o “retrato” a partir do qual se evoca o pai).
É também dupla a sua relação com o passado do sujeito público dos 100 poemas.
Uma vez que aparece aí como um dos protagonistas de “sessões de informação linguística” sem nos indicar o exacto papel que teve em tais sessões, o leitor não familiarizado com a biografia do sujeito civil Mário António é levado a recorrer aos contextos literários de que dispõe (os livros anteriores) se quiser esclarecer os pontos deixados em aberto. Ao fazê-lo, é conduzido pelo “romance auto-biográfico” a pensar num crioulo que insere por vezes palavras ou frases em quimbundo nos seus versos, e que transita de Luanda para Lisboa, de Lisboa para Londres e que, portanto, ao ter “sessões de informação linguística” com uma personagem feminina de nome português, estará previsivelmente a ensinar-lhe uma das línguas da sua terra.
A realidade literária induz assim o leitor a fundir a figura do autor e a do professor de quimbundo, que contracena com a caracterização do sujeito lírico inicial de Rosto de Europa. Exploremos a diferença para descodificarmos com maior nitidez a nova colocação do co-efabulador das canções tradicionais e paralelísticas em que funde as duas línguas.
O Rosto de Europa vê nele um aprendiz do espaço local: “Eis que te aprendo, / Europa, / Eis que te aprendo!”. Na segunda composição da colectânea («Lição») rotula-se a relação de aprendizagem do novo espaço através do título, sugestivo, o qual se repete quase no fim (verso 18), acrescentando-se-lhe a qualidade inaugural (“primeira”). A situação de aprendizagem representa-se ainda, em contiguidade, por «Estudo» e «Universitária», títulos de evidente conotação.
A mudança de papéis efectivada de um para outro livro (a passagem da discência à docência) espalha no ar a imagem de uma progressão qualitativa no novo ambiente – quer da personagem central, quer de elementos que, diacriticamente, podem presentificar o seu espaço anterior de identificação. Ela é também a progressão da aprendizagem do “outro” para a propagação do próprio. Mas, principalmente, essa mudança de papéis prende-se a um dos traços semânticos característicos da nova colocação do sujeito.
Na verdade, situando-se agora perante espaços antes apenas desconhecidos ou adivinhados, e revendo em face deles o que o define, o locutor fica na posição em que se encontrava o colono ou reinol, ou o estrangeiro, na terra que recorda. Havendo firmado a sua identidade no espaço e em função do espaço, tem agora que revê-la perante outros lugares realizando-a no tempo. Fá-lo pela verificação comparativa da sua existência textual, e pela actualização dos identificadores que vão situá-lo enquanto pessoa própria, diferente das que predominam no novo meio. Ensinar ou escrever quimbundo fora de Angola, e fora de África, é recordar uma das componentes culturais onde a crioulidade em que se filia se baseou (é, afinal, equivalente ao levar o colono consigo a Língua e a Escola), e simultaneamente refuncionalizá-la perante outro ambiente e outra era, a do país de lágrimas e névoas.
O que estraga toda esta leitura, que é ainda a de uma circunstância, é um dado extraível à biografia pública da figura jurídica que assina o livro. Quando se investiga, junto aos que lhe foram próximos, a crónica da vida civil de Mário António ouve-se que, em tais “sessões de informação linguística”, ele aprendia quimbundo com a sogra, angolana. Mais, os poemas que o sujeito civil escreveu em Londres, escreveu-os enquanto ali residiu ao abrigo da concessão de uma bolsa para ... estudar “línguas africanas”![79] Na verdade, terminado o seu curso, no Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina, foi convidado para professor dessa língua[80], facto que o terá desiludido, pois esperava que lhe fosse entregue a leccionação de outro tipo de cadeira (mais central, e teórica, e para a qual estivesse melhor habilitado)[81].
O significado público imediato da produção de todos os poemas de Coração transplantado é, pois, muito diferente do significado literário que extraímos à inserção daquela nota, introdutória dos que foram escritos em quimbundo e português. No entanto, as aprendizagens que o sujeito realizava (em Londres e Lisboa), visavam habilitá-lo à nomeação que recebera e que o colocava como professor da «língua da terra» – função que viria a exercer. Ou seja, iam torná-lo naquilo que a nota introdutória aos poemas desenha já: um professor de quimbundo. Isso reaproxima a biografia textual da pública: pelo artifício literário, o autor conduz o leitor a pensar que ele é professor de quimbundo, função que no entanto se prepara para exercer. Os factos relativos à preparação serviram-lhe para figurar o posicionamento social da execução da tarefa – processo garantido através da ambiguidade criada pelo nome da interlocutora (que não tem nenhum traço banto) e pela oclusão das funções reservadas a cada personagem na cena desenhada pela nota. Confirmando que a autobiografia faz uma versão livre e original da vida do locutor, ele posiciona ainda os poemas em quimbundo e português, possivelmente escritos antes da viagem a Londres, após aqueles em que a capital britânica é citada; isso equivale a inverter a sucessão: tornar a viagem a Londres anterior às “sessões de informação linguística”.
O alcance deste processo é maior do que possa parecer à primeira vista, requerendo o aprofundamento da sua análise, mesmo nas precárias condições de pesquisa que são sempre as de quem procura saber o que foi uma vida. Centremo-nos, portanto, no texto para dele extrairmos, integrando-o no conjunto das obras, outros significados.
A comunicação do esforço educativo realiza-se ao nível da oralidade (o que as “sessões de informação linguística” sugerem), dispondo assim o quadro de acordo com o tipo de transmissão de sabedoria que o sujeito inicial procurara, e de acordo com a transmissão tradicional da sabedoria. A fixação dos poemas em caracteres escritos irá, por sua vez, garantir a entrada de uma língua ágrafa num sistema de comunicação que fora aquele através do qual a personagem autoral recebera a cultura exógena, imposta pela mãe no seu berço de origem. A menção a uma situação englobante – dada como inicial e dominada pela oralização – completa-se em face da situação enunciativa real: a publicação dos versos (e respectiva tradução), o transporte do quimbundo para a escrita e para a instituição literária.
Efectivamente, a fixação escrita do que podia ter sido uma das línguas da “avó negra” inclui a transposição para o sistema literário de um organismo que não era integrado nele, para além dos subsídios dispersos que lhe reservou. Esse organismo é a língua quimbundo. Com ela, outros elementos oriundos da cultura tradicional (e, por coincidência, alguns também da lírica medieval e da lírica popular portuguesas) são introduzidos num «esquema» poético, em princípio, exógeno. Pelo que não foi só a língua que se transplantou para o sistema literário, foi sobretudo uma cultura – e daí que o transplante exista ainda nas traduções em português.
A motivação dos poemas aponta para tópicos da tradição africana da zona de Luanda: o «cão cabíri», a quem o locutor se associa e cujo nome não se altera ao passar para o português (demonstrando que esse é um português angolano); a expressão proverbial ou aforística, em versos como “O coração da pessoa não é um coração de leão”, ou “Sou um velho escravo dos avós”, redimensiona a sabedoria tradicional e recorda-nos os ensaios de Mário António Fernandes de Oliveira sobre a “pura poesia” que das analogias aforísticas se extrai (semelhante às das quadras populares portuguesas, como um dia tive oportunidade de anotar[82]); as figuras mitológicas, entre as quais avulta a do leão, radicam-se na mesma geografia; a imagem do sol associada à da “filha” recorda as histórias tradicionais em que entra “a filha do sol e da lua” – uma das quais vertida para português no livro Mahezu.
Como em segunda raiz, a motivação amorosa e a auto-comiseração destes versos entroncam na lírica anterior e reafirmam, por essa via, o contrato de leitura que leva a associar o «eu» dos versos a M. António. A auto-comiseração, como sombra de um tópico muito marcado nas literaturas brasileira e portuguesa[83], alerta-nos já, ao nível do “conteúdo”, para o cruzamento que este retorno ao passado institui, pois ela também não está ausente da cultura tradicional, nomeadamente em certas preces e cantos líricos entoados por mulheres (v. Raul David).
Mas é ao nível das formas que o transplante se efectiva mais claramente pelo encontro das culturas em contacto. Elas possuem uma estrutura paralelística evocadora, quer da repetição característica de composições tradicionais africanas, quer das cantigas de amigo portuguesas, que no século XX foram reformuladas em poemas de quartetos, quadras ou tercetos – precisamente os tipos estróficos destes[84]. O mesmo processo pode ser revisitado em Agostinho Neto, num poema escrito exclusivamente em português[85], e na conhecida «Canção de Sabalú» publicada em 1958 por Mário Pinto de Andrade[86]. Pelo que a sua ocorrência, cruzando referências literárias e orais europeias e referências tradicionais bantos, sinaliza uma tendência comum aos poetas angolanos da formação imedatamente anterior à do Mário António da Mensagem, poetas que procuram transmutar em literatura formas dessa tradição.
O transplante é, no nosso caso, total: o oral passa a escrito; o tipo de composição normalmente associado às tradições bantos é transformado pela integração dos seus elementos em conjuntos definidos por regras próprias de um sistema que lhes era exógeno, um sistema literário europeu; e, com tudo isso, o colonizado está na situação que definia na sua terra o colonizador, transformado igualmente em propagador de elementos de uma das culturas de origem, bem como da sua anterioridade poética, garantidos enquanto identificadores pelo já estudado processo de associação entre a memória voluntária, a saudade, a poesia e a escrita – elementos de origem e conotação diversa cruzados pela mentalidade cindida do sujeito.
Estando, porém, numa situação idêntica àquela em que se encontrava o colono no berço de origem, ao cruzar esses elementos num conjunto novo (e inicialmente exógeno) de regras, o locutor diferencia-se do colono que, mais do que os elementos da sua cultura, propagava as regras às quais procurava subordinar o novo. Esses poemas funcionam, portanto, mais do que como garantes da identidade no tempo, como uma espécie de figura metonímica do que o título da obra assinala: o transplante de um coração, que já não é o mesmo ainda quando seja a recordação do mesmo, visto que se condicionou a novas determinações em função de novos ambientes.
A conclusão do livro através de composições (neste caso bilingues) que fazem a metonímia do significado geral da obra (a transplantação de uma biografia de África para a Europa) não é também descoberta inédita, visto que Rosto de Europa (o livro anterior) termina dessa forma: os poemas «De Zero a Zero» e «Regresso» dão-nos a imagem do conjunto: um regresso a um sítio nunca visto – embora anunciado pelo sangue, pela mestiçagem – e um percurso duplamente de “zero a zero”, porque viagem metalinguisticamente do silêncio para o silêncio (como toda a obra o é para qualquer poeta enquanto sujeito público), e porque nessa metalinguagem o “voo”, “Cruzando, inalcançado, um Infinito”, é associado ao próprio destino da personalidade – caminho entre não-ser e nada como entre dois abismos comparáveis. A conclusão idêntica dos livros, como repetição de um recurso, tem a função de uma “marca de adscrição”, ou de “ancoragem” do «eu» de cada obra ao das obras anteriores onde o recurso fora já praticado. Dizemos, portanto, que é o mesmo poeta porque é o poeta que usa os mesmos artifícios.
A função das composições em quimbundo é, retomando o fio, em Coração transplantado, a de potenciar a mistura, proporcionar a inversão de papéis e metonimizar o livro espelhando o transplante do coração do poeta para o seio de outro sistema que não o que o definiu de início. O quimbundo é, neste aspecto, não um identificador, mas um reidentificador, na medida em que revitaliza o passado identificador do sujeito num presente que o não comporta mas permite reestruturá-lo.
Enquanto elemento extraído ao que é dado como a anterioridade referencial do «eu», a língua quimbundo concita-nos a conectar quem se apresenta como autor ao sujeito público que a capa do livro já sinonimizara com o colector dos 100 poemas. Por isso também, a “cena” sugerida pela nota é fundamental: uma vez que se destaca um reidentificador (que o é por poder ser identificador), ele precisa de ser colocado numa situação em que o sujeito se inseria e que se pode visualizar, respeitando o tipo de realismo próprio da antologia.
Ainda ao longo da mesma obra, que foca vários quadros da presença de alguém (que a escreve) em Londres, outras breves passagens nos evocam a figura do sujeito poético da antologia do abc. É o caso do locutor “munemenizado” (p. 25), recordando a conotação dos crioulos com a lua feita em «Três Desejos para a Noite» (“Cara de lua ao céu, cara de lua”); ou o da projecção da imagem do autor sobre a das crianças negras, realizada logo no primeiro poema da recolha, e que recorda processo idêntico nos 100 poemas (cf. «Enfermaria»); ou, ainda, o da presença de vocábulos em quimbundo evocando sinais da cultura ancestral com que a avó rompera (é o que sucede quando se fala em “diquíxi”, dando-lhe acentuação concordante com a regra geral portuguesa) e da dissociação «corpo / coração» recordando-nos duas coisas: a cor da pele metaforizada pela figura da lua e aludida na projecção sobre as crianças negras; e a presença física objectivando o «eu» num espaço que ele não considera seu e onde talvez nem sempre esteja o «coração» (daí a necessidade de transplantá-lo).
Qualquer destes processos encontra uma dupla função: a de remeter para a mesma pessoa e a de detectar no novo meio (englobado na designação de Europa, como o de Lisboa) elementos identificadores que o sejam por duas ordens de motivos: pela diferença face ao que predomina aí; e pela semelhança com o que predominava no “ovo” inicial. Assim fica ao mesmo tempo garantida a identidade enquanto «ipseidade», ou reiteração da presença do locutor no tempo, e enquanto similaridade, ou refuncionalização dos elementos identificadores iniciais[87] – similaridade, aliás, textualmente fixada: “Sou, concerteza, o mesmo” (p. 20).
Estudada a relação do locutor com o novo espaço e o espaço de referência, é agora necessário verificar se, entre a Lisboa de Rosto de Europa e a Londres de Coração transplantado, é estabelecida alguma relação. Isto porque, se o for, a reiteração da identidade do locutor não é feita só entre cada livro e os 100 poemas, mas podemos postular a hipótese de o ser entre cada livro e os outros do mesmo conjunto. Na verdade, voltei atrás verificando algumas dispersas ou subtis alusões de Coração transplantado a Rosto de Europa, como por exemplo a metonimização do conjunto do livro nos poemas do seu final e pude confirmar a hipótese.
Também ficára alertado para isso logo a partir da verificação da existência de uma nova geografia no princípio de cada livro, e a partir da observação dos processos de ancoragem que envolviam o miolo da obra. Agora podemos procurar mais exemplos dessa aproximação que faz de cada livro o palimpsesto de um arquétipo comum.
Em toda a primeira parte da obra (até aos poemas em quimbundo) o jogo identificador desenvolve-se entre as nomeações do espaço londrino e o recurso saudoso ao meio e à personalidade iniciais. O jogo resume-se ao longo de três versos da última composição dessa parte, cumprindo o “ritual” de no fim deixar um retrato do que até lá se faz[88]: «Europa!» / -Grito. Responde o eco: / «Àfrica!».
Mas, precisamente nas duas últimas composições dessa parte (pp. 32 e 33) surgem as duas referências ao espaço de inserção do locutor de Rosto de Europa. Na primeira (a penúltima) trata-se de uma evocação literária que, logo no verso inicial, convoca o nome de Fernando Pessoa (talvez com a memória no heterónimo Álvaro de Campos): “Não tanto como Pessoa amei / As cidades de hoje, no Norte”. Na segunda é diretamente feita a intersecção do Tejo com o Thames, reafirmando-se a colocação do nada como final (do livro e da vida), contraposto ao amor: “à beira-amar, à beira-Tejo / À beira-Thames: é para nada a próxima viagem”.
Assim nos vemos na contingência de ler na figuração do locutor alguém que, não só traz a sua identidade do meio africano e dos tópicos tropicais dos 100 poemas, também faz passar a intersecção de paisagens ou textos que a cada verso a reconstitui por outro ambiente referencial que é o português descrito e arrecadado em Rosto de Europa.
Em face disso, a nota introdutória da segunda parte de Coração transplantado é, novamente, significativa. Em primeiro lugar porque se trata de um recurso que de certa maneira evoca outro do livro anterior, ao qual iremos dedicar alguma atenção, de certo justificada precisamente pela reincidência. Trata-se de uma dedicatória aposta ao poema intitulado «Lisboa, Deitada, do outro Lado do Rio», ao qual se segue o «Monumento a D. José, Lisboa». A citação do título do segundo desses poemas não é dispicienda: ele indica já ao leitor uma realidade concreta, histórica e particular, onde se incrustará o esforço de simbolização do trabalho poético, detalhando a circunstancialização do motivo literário iniciada em «Lisboa, Deitada, do outro Lado do Rio», sob cujo título se dedica o trabalho depois “à memória de Branca Cruz[89], a quem estes poemas foram lidos pela primeira vez”.
A designação no plural (poemas), condicionada pelo especificador (estes), é de ambígua leitura. Ela remete para uma totalidade, podendo a totalidade englobar as duas composições encimadas pelo título (designadas numericamente: “1” e “2”), ou a globalidade da obra. Se interpretarmos que as duas sequências numeradas constituem dois momentos diferentes de um só poema, a dedicatória do conjunto não pode ser aplicada só àquele onde, por lá estar o motivo maior, a inscreveu o autor ou artífice do livro. Quer isso dizer que “estes poemas” pode ser interpretado como referindo-se a todos os da obra, o que permite redimensioná-la num novo cenário enunciativo, necessariamente fictício, que é o do poeta lendo os versos à musa à maneira dos íntimos chás do final do século romântico ou mais próximo do mito grego e renascentista.
A repetição do recurso, que é o de circunstancializar e ficcionalizar o ato enunciativo inaugural, argamassa num só magma os dois frescos pintados por cada título, e pormenorizados saudosamente pelo cinzel dos versos a desgarrar inéditos detalhes.
A situação diegética de Rosto de Europa é a da chegada de um mestiço angolano a Portugal (quase só a Lisboa) e a sua aprendizagem portuguesa de Europa; a situação enunciativa (ainda fictícia) sob a qual a dedicatória coloca o conjunto de composições, ou duas delas, é a desse mulato lendo a uma mulher os seus poemas (anote-se de passagem que o nome dela, por mais real que tenha sido a sua pessoa, é muito sugestivo, quer no seu conjunto, quer na extensão semântica de cada um dos nomes: Branca, a musa inacessível e interposta, branca a pura; Cruz, estátua de braços abertos à leitura comovida do autor).
Em Coração transplantado, a ficção enunciativa proposta para a última secção da obra é a de um homem crioulo que, envolvido através de uma das línguas da sua terra na interlocução com uma mulher que ou a ensina ou a aprende, vai deixando esse momento em si escrever aqueles versos, ou redesenhar o que eles terão sido antes, forjando-os ou remodelando-os no trânsito entre duas codificações típicas. Por esta evolução se concretizam dois processos: o primeiro é o do aumento da figura do diálogo na lírica (que atingirá o seu ponto culminante em Lusíadas) – substituindo o papel passivo da musa pela comparência da interlocução no ato criativo; o segundo é o da adscrição do locutor a Rosto de Europa dada a semelhança de recursos utilizados (o recurso à dedicatória e à menção de um quadro enunciativo ou criativo peculiar; a ligação íntima do interlocutor à poesia e ao poeta, aumentando a visualidade do quadro enunciativo, e a do próprio artífice, e diminuindo a solidão autoral).
De tal forma fica, pois, reafirmada a contingência de que falava (a de imaginarmos o locutor como alguém que veio de Angola e que obrigatoriamente passa por Lisboa, antes de escrever em, e sobre, Londres). A sua passagem por Lisboa é, no que diz respeito à técnica de composição, a sua passagem por Rosto de Europa, relacionando-se o locutor, não apenas com a personalidade da obra anterior, também com a arte que a constrói.
Tal contingência conduz-nos, como vimos, a interpretar ainda a nota que antecede as composições em quimbundo como passível de lhes fornecer uma envolvência lisboeta (ou portuguesa), se a conjuntarmos ao nome português da interlocutora e ao facto de a língua africana (de Angola) ser objecto central do quadro. Uma vez que as referências contextualizantes de Coração transplantado nos remetem para Londres, e as do livro anterior para Lisboa, o cenário montado para envolver a leitura dos poemas em quimbundo é possivelmente a terceira referência ao espaço de Rosto de Europa em Coração transplantado.
Vamos ver agora, nos dois outros livros de versos que publicou em seguida, como, nesse processo de corte e costura, o entressachar dos textos distribui a figura da identidade locutor-autor em demanda construindo noutros ambientes ainda o elíptico passado que é, afinal, o macro-texto semântico da narrativa lírica autobiográfica de M. António.
Os Lusíadas...
O livro de trânsito entre Coração transplantado e Afonso, o Africano – praticamente o último dos que fez – é um livro onde, significativamente, se reforça a referencialidade pela presença constante de frases coloquiais em francês. Para o nosso estudo será tão importante a coloquialidade (figurando uma vivência mundana e fundando a enunciação numa “cena” de diálogo) quanto o uso do francês a par do uso do português.
A introdução de termos ou frases noutra língua europeia não é desconhecida à lírica dos 100 poemas – sendo essa língua precisamente o francês. Vem por ela uma expressão de amor que se transforma no refrão do poema em que irrompe (“Viens, Colombe”[90]), e vem também a lembrança de Rimbaud[91].
Em Rosto de Europa, no longo poema intitulado «Manhã-Europa!», dá-se a intersecção de versos em francês com versos em português[92]. Em Coração transplantado há também expressões em francês (“Au bout de la nuit”) e inglês (“The naked ape”). Em Afonso, o Africano há termos ingleses (“facilities”), normalmente marcados a negrito.
A introdução de termos ou frases noutra língua europeia convida, pois, o leitor à recordação dos outros livros, tal como virá suceder ainda com o último de todos. Mas é em Lusíadas que a interferência de uma língua europeia, não-portuguesa (o francês), sobre a portuguesa, se dá com maior insistência, parecendo estruturar rítmica e semanticamente o poema, a acentuar um tipo de cruzamento (o linguístico, ou o que vem através do uso de línguas) que aponta para um enunciador-mediador que já as traduções de Coração transplantado levavam a conceber (mas aí cabendo a cada composição uma língua e uma função identitária).
A função da “tradução” no segundo dos quatro livros ora em estudo transforma-se na função do cruzamento linguístico efectivada no seguinte. No primeiro caso ela recorda a referencialidade identificadora do sujeito num outro meio, frisando igualmente a sua realidade mista, actualizada no papel mediador que a torna vantajosa; no segundo caso ela aplica a identidade do sujeito a uma terceira situação, a uma nova referência (não só linguística), fazendo com que o motivo da deslocação no espaço funcionalize a personalidade crioula alargando-lhe a pertinência (ou seja: actualizando-a) em vez de a desfuncionalizar. O novo alcance é o que toma a definição do crioulo (enquanto resultante de cruzamentos, cisões e integrações várias) como o modelo mais apto para se situar em contextos de bilinguismo. E quem diz de bilinguismo diz multiculturais, visto que não se trata só da língua mas também de passar em revista várias séries de referências do campo artístico, literário, quando não de outros menos diretamente relacionados com a Beleza ou a Verdade (a água Evian, por exemplo).
É claro que não são só feitos de intersecções linguísticas ou culturais os cruzamentos que estruturam a sequência. Também há, naturalmente, sobreposições de paisagens (do Cuanza, de Lisboa – branca-morena, judia e moira – de Paris e do lago Léman, por exemplo, com a Igreja Philafricaine pelo meio), numa convocação de lugares que se intensificará no livro seguinte e a que, neste, o refrão inicial (“je me rapelle”) traz a garantia insistente e frágil da memória, sugerindo nela a residência da sobreposição e confrontação das imagens, num exercício de harmonia cada vez mais procurada e universalizante, já irreversível.
Tornando-se a memória o palco onde se cruzam as referências, ou o rio que dá corpo ao fluxo delas, a visibilidade dos motivos estruturantes está praticamente anulada no que a tais motivos concerne. Eles comparecem por saudosa convocação, confrontando-se com os tópicos indiciadores de um presente menos intenso. Trata-se de uma situação que recorda aquela de Era, tempo de poesia.
Entre os dois livros há, porém, a diferença fundamental que separa as obras de itinerância da lírica anterior. Essa diferença define o novo papel da visibilidade, que tentarei transcrever.
A visibilidade mantém-se o despoletador, motivo aparente do texto: o locutor encontra alguém do mesmo país (Angola), podendo a partir daí confrontar o presente (europeu) com todo o percurso bipolar dos angolanos (uns fora do espaço lusófono, outros pelo seu dispersivo interior). Mas a visibilidade do motivo literário já não é necessariamente a visibilidade do motivo identificador: o que se vê não identifica, e o que identifica recorda-se. Os motivos identificadores já não precisam, pois, satisfazer a “condição de ocularidade” para virem ao texto, marcando-se também dessa forma a mudança da fase de formação no “cadinho” inicial para a fase de itinerância por mundos diferentes.
A par da visibilidade sustentando os reencontros e confrontos entre “identificações” (recordadas pelo «eu») e “desvios” (normalmente colocados no interlocutor), a constante interferência do francês introduz igualmente uma situação dramática típica – a do diálogo, em que a segunda pessoa pode trazer a marca da terra de origem comum, reevocada (“12-12-72, / Angola” - p. 10), a par de uma referência literária que reporta recursivamente a Lisboa e à “guerra colonial” (“Lembrança de Natércia, «Guerra»” – mesma página).
A citação literária é triplamente significativa aqui.
Em primeiro lugar, pelo motivo principal expresso no título do poema. Em segundo lugar porque a obra de Natércia Freire, por mão de quem o poeta colaborava no suplemento cultural do Diário de Notícias, tal obra era também classificada como “a unidade pela dispersão”, em textos públicos[93], o que permite funcionalizar a referência a ela de forma idêntica às que são feitas a Vieira da Silva ao longo da composição, ou seja, aproximando-a da poética seguida ou perseguida por M. António na senda da crioulidade, da mistura, do “acumular de mais espaço” variamente identitário.
Em terceiro lugar, ela mantém a identificação do locutor à figura do autor que, como víramos para os 100 poemas, passa muito pela sua integração num universo cultural publicamente conhecido. Assim como na antologia primeira, também aqui o universo literário é remetido em parte para Portugal, com uma “sombra” do francês, transformado em vários passos numa referência contrapolar. A identificação locutor-poeta remete-nos assim para o circuito intelectual lusíada, aclarando a leitura do título a partir da locução.
A menção literária, no caso, acabará absorvida pela afectividade (que se radica no passado), cruzando-se com as referências pessoais localizadas sobretudo em Angola e com a marca da guerra, exposta logo no título do poema de referência, e adscrita ao sinal no braço de alguém (mais uma vez marcando a função da visibilidade como despoletador do motivo literário).
A presença desta segunda pessoa, que se exprime já melhor em francês (“sem quereres / A tua língua principal / Como a de Vieira”), é ao mesmo tempo sinal de outra mistura e cruzamento (“amor que não viste no / Cuanza mas no Reno”), provocados neste caso pela prolongada vivência fora do país e longe de Portugal. Uma vez que o locutor destes versos nos remete para o dos anteriores, ou seja, uma vez que este locutor tem uma história e que essa história é a de um crioulo de Luanda que vem para Portugal, o seu interlocutor – crioulo que vive, ou viveu, em (ou por) países não lusófonos – personaliza o percurso contrário ao do «eu». Personalizando um percurso contrapolar, enquanto retrato da plasticidade crioula o interlocutor é, no entanto, similar ao locutor, por tal similaridade se tornando mais nítida a sua função como “simetria” do «eu».
A segunda pessoa aqui, o «tu» com que se dialoga, é por isso objecto de um distanciamento crítico, marcado no texto em versos irónicos (“De tantos catorze anos os catorze / Que exibes”), e também por apontamentos que dão a medida de um percurso talvez contraditório e certamente mais alienante (estrangeirado ou estranhado) que o do crioulo que o texto constrói e respeita como seu autor. Daí as preferências opostas (Arpad / Vieira da Silva), remetendo sempre para outras (neve / colorido), colando-se às escolhas do «eu» os elementos que mais perto estariam da cromatização e da miscigenação típicas do crioulo angolano tal como vem lido nos livros anteriores (os “castanhos e negros” de Vieira, os “azulejos simplesmente coloniais”, o Tejo que faltou ao que encontrara o amor no Reno e não no Cuanza). Esta oposição serviria, aliás, de contra-prova à colagem entre a leitura e a biografia do sujeito civil, uma vez que, segundo Maria José de Almeida e Sousa, era muito forte a inclinação de Mário António pelos brancos de Arpad, atirados aqui à figuração do outro (independentemente de ele gostar da pintura de Vieira da Silva, gosto que também nos foi confirmado pela Dr.ª Carolina Terra). De resto a circunstância biográfica é, mais uma vez, não só transformada mas ainda ambiguizada – na linha da tendência para a suspensão, o vago, o múltiplo, que domina semanticamente a segunda fase (de itinerância) da poesia de M. António – e refuncionalizada para um par estruturante / alienante que, trazido da infância e da adolescência, projecta-se agora sobre a actualidade redefinindo diacriticamente o sujeito.
A personagem “Vieira” reporta-se ao sujeito público “Vieira da Silva”, pintora que viveu muitos anos em França, pelo que o locutor a compara ao seu interlocutor. No entanto, a identificação do par em diálogo face ao casal Arpad / Vieira da Silva, colocando o locutor do lado dela e o interlocutor do lado dele, demonstra que a comparação não visa identificar o interlocutor com Vieira da Silva, mas ilustrar uma outra via de permanência num espaço estranho, uma via que garante uma personalidade inicial e a propaga, como sucederia com Vieira da Silva (sobre cuja obra o locutor se projecta) e talvez não sucedesse com o «tu». A comparação Vieira da Silva / interlocutor acentua, pois, a clivagem entre o «eu» e o «tu», confirmando que os diversos sentidos do texto são convocados a depor nesta clivagem, nesta espécie de “ajuste de contas” entre duas maneiras discordantes de nos expormos à História, quer dizer, ao julgamento dos homens.
É, portanto, de suspeitar que a segunda pessoa – como sucedia com a maior parte das personagens colocadas na situação de interlocutores na lírica anterior (excepção para a avó negra e o pai) – serve exclusivamente de contraponto à primeira, figura diferentemente concretizada a partir de possibilidades comuns de definição ou realização do ser (a partir da crioulidade angolana, da história recente – marcada pela guerra colonial e pelos acontecimentos posteriores à independência[94] – e da vida fora do país). O «tu» não tem, pois, na lírica de M. António, uma correspondência vaga, abstracta ou dispersa, ancorando-se pelo contrário em personagens com definições semânticas concretas, pessoas que o são porque surgem para diacríticamente retratarem o «eu» – de acordo com o que, para a linguística em geral, detectara já Benveniste.
Nesta situação de diálogo os interlocutores não ficam sós, marcando-se-lhes um ambiente cultural de referência assinalado por pessoas que se nomeiam para formarem uma espécie de constelação de figuras públicas mitificadas – para além do par Arpad / Vieira da Silva sobre o qual se espelha o diálogo e que, por isso, tem no texto um papel, como veremos, oposto ao das restantes figuras públicas.
A presença de nomes conhecidos (nenhum pertencendo à sociedade angolana[95]) justifica-se na lógica da obra por eles funcionarem enquanto sujeitos públicos comuns às duas personagens e ao leitor, confirmando-se assim o papel do mito e do “fundo cultural” a que retoricamente recorrem os escritos autobiográficos para concretizar a comunicação das referências.
Trata-se de figuras que vão, também elas, multiplicar-se e interseccionar-se – nenhuma remetendo imediatamente para a intimidade do locutor ou do interlocutor. Desmultiplicando-as, o texto “irreferencia-as”, distanciando-as da leitura biográfica e confirmando um processo descontextualizador iniciado no final dos 100 poemas. «Irreferencia-as» quer dizer: neutraliza-lhes o papel clássico.
O panorama referencial por elas formado, estranho ao lugar de origem, suscita, no mesmo sentido, a sua leitura como elemento dispersivo e não de ancoragem do locutor. A confirmá-lo estaria a arreferencialidade dos nomes, instituída por um critério duplo de nomeação: ou se nomeiam sujeitos públicos bem conhecidos, cuja publicidade os transformou em tábuas nominais e figuras mais ou menos vazias, às quais cada um apõe qualidades e defeitos vários; ou se lhe delegam atributos indiscutíveis – e, por isso, impessoais (caso de Camões); ou, ainda, se escolhem nomes próprios (Sophia, Ingrid) que, podendo corresponder a sujeitos públicos conhecidos (Sophia Loren, Ingrid Bergman – por exemplo), podem indicar qualquer pessoa que o leitor desconhece por inteiro ou de cuja identidade não se pode assegurar porque ela seria ambivalente conforme fosse referência do locutor ou do interlocutor (o nome «Sofia» reporta-se, por exemplo, a Sophia Loren ou a Sophia de Melo Breyner?).
Em qualquer dos casos, a referencialidade que nos permitiria preencher o campo semântico das palavras está neutralizada. Ora o facto de o locutor dialogar com um outro que é da mesma terra, e o “ajuste de contas” que promove com ele, levam-nos a pensar nesta arreferencialidade de lugares comuns, de sujeitos apenas públicos, como algo que, sendo comum, recorda que o que os une não é somente uma origem, havendo um conjunto de discursos mais ou menos “vazios” (que a descontextualização dos nomes simboliza) que também os ligam (e, portanto, os definem) por fora da realidade formadora inicial. Esse é o discurso que “desqualifica”, no sentido de Giddens, a sua vida quotidiana e, por implicação, uma identidade diferenciada, própria à origem dos dois.
Como numa simetria, um sinal positivo não vive sem o seu negativo. Ora, se um dos ambientes é de referência neutralizada, implica isso pelo silêncio valorizar o berço inicial dos 100 poemas a que indiretamente somos remetidos .
O jogo entre referência válida e referência neutralizada atinge o seu ponto de equilíbrio em Vieira, nome que se desmultiplica no final em Vieira da Silva, Afonso Lopes Vieira e Padre António Vieira, mas que se mantém quase sempre como Vieira, a pintora. A frequência mais elevada de referências a Vieira da Silva justifica-se pelo seu trabalho de pintura, trabalho em que a “montagem de mais espaço” espelha os próprios processos que a escrita dos poemas vai executando. Por esse motivo explicitamente o texto nos alerta para o modelo (“guia-nos a geometria de Vieira”), que afinal é também o dos “ladrilhos movediços”. Desta projecção se alimenta, portanto, a sugerência de uma estética própria que já vinha amadurecendo há muito.
A predominância do motivo constituído por Vieira da Silva chama-nos ainda a atenção para dois outros recursos de ancoragem.
Um deles faz apelo a outra arte, classicamente adjectivadora da poesia. De facto, a inspiração motivada numa pintura – focalizando-a, explorando-a e metaforizando-a – constitui também uma repetição, pois já nos 100 poemas se tornara importante um conjunto de quadros de Eduardo Pires Júnior («Sobre Quadros de Eduardo Pires Júnior» – uma série de quatro poemas), o pintor que faz o desenho de capa que envolverá a antologia. A relação íntima, cúmplice, com a pintura, serve portanto para reconduzir ao locutor de 1963, convidando-nos a uma comparação para registarmos as constantes e as rupturas de uma “evolução poética”, e, desse modo também, inserirmos numa narrativa pessoal e auto-centrada o apelo à pintura de Vieira da Silva.
Por outro lado, a contaminação da poesia pela pintura articula-se ao tópico da «ocularidade», representado já na visualidade dos motivos literários, alertando-nos assim mais uma vez para a importância da visibilidade na produção assinada por M. António.
Numa terceira perspetiva ainda, o nome da pintora é o que faz a ponte entre a referência puramente pública, “esvaziada”, feita pelo recurso a nomes “sonantes”, e aquela que nos diga alguma coisa enquanto leitores de uma lírica que nos remete para Angola e Portugal, ou para Luanda e Lisboa – cidade que também se diz mestiça. Ou seja: este nome abre via para a nomeação significativa, contextualizada (que a denúncia da afinidade do outro com Arpad anunciava) e, ao mesmo tempo, para o título do livro. Porque, em última análise, tanto um quanto o outro são lusíadas, quer dizer, pessoas com referências identificadoras ou significantes no mundo de língua portuguesa onde se guarda o cadinho das origens identificadoras.
O afastamento diegético, protagonizado pelo interlocutor, em face desse mundo é um duplo afastamento, porque o é perante o “ovo” inicial que nele se integra e perante essa integração, incontornavelmente verdadeira como se figura pela projecção da afectividade sobre referências da cultura lusíada. Dessa forma, subscreve-se uma particular esfera lusófila, que mantém o locutor mais próximo dos 100 poemas que o Reno, ou Arpad, ou o afrancesamento pronunciado do amigo do poeta que lia Rimbaud.
Em estreita colaboração com a denúncia do afastamento, que pela negativa nos religa aos livros anteriores, o nome de Vieira da Silva pode personalizar o feixe de traços que o locutor acha definidores da sua personalidade, e depois da sua cidade, e depois de Lisboa, e, até, de Londres enquanto Babel, muito particular porque “a todos unes”.
O recurso, que já antes notáramos, à projecção sobre o novo das características dadas como identificadoras do sujeito lírico, realiza-se pois através da figura da pintora: também ela peregrina intermediária entre línguas e culturas (neste caso o francesa e a portuguesa[96]), também ela interseccionando paisagens e linguagens, também ela apaixonando-se por pessoas de outra zona cultural, e também ela sendo um “artista”, um sujeito público que assina artifícios principalmente compostos pelos critério da beleza e da imaginação.
O que, portanto, é Lisboa em Rosto de Europa, Coração transplantado, ou Lusíadas, o que é Londres no segundo destes livros, é a pintura de Vieira da Silva enquanto motivo em foco neste longo diálogo do locutor com o outro da sua terra – outro ao qual procura fazer uma leitura crioula apoiando-se no exemplo de Vieira. O facto nos elucida acerca do carácter disperso da projecção do «ego» sobre o mundo – que, retrospectivamente, é uma adjectivação do «ego» através desse mesmo mundo.
Em definição, podemos pois dizer que, em Lusíadas, há dois modos de evocar o mesmo sujeito dos 100 poemas: um referencial, que se concretiza simetricamente pelo retrato do interlocutor, mas também pela fragmentada evocação de espaços “lusíadas” ou lusófonos; outro construtivo, ou literário, ou poético – o qual é determinado pela escolha de um critério de composição caracterizado pela montagem e pela mistura dos mais variados materiais e ambientes, critério espelhado na pintura de Vieira da Silva.
Este critério já vinha de mais atrás, misturando-se com a projecção do passado sobre o presente, do «eu» sobre os outros, das referências angolanas sobre as portuguesas (ou londrinas) – como se a personalidade inicial ajudasse a ler a realidade posterior por intersecções, cortes e colagens tal como acontecera com a sua própria formação. A maneira “técnica” e a maneira “referencial” estão, também, intimamente ligadas no passado estético e diegético do “autor”. Pelo que a simples repetição do recurso ao critério, construindo a possibilidade de uma leitura isotópica dos diversos livros, reenvia-nos para o mesmo sujeito e, consequentemente, para a história ou deslocação no tempo (e no espaço) de um mesmo sujeito.
Afonso, o Africano
Em Afonso, o Africano, é mais complexo o movimento de trânsito e recurso relativamente às outras obras e ao passado que elas instituem, mas de consequências iguais no que diz respeito ao processo de reiteração e reidentificação do locutor.
O primeiro espaço reservado ao recurso é o dos «Epitáfios» a pessoas do país de origem, numa opção genológica denunciadora de parentescos com o estilo autobiográfico[97]. Ele surge após uma primeira parte em que desfilam paisagens diversas de países e cidades onde ao longo dos séculos se cruzaram civilizações diferentes. O que traz duas informações importantes à leitura, uma genológica e outra semântica.
A consequência genológica é a de intensificação do cruzamento de traços que remetem para a descrição[98] e a narração[99] com marcas próprias do lirismo – nesta primeira parte predominando claramente aqueles. A “narrativização” da lírica é um elemento que vinha já, no modernismo de língua portuguesa, do movimento saudosista[100] – e que depois se viu reforçado pelo neo-realismo português e brasileiro, mas sobretudo (para o que nos interessa aqui) pelo angolano, como é visível em poemas de Viriato da Cruz escritos durante a fase neo-realista, que vai cobrir quase toda a sua lírica.
O cruzamento de marcas associadas a géneros diversos contribui paradoxalmente para suspender por mais tempo, no «miolo» do livro, a emergência do «eu» no discurso que o anuncia por essa mesma característica. Inicia-se a obra por uma narração em terceira pessoa, depois ela prossegue com a predominância de descrições e de sugestões diegéticas (na sua maioria heterodiegéticas), recordando apontamentos tirados de guias turísticos. Só em «Ragusa» explicitamente se focaliza o discurso sobre o «eu» lírico, manifestando ele desejos e dialogando com alguém (diálogo no entanto resumido, na sua transcrição, à fala da primeira pessoa).
A partir dessa composição o «eu» lírico irá aparecer com mais intensidade nos poemas seguintes («Istambul», «Bósforo», «Anatólia», «Discurso sobre o Regionalismo») para se subsumir, novamente, sob a força da descrição narrativa («Éfeso») e da narração («Pérgamo - II»), outra vez na terceira pessoa.
Dá-se, portanto, nesta pequena sequência inicial, uma progressão que em parte recorda a do próprio livro e dos quatro livros de que temos vindo a tratar: uma nova geografia, despoletando por «ocularidade» a composição dos versos, é seguida pelo retorno ao «eu» – centro processador dessa visibilidade mas também aglutinador saudoso das memórias que o levam a sobrepor imagens, a procurar identificações e a identificar diferenças. O processo atinge o seu cume no «Discurso sobre o Regionalismo» – irónico libelo de corrosiva resposta ao nacionalismo estrito que na época dominava o que é dado pelo autor como “a terra onde nasci”: “(...) parte importante / Do que me liga à terra onde nasci / – os gostos da infância – / Pertence também aos turcos” (vv. 12-15).
O retorno ao “ovo” inicial, feito por identificações e diferenciações como em Coração transplantado, realiza-se pelo exercício de projecção, técnica em que esta poesia se vai depurando. A projecção cruza paisagens – talvez procurando a harmonia anunciada em Rosto de Europa e perseguida em Lusíadas – e cruza a personagem do locutor com a de figurantes vários, como as “crianças negras” de Londres em Coração transplantado, ou os “Autocarros / – os maxibombos do nosso amor adulto” e de «Ragusa» – no livro que estou a considerar agora.
A fusão das paisagens vem generalizar-se aqui para a referência aos cruzamentos culturais e civilizacionais, para as “diversas escritas sobrepostas” que o locutor diz observar em «Istambul» (v. 3), que lembram a “montagem de mais espaço” de Vieira da Silva e que já em «Rena» (a primeira composição da obra) fora o elemento estruturante. Nesses cruzamentos, o negro não deixa de estar presente, ainda quando não se ligue de forma explícita à memória do locutor, como também sucede em «Istambul», ao se referir os “eunucos negros”. A par do negro, há traços culturais (no sentido antropológico – e mais abrangente – do termo) que vão recordando a anterioridade do locutor, como a “enxada de cabo curto, à africana”, de «Anatólia», ou o quadro de um mercado popular africano, recordado perante uma feira no «Discurso sobre o Regionalismo», “Entre Bursa e Esmirna”.
Se os cruzamentos apontam para o passado colectivo em que podíamos integrar o locutor dos 100 poemas, eles não deixam também de cruzar fragmentos do passado pessoal do sujeito, mesmo quando esse passado não se liga diretamente a Angola. É o que sucede, entre outras, com aquela passagem de «Bósforo» em que o estreito é comparado à paisagem do Cais do Sodré em Lisboa.
No conjunto dos poemas o que fica é pois a ideia de intersecção ou cruzamento que o locutor constantemente enuncia e concretiza pela depuração do estilo. A realização de uma tal prática permite-nos estabelecer com alguma poesia de Fernando Pessoa uma relação de afinidade – relação que não é de estranhar, sendo o poeta português referido em Coração transplantado (p. 32). A afinidade verificar-se-ia entre o “interseccionismo” pregado em determinado momento pelo heteronímico autor da Mensagem e o cruzamento de múltiplas referências acumulado nas obras de itinerância.
Mas o interseccionismo da lírica de M. António tem uma raiz típica: serve de instrumento para operar a confluência da percepção (do presente) e da memória (do passado identificador), num movimento que, pelo que tem de “consciência do novo” e de reunião harmónica do presente a uma anterioridade amada, só pode classificar-se como saudoso.
Ou seja: ele é, ainda, um resultado da técnica de projecção recorrente nestas obras, ele é projeccionismo antes de ser interseccionismo. Pelo que não se pode comparar ao perspectivismo pictórico apregoado por Pessoa e de que outros movimentos contemporâneos – como o cubismo – dão igualmente conta. Não se trata, portanto, de uma multiplicidade angular, que redimensiona o objecto conforme o ponto de mira; trata-se de ver pelo mesmo ângulo diferentes lugares, de projectar o mesmo sobre o outro coligando-os numa progressiva universalização dos traços identificadores iniciais.
Os «Epitáfios» que se seguem a esta primeira parte do livro são dirigidos a figuras públicas da “terra onde nasci” – cuja presença, afectiva como é, contrasta nitidamente o discurso oco onde se integram as figuras públicas de Lusíadas.
A adscrição dos epitáfios pode ser contada como mais um “recurso de ancoragem” do locutor ao sujeito da antologia inicial. Reforçando essa ancoragem fica a selecção de nomes e o tratamento das figuras: todos são conhecidos e nomeados como poetas, excepto o último, eufemisticamente chamado engenheiro, cujo retrato no entanto o equipara, explicitamente, ao de um poeta que não pudesse “cantar” (“Como iria cantar, se não podia?”)[101]. A identificação do autor por um universo literário, familiar e afectivo, já o vimos, era fundamental na composição da personalidade locutora dos 100 poemas.
A contextualização dos poemas pela sua modelização enquanto epitáfios de poetas é reforçada, no seu papel, pela auto-nomeação do locutor enquanto sujeito dos versos. Numa das composições – dedicada a Ernesto Lara Filho – ele dirige-se à irmã do seu amigo igualando-se a ela: “Poeta minha irmã” – ou seja, assumindo-se como construtor daqueles versos e daquela obra.
A afirmação do sujeito central dos 100 poemas enquanto poeta fora fundamental na construção da sua identidade e da sua pessoa, até pelo reconhecimento que isso lhe trazia (o que se assume explicitamente na «Carta do Afogado»). O regresso àquela que seria, pelas indicações antes fornecidas, a “sociedade literária” em que se formara o «eu» anterior, é um retorno a tal identidade e a tal pessoa, restabelecendo ou confirmando a ancoragem angariada já pelo que – na esteira do trabalho de Lejeune – chamaríamos “recursos de capa” (o nome, as menções à obra do autor), e pela distribuição lírica das referências africanizantes e crioulizantes.
Esse regresso é contrastado, e depois completado, num novo trânsito que nos atira para Tagore e Gonzaga[102] – um poeta indiano e outro brasileiro que veio para a África de língua portuguesa, mais precisamente para a sua costa oriental, a partir da qual as naus partiam para a Índia de Tagore. A referência a Tagore é, ao longo das composições, intermitentemente motejada pela nomeação de outros poetas (Bernardim, Bocage), ou intertextualizada com passagens reconhecíveis como deles (“Anjana é o rio da tua aldeia, / Mandovi doméstico da tua comunidade” – recordando igualmente Pessoa[103]), ou, ainda, reafirmada pela simples enunciação da palavra (“as gaivotas poisam / Nos dedos de Ranjana, antes dos do poeta”).
O processo de ancoragem, no que poderíamos considerar a terceira parte do livro (a homenagem a Tagore, o poema que se lhe segue e a composição final dedicada a Gonzaga), é idêntico ao que se desenvolve no que considerei a primeira parte (desde o primeiro poema até «Pérgamo-II») e nos «Epitáfios»: uma referência estranha (acentuada, neste caso, com o extenso poema de permeio, «América») seguida por uma referência familiar (Gonzaga, americano que, para além da sua ida para África, era estudado nos Liceus angolanos, tendo por isso podido fazer parte da formação literária do autor). Ao longo do percurso, a figura do “poeta entre poetas” vai sustentar a identificação do locutor, remetendo-nos à sua formação descrita nos 100 poemas – e, se tal leitura não estivesse garantida, confirma-a a referência paterna logo no início de «América», evocando a associação da identidade do locutor à tríade poeta-sonhos-pai, inclusivamente com o já citado tópico da continuidade do pai garantida na existência e no “estilo de vida” do filho.
O poema («América»), situado entre Tagore e Gonzaga, funciona de facto – em relação ao movimento de trânsito e recurso – como um poema intermédio. Nele se nomeiam seres e elementos inidentificáveis no universo angolano (os índios, o Potomac, as auto-estradas), mas também realidades que, desde que surgem, são ligadas a África (“o velho jazzbandista”, por exemplo), ou que são direta sobrevivência da infância (é o caso da evocação do pai). A par dessas duplas referências (as estranhas e as familiares) a deriva (interseccionista) pelo continente americano servirá, sobretudo, para reencontrar a crioulidade.
Um momento particularmente significativo no reencontro da crioulidade (ao nível das referências) é tecido no poema que se inicia na p. 26. Aí, por uma única vez, a identificação entre o locutor e a realidade crioula nunca é feita explicitamente, mas isso apenas irá exigir do leitor uma simpatia maior, mais “justa” no sentido contemporâneo do termo[104], simpatia que só se tornará inteiramente funcional se nos recordarmos da poesia anterior – portanto, se associarmos este locutor ao dos outros livros.
O locutor apresenta – sob forma descritiva – diversos traços típicos de várias terras amalgamadas na síntese americana. O resultado é um conjunto de apontamentos breves, aparentemente desconexos, que permitem compor um retrato interseccionista do motivo, que é o tipo de retrato privilegiado pelo artífice dos versos anteriores. Se esta é uma via indireta, quando se fala na crioulidade, ou em África, há geralmente passagens de versos que diretamente remetem para os 100 poemas, onde se configura a personalidade crioula de M. António.
É o caso de três estrofes: “A plataforma doce de cabelo africano / Sobre o perfil andaluz”; “a mobilidade interna das sociedades imóveis / Seus fluxos produtores de crioulidade”; e “A cambulagem inocente das crianças / Para as primas vistosas e dançantes”. Num dos 100 poemas («Anti-Heróica»), há quatro versos cujo léxico e semântica parecem derramar-se por estas três estrofes: “Olhar doce cambulando nos portos / Onde continuam / Rios de sangue e esperma / A produzir-me” (p. 160; é o quarto poema de 1960).
O doce do olhar do sujeito transporta-se para a referência ao cabelo, várias vezes presente na sua lírica, quer apontando o próprio locutor (por exemplo em «Manhã-Europa», de Rosto de Europa), quer projectando-o em personagens episódicas (as “carapinhas ruivas” do Parque Eduardo VII em Lisboa e Rosto de Europa; as crianças negras do primeiro poema de Coração transplantado), quer metonimizando-o através do irmão (no epitáfio que lhe dedica em Afonso, o Africano). Os “rios de sangue e esperma / A produzir-me” tornam-se eruditamente “fluxos produtores da crioulidade”, e o gerúndio “cambulando” substantiva-se na “cambulagem” que, “inocente”, recorda o “vadiar sem pecar” e o “amor inconsequente” votado às “moças quentes das fábricas” em «Não Quero Mais Estudar» (o quinto dos 100 poemas).
Por esta identificação intra-textual, aquilo que podia ser uma descrição interseccionada de vários lugares – recordando a síncrese complexa e não-redutora proposta pela crioulidade antilhana – transforma-se numa configuração cruzada de traços personalizados, tornados íntimos pela memória do leitor acordada à do sujeito-locutor.
As várias composições reunidas sob o título (e motivo) genérico «América», oscilando logo a partir da primeira entre referências personalizadas e descrições fragmentárias aparentemente alheias ao locutor, colocam-se, por isso também, entre Tagore e Gonzaga – ou seja, entre o nome público de um poeta estranho ao cadinho de origem e o de outro que lhe está mais próximo (biográfica, geográfica e socialmente).
A inserção da sequência é significativa ainda por outro motivo. Porque pela sua localização somos levados a ver no conjunto da obra uma viagem que, iniciando-se com a deslocação de Afonso, o Africano, para Leste, segue pelo Oriente e América até retornar a África, terra inicial do poeta, agora voltada para a Ásia, como que reevocando toda a viagem, num falso término, que deixa em aberto a sensação do eterno retorno, ante o silêncio horizontal do Índico meditado pelo locutor que se mascara de Tomás António Gonzaga.
Em qualquer dos três últimos grandes poemas do livro, o jogo de sobreposições que vai cruzando referências diversas, projectando-as umas nas outras, ou interseccionando-as, estrutura fortemente os versos – a par da sensualizada temática, saliente na «Homenagem a Tagore». No poema «América» e no “epitáfio” a Gonzaga, o processo atinge o seu clímax na intersecção das várias Américas ou de América, África, Ásia e Europa (nomeações globalizantes que, lidas no seu conjunto, metonimizam a viagem que todo o livro regista, prosseguindo o “ritual” de no fim colocar o espelho de uma obra). Ainda na sequência «América», retorna-se aos cruzamentos linguísticos, através da integração de marcas do diálogo quotidiano, em inglês ou em português.
Fica desse modo largamente patenteado o critério da projecção, ou do cruzamento, privilegiado pelo autor dos 100 poemas sobre a organização poemática posterior a essa antologia. Nesta medida, a mistura dos géneros (poemas narrativos, descritivos e epitáfios), dos modos (mimético e misto), das focalizações (interna / externa), das enunciações (heterodiegética / homodiegética; na primeira pessoa / na terceira pessoa) e discursiva (discurso directo, indirecto, “indirecto livre”), é já expressão de um critério compositivo que privilegia a intersecção estruturadora.
A mistura, projecção, ou cruzamento, como critério estruturante dos textos, atinge a própria sintagmática do livro, conduzindo-nos a uma leitura de conjunto das quatro obras que torna esta culminante dos processos que essencialmente as delineiam liricizando-se aqui até um extremo.
Em cada uma das obras anteriores há um motivo que serve de “pano de fundo” sobre o qual se desenrolam as “impressões” acerca dos acontecimentos. Em Rosto de Europa a sugestão diegética é a de alguém chegado a Lisboa – um mestiço africano; em Coração transplantado é a de alguém que está em Londres, e em Lisboa, aprendendo e ensinando uma língua de Angola; em Lusíadas é a de alguém que dialoga com um seu conterrâneo, provavelmente num país ou numa cidade de língua francesa (hipoteticamente nos Alpes). Mas em Afonso, o Africano não há uma situação diegética única – e, portanto, credível – sob a capa da dispersão lírica.
Inicialmente encontramos alguém em viagem, mas dissimulando a sua viagem com aventuras de terceiros – de forma geral sujeitos históricos. Depois os «Epitáfios» remetem-nos para a morte de diversos amigos em diferentes locais do mundo, ou no país de origem – mais uma vez a memória desempenhando o papel de sede onde se registam e desenvolvem todas as ocorrências e aproximações. Em seguida há a viagem “poética” a Tagore, após ela à América e, finalmente, a Gonzaga. Estas três últimas decorrem sem que o texto ligue as referências e o «eu» num percurso definido e dado como “verdadeiro”. Ou seja: trata-se de deslocações onde já pouco importa a impressão de terem mesmo acontecido e de terem tido um roteiro único – que inevitavelmente qualquer viagem tem.
Se é racionalizável a progressão da leitura (de viagens verosímeis para outras descontextualizadas), ela conduz-nos no entanto à impugnação da univocidade diagética. A multiplicação e descontextualização dos motivos geográficos interseccionados, o seu cruzamento principalmente conseguido em «América», parecem outrossim reflectir mais uma vez o critério definido pela mistura, projectada sobre a organização textual como sinal do organizador do livro e dos poemas. Só que, agora, a noção de cruzamento, de multiplicação e de intersecção foram de tal forma concretizadas que, finalmente, nos aproximamos – ao nível da obra como um todo – do paradigma lírico da dispersão (genológica e biográfica), fazendo explodir o miolo da narrativa que é a intriga.
Só o quadro final, ao deixar o leitor perante o Índico depois de o trazer da América, dá uma inesperada sugestão de unidade a todas as viagens sugeridas ao longo do texto, pela imagem global que evoca de uma circumnavegação. Mas o facto de elas figurarem as mais diversas situações diegéticas, ou “cenas”, ou “episódios”, e o facto de se tratar de relatos onde o verosímil ou o visualizável já não tem importância decisiva, não são impugnados pela sugestão final. Esta serve apenas – e mais uma vez – para que o texto repita um recurso anterior, o de o livro de alguma forma metonimizar no final o que ao longo das outras páginas concretiza.
Visão e saudade
Temos, portanto – nos últimos quatro livros – uma sequência que se pode descrever inicialmente pelo registo do trânsito para novos espaços. Esse trânsito leva a uma cisão, tomada agora enquanto recurso de aprendizagem, uma cisão entre aquele que diz o que diz ver e a configuração anterior à qual se irá ancorar o mesmo «eu».
Em Rosto de Europa o sujeito abre-se ao conhecimento do novo espaço procurando a nudez própria de quem não tivesse passado algum; em Coração transplantado e Afonso, o Africano a “abertura ontológica” (Hamilton fala em “pasmo”[105]) não é já cantado, explícito, mas revela-se nos poemas em que a proposição de referências se reduz ao que nos é apresentado como o horizonte visual do locutor no momento da enunciação. A redução da referencialidade à composição de um campo visual dado como coincidente da enunciação oblitera por ausência a anterioridade do sujeito. Só que, nesses livros, os poemas de “abertura ontológica”, ou “pasmo”, estão liricamente distribuídos ao longo das páginas, não tendo que surgir no início (o que acontece em Afonso, o Africano – que se inicia por uma narrativa na terceira pessoa – mas não sucede em Coração transplantado). Ao passo que, em Rosto de Europa, há um momento próprio (no início) onde se colocam os poemas que sugerem ou solicitam o esquecimento da anterioridade, explicitamente referido.
Em Lusíadas, por seu turno, todo o poema fica estruturado em função de um diálogo. Nesse diálogo, as referências instituidoras do campo visual que seria o da ficção enunciativa estão de tal forma conectadas com outras (do passado, ou de uma actualidade mediática – a dos nomes públicos, por exemplo) que se torna quase impossível a distinção entre um momento de abertura ou cisão e outro de retorno da anterioridade identificadora.
O trânsito do sujeito é depois envolvido, em qualquer dos casos, por evocações do mundo anterior, original, que se intersecciona muitas vezes com o novo. Este retorno é o do papel assegurado pela saudade como sentimento reunificador do ser e promotor da sua significação. Trata-se, pois, de algo mais do que a “reviravolta na forma do vento da nostalgia”, que preocupava Russel Hamilton num texto já citado. Até porque o sentimento nostálgico é diacriticamente atirado para o passado genealógico do sujeito (para os marinheiros brancos e os escravos negros, como vimos ao relermos «O Amor e o Futuro»).
O retrato psicológico do locutor itinerante vai aproximar-se, no entanto, da “outra componente” da crioulização, a colonial, sofrendo um processo de identidade similar ao que ela sofreu ao partir para longe do seu cadinho inicial, ou seja: procurando ser o mesmo em espaços diversos (procurando construir uma unidade de significação que reúna presente e passado) e, portanto, passando a manter a identidade por similarização e não por permanência, por similaridade e não por ipseidade, para usar os termos de Ricoeur. Nessa passagem, porém, como crioulo e ser saudoso, ele vai encontrar uma forma própria de manter a sua especificidade (de a universalizar) que não coincide com a que subsidiara a identidade do colono ou reinol na colónia, na terra de formação do sujeito.
A condição da visibilidade - II
Como disse – e facilmente se verifica – cada um dos quatro livros de itinerância nomeia, logo nas primeiras composições, espaços diferentes face ao berço original do locutor dos 100 poemas. Ao narrativizar a leitura retomando o “romance do autor”, observei que cada livro faz o registo híbrido de uma viagem (ou de várias), escrevendo-se a partir da presença no e do novo espaço. Quer isso dizer que a condição de visibilidade se mantém activa, tanto na imitação daquilo que podíamos chamar “um processo de identidade” (que é posto em causa pela visão de novos espaços), quanto como condição do poético (posto em movimento só em face dos novos espaços, visto que nunca mais se publica sem haver uma viagem).
Tendo fixado diversas hipóteses de trabalho, entre as quais a que dizia respeito à “condição de visibilidade”, e tendo-se alterado nestas quatro obras, radicalmente, a referência visual fornecida pelo texto, convém-nos agora vermos como foi refuncionalizada essa condição face aos novos campos, quais as funções que manteve e quais as que perdeu no movimento de trânsito e recurso a que os sucessivos desembarques e as correspondentes ancoragens nos levaram.
Visibilidade e composição
Se, nos livros de itinerância, se escreve só quando chegamos à designação de outro espaço que não o das obras anteriores, isso implica duas coisas: em primeiro lugar, que a mudança de espaço é um motivo poético; em segundo lugar, que a mudança de ambiente coloca em risco a personalidade, ou reactiva os mecanismos da sua formação e do que poderíamos aqui nomear como o “retorno a si” – efectivado através da composição poética.
Das duas implicações, a primeira será tratada neste ponto, a segunda mais adiante, quando estudarmos o “processo de identidade”.
As mudanças operadas no seio do país (ou da paisagem) poeticamente recenseado em Rosto de Europa, a evolução do sujeito nesse meio, não são registadas para além da anotação de apreensões, impressões e descrições iniciais com que tal aprendizagem começara.
Trata-se de mudanças parcelares, que subtilmente subentendemos terem decorrido no que diz respeito ao que o locutor apresenta como visualizado (muda o sentimento, a estação do ano, conhece-se alguém, mas o «mundo» que cerca o sujeito, definido social e geograficamente, permanece o mesmo).
Quer isso também dizer que a mudança “ocular”, para ser dada enquanto motivo “inspirador”, precisa de ser integral, e de integrar o locutor, passando-se a uma nova geografia e a uma sociedade organizada por um quotidiano diferente.
O motivo inicial de cada obra parece, pois, indicar que a visibilidade continua a ser uma condição do dizível, mas agora aposta à visibilidade a condição da mudança e da mudança na totalidade. Portanto, não é propriamente o visualizável que determina a selecção do dizível, é o haver uma transformação global dos referentes que compõem a circunstância em que o locutor se situa.
Se repararmos, os 100 poemas haviam já constituído a mudança em motivo poético, ao se denunciar uma percepção diferente da estrutura social que envolvia o sujeito, que lhe dava confiança e lhe mantinha a personalidade. Mas era ainda uma mudança no mesmo lugar, fiando no espaço os sinais que permitiam evocar o mundo anterior. Agora só se escreve quando o espaço muda.
A deslocação espacial não é também um motivo estático. De livro para livro ele se vai generalizando. Se, de Rosto de Europa para Coração transplantado, a deslocação parece englobar apenas a chegada a uma cidade, a uma capital ou um país, na passagem para Lusíadas, como vimos, o espaço que situa o locutor vai ser alargado ou descontextualizado ao ponto de, apesar da toponímia, ficar apenas a ideia vaga de um lugar principalmente de língua francesa, com um ou outro sinal da Alemanha, afecto ao passado afectivo recente do interlocutor, um lugar abrangente e mal definido, que pode passar por Paris, pela Suíça, ou pelo Reno. Em Afonso, o Africano, como também observámos, a deriva do sujeito leva-o a desenhar poeticamente na obra um roteiro que faz a circumnavegação, que rodeia o mundo e deixa a leitura no continente de partida dos 100 poemas, fitando (no símbolo que é Gonzaga) o Oriente para onde passara no início do livro.
A dinâmica do processo de descontextualização, ou de desmultiplicação do motivo da viagem, leva-nos ao ponto extremo que é o de a deslocação não pressupor já uma origem e um destino, mas várias origens (vários locais de onde o sujeito vem e que por isso recorda) e vários destinos. Porque, ao referir uma deslocação para Oriente, o locutor inicia-a com uma narrativa na terceira pessoa, reportando-se a uma personagem histórica que ele diz vir “de Arzila e Tânger” (e a gente fica sem saber de onde vem o locutor que depois aparece a Leste como “eu”); ao falar em Tagore não nos diz de onde vem nem para onde vai; no poema «América», ficamos sem saber de onde partiu o «eu» para ir para a América, para as várias Américas que visita. Há, portanto, sempre, ou uma origem indefinida, inominada, ou várias origens possíveis; tal como pode haver diversos destinos (o Leste e a Turquia; A América do Sul e do Centro, os EUA), como se todo o livro fosse um roteiro do qual a diversidade apagasse uma origem que podia ser dada como única e como garante ou “fio” de uma narrativa unívoca.
Para conduzir a tal extremo o processo, o texto exacerba um jogo só timidamente praticado na antologia fundadora: o da visualização de algo que a regra da ocularidade impediria de trazer ao poema.
Refiro-me, no que diz respeito aos 100 poemas, à composição «Fuga para a Infância», datada de Outubro de 1951, onde se imagina uma fuga cujas características não coincidem com a espécie de narração lírica da adolescência do locutor que ao longo da antologia é proposta. Em Coração transplantado, Lusíadas e Afonso, o Africano, é pela intersecção de paisagens e pelas evocações literárias (timidamente ainda ensaiadas na primeira dessas obras) que a visibilidade dos motivos vai ser sublimada ou substituída, tornando-se agora fundamental o cruzamento harmónico de lugares e costumes, línguas e referências literárias, que pela sua nomeação não abandonam a ilusão de verosimilhança, mas que saem fora do que é possível conceber como horizonte visual do locutor, enviando a reflexão para uma intensa multiplicidade que não se compadece com a subordinação simples ao presente visível.
Parece isto implicar, em nossa opinião, que a regra da visibilidade já não apresenta o mesmo tipo de validade, reduzindo-se a constituir o critério selectivo apenas dos motivos apresentados como despoletadores das evocações (e das obras – tomadas estas no seu conjunto). No entanto, ela detém ainda um papel estruturador, pois é a presença visual de um novo ambiente que, anunciando o trânsito para uma geografia humana diferente, provocará o recurso às fontes da personalidade, ou seja, à anterioridade que o texto nos dera como própria do sujeito crioulo.
Recorde-se que, inicialmente (Cp. III, secção 2.3.1.), vimos funcionar a visibilidade como critério colector dos motivos identificadores principais. Agora vemos diversos motivos identificadores (ou reidentificadores) entrarem no poema somente pela memória saudosa, o que se deduz pela diminuição ou ausência de indícios de ocularidade, como sucede com os poemas das pp. 20 (em que apenas o ver os dedos evoca a cidade e a infância), e 12, 16, 18, 26, 29 e 30 (onde não se nomeia o motivo despoletador do poema) de Coração transplantado.
A par da descontextualização dos enunciados há motivos acordados com a nova regra da ocularidade, como sucede quando se oferece uma cena biográfica para justificar o aparecimento de poemas em quimbundo (uma língua diacriticamente identificadora), ou com a referência a traços visualizados em novos ambientes que vão suscitar a sua intersecção com outros do «ovo» inicial (ou de qualquer dos anteriores, dados em simultâneo como no poema «América») guardados na flâmula da memória (é o caso de «Ninguém se Ri como nós», em Rosto de Europa, e «Discurso sobre o Regionalismo», em Afonso, o Africano).
A nomeação dos elementos identificadores trazidos pela visão está muitas vezes associada à figura da projecção, através da qual se interseccionam paisagens e traços elementares que, trazendo o passado ao presente, ofuscam o poder e a limpidez do quadro. A figura da projecção pode prestar-se a diversas leituras.
O facto de a projecção se realizar muitas vezes sobre traços ou pessoas africanos podia tornar-se problemático para a compreensão que sustento, e que afasta o texto de conotações negritudinistas, ou da contradição entre referências africanas e europeias.
Com efeito, qualquer questionador nos podia apontar – desde «Avó Negra» – sinais de associação entre o negro, ou identificadores da raça, e o locutor (crioulo). R. G. Hamilton, por exemplo, faz uma leitura negritudinista desse tipo de recursos. Levando em conta a história da literatura angolana e o momento dessa história em que M. António começa a publicar e afirma o seu nome enquanto poeta, parece realmente válido afirmar que a projecção do «eu» sobre traços identificadores do negro constitui uma marca da influência da negritude na sua formação, marca trazida por uma primeira fase em que ele se inspirasse, como propunha Manuel Ferreira, nos “valores africanos”.
A reforçar a hipótese fica também o facto de o sujeito público Mário António ter demonstrado conhecer a negritude e entusiasmar-se com ela a dado momento, como se verifica pela sua participação no Doutoramento Honoris Causa do Presidente Senghor na Universidade de Évora. A contrariá-la fica o reconhecido entusiasmo do ensaísta com as teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre e o facto de estas identificações com “traços negros” emergirem com mais intensidade após o afastamento do “autor” de Luanda e das teses da negritude.
Poder-se-ia defender – em desfavor dos meus argumentos – que o sujeito civil Mário António, apesar de entusiasmado com o luso-tropicalismo, se via na Europa empurrado para uma situação que, de um ponto de vista antropológico, explicaria a conotação com identificadores “negros”.
Para tal recordaríamos, com Harry L. Shapiro, que “em todos os países onde a consciência social está muito desenvolvida, os produtos de um cruzamento são, em virtude das diferenças físicas que apresentam com o grupo do pai e o grupo da mãe, considerados, pelo menos em parte, para cada um desses grupos, como pertencendo a uma outra raça. Cada grupo percebe as suas semelhanças genéticas com o outro e assimila-as ao outro”[106]. Exemplo significativo – porque fruto de inadvertência – é o de um artigo intitulado «Os Negros em Lisboa no Século XIX», escrito por Maria Cristina Neto: a população aí estudada inclui “mestiços” e “pardos” no grupo dos “negros”. Essa nihilização do mestiço é corrente nos EUA e em certos países – predominantemente de língua inglesa – que integram o mestiço e o negro na mesma ‘raça’, empurrados ambos para o quintal dos antigos escravos. Isso nota-se ainda em textos de autores portugueses que abordam o problema da construção da ideia de raça negra nos Estados Unidos, como é o caso de Eduardo dos Santos ou de Isabel Caldeira, qualquer deles deixando escapar frases como “todos os negros, mestiços ou não, eram «niggers» para o Branco americano”[107], ou expressões ambíguas como “indivíduos de origem africana nos Estados Unidos”[108]. De maneira que, ao se falar na “crescente creolização dos escravos devido à proibição do comércio negreiro em 1808”, ficamos sem saber se “creolização” se reporta a um processo cultural ou biológico. De qualquer maneira o que se nega aí ao mestiço é a sua própria realidade mista, como se não houvesse “indivíduos de origem africana” com “origem europeia” também. A conotação, que o texto promove, entre o locutor e o negro, seria um reflexo expressivo, na obra, das consequências psicológicas desse processo social de afastamento do mestiço em direcção ao “outro”, de integração da imagem do mestiço na imagem do negro por contraposição à dominância do branco na Europa.
Mas M. António continua a assumir-se enquanto mestiço e transforma a sua crioulidade na focalização universal do locutor. Explicitamente o faz em versos que citei já. Por isso, a interpretação negritudinista da projecção do «eu» sobre os definidores da raça não faz sentido. Tal projecção refuncionaliza apenas um recurso anterior, agora assacando-lhe a responsabilidade de justificar a emergência do passado por aquilo que mais difere das dominâncias envolventes do sujeito locutor.
É certo que a presentificação permitida pela saudade neutraliza a necessária visibilidade dos motivos, visto que o leitor supõe que o texto fala nos identificadores porque o sujeito, por nostalgia ou lembrança voluntariosa, se recorda deles perante um novo espaço. Mas o autor (aqui trata-se de um problema de artifício), não pode apresentar os identificadores apenas em função de recordações que não têm qualquer pilar assente no horizonte visual, pois parecerá ao leitor que ele força a recordação, passando a saudade a funcionar como uma espécie de «Deus ex machina» da “narrativa lírica”. Para não abusar do recurso que a saudade constitui, “justifica”, portanto, o poeta, várias vezes, a presença dos identificadores iniciais pela de uma emergência que os identifica no horizonte visual, acordando-se dessa forma aos bons ensinamentos da verosimilhança aristotélica.
Uma segunda razão ainda explicará a figura da projecção na obra, se virmos que ela é uma forma específica de cruzamento de referências.
Mas estaríamos já, ao falar nisto, a entrar na caracterização das mudanças efectuadas ao nível da identidade, o que nos ocupará na próxima secção. Em resumo diremos, portanto, que o papel da ocularidade passará a ser o de garantir um motivo poético estruturador, por um lado, ao passo que por outro redirecionar-se-á no sentido de o visualizável substituir o ocular na semântica da emergência dos reidentificadores.
Saudade e reposição
A intensificação funcional da memória e do papel da saudade, que transfigura os motivos circunstantes e os inscreve no jogo da recomposição da personalidade textual, era inevitável, se levarmos em conta as condições em que o drama do autor se desenrolava ao longo das obras. A mudança de conjunto referencial, que a deslocação ou viagem implica, redimensiona o processo de identidade no tempo, porque o espaço não pode já funcionar como motivo reiterador do «eu». Quando isso acontece, como também vimos ao falarmos em colonos, o sujeito agarra-se à estrutura da sua personalidade (neste caso, uma estrutura de cisão e retorno perante os identificadores, que reflecte e continua a definição inicial da crioulidade). Para que tal aconteça, ele tem que se socorrer da memória mais que da vista, pelo que a passagem da identificação espacial à identificação temporal corresponde à passagem da identidade pela visibilidade para a identidade pela memória. Esta fica então constituída como fonte principal dos identificadores aos quais o texto irá recorrendo, quer para ancorar o «eu» na anterioridade conhecida, quer para demonstrar a sua fidelidade estrutural.
Se há recurso a identificadores antigos e se reafirma uma fidelidade estrutural é porque houve ou esteve para haver desvios em relação à identidade. O conjunto acorda-se parcialmente aos processos de «feed-back» estudados em Psicologia. Eles põem à prova a personalidade em função de traços recorrentes, constantes, que são bruscamente contrariados. A coincidência é parcial porque no nosso caso são activados elementos mais diversos, envolvendo níveis mais profundos na descrição do «eu» e determinando a sua formação desde o início. A Psicologia limita-se a estudar os condicionamentos e sua função para garantir a estabilidade pessoal e social. Estes desvios devem-se, como acabamos de ver, à conjugação das duas regras condicionadoras da identificação que antes enunciei: a da visibilidade e a da reiteração no espaço. Porque, não havendo o mesmo espaço e fundando-se a personalidade no que vê à sua volta, morre a identificação habitual, aquela que assegura a estabilidade psicológica, dando-se novo corte, nova cisão, com tudo o que isso implica em termos de aprendizagem mas também em termos de compensação que obriga a ir atrás buscar “o mesmo”.
As ameaças à identificação da personalidade locutora adquirem, mais ainda, uma conotação própria por estar em causa o processo forjador da sua específica miscigenação.
Sendo crioula, a personalidade forma-se por cisões e apropriações que determinam o seu desenvolvimento na aprendizagem de novos meios e, portanto, numa grande capacidade de adaptação ao visível. Uma vez que o visível muda radicalmente, o sujeito prepara uma nova cisão para garantir a melhor inserção no meio. É esse o significado do facto estudado em Rosto de Europa, uma tentativa de descondicionamento do sujeito – expressa, por exemplo, no pedido que dirige a si próprio: “adia, para depois, a harmonia”.
Como vimos ao estudar os 100 poemas, a definição diferente do espaço que envolvia o enunciador – por causa da cisão apropriadora – provocou uma duplicação de identidades no sujeito. Se uma nova definição do mesmo espaço pode provocar uma tal crise, é consequente que a aprendizagem de um novo espaço implique uma nova inserção da pessoa que pode pôr em risco a sua personalidade anterior – estruturada como ela estava pela identificação recuperada e cindida através do visível.
A repetição do processo que cinde o indivíduo entre anterioridade e presença chama a saudade a desempenhar, como antes, um papel fundamental, pela força presentificadora que traz. A tal crise – provocada pela tentativa de descondicionamento, pela regra da visibilidade e pela impossibilidade de reiteração no espaço que garantia a identificação anterior – responde a recuperação de tópicos identificadores iniciais (“Ninguém se ri como nós”), remetidos em directo e ao vivo para a crioulidade (“Crioula espuma de desforra e espanto”), desempenhando a mesma função que os tornou pertinentes ao longo dos 100 poemas (a de repor a personalidade inicial) e outra função, nova: a de criarem condições de reiteração do velho no novo espaço.
Desta forma, a “dialéctica” da cisão e da saudade, o trânsito e o recurso entre mudança e restauração do «eu», estruturam a progressão dos poemas nas obras e a conjunção das obras no tempo. Por isso pudemos ir medindo a tensão que os textos ou os livros criavam entre as nomeações (descritivas ou narrativas) do novo e as incisões, nas telas do itinerante locutor, da sua anterioridade.
Ao proceder assim, o texto reenvia também a leitura para o principal dos tópicos anteriores, desenvolvendo a conotação do locutor de cada uma destas obras com as que antes foram por ele assinadas. Ou seja: ele reenvia-nos para o romance do autor iniciado nos 100 poemas e para a “auto-bio-grafização”.
Quer dizer que o retorno constante dos traços reidentificadores é, também, a reiteração da lírica anterior, através da qual se recupera a imagem de um único locutor, ainda que de um locutor atravessado por constantes cisões, um «ego» múltiplo e variado. A função dos reidentificadores e a funcionalização simbólica da saudade, concretizada por recursos técnicos como o da projecção, servem portanto um duplo objectivo: dar a ideia de uma personalidade reconstruindo-se e universalizando-se na diversidade (portanto, de uma personalidade crioula), e dar a ideia de que toda esta poesia se garante numa só narrativa subjacente, a ideia de que toda ela possui um “fio” que permite visualizá-la como um percurso poético em crescendo, assente na criação da imagem de um autor. Toda ela pode, por isso, ler-se de acordo com a sugestiva “Justificação” dos 100 poemas: “uma ideia não enganadora da Poesia realizada”.
Há, portanto, a extrair daqui duas conclusões, didacticamente: uma estética, que dê conta “da Poesia realizada”; outra ética, que especifique o significado da adjectivação (“não enganadora”) estudando-o pela coerência da personalidade na sua composição textual. Para isso nos podemos preparar.
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