Notas


 [1] Russell Hamilton indica, para estas citações, o n.º 8 da Cultura; a indicação que dou deriva de uma citação do próprio António Cardoso, que se refere ao seu artigo em outro, onde modera a sua posição e elogia a poesia de Amor de Mário António, publicado no n.º 94 do Jornal de Angola desse tempo. Aí caracteriza a poesia do livro Amor como “grande”, cheia de uma “riqueza poética de cor, de originalidade de imagens, de contrastes rápidos” e finalizando com o seguinte elogio: “M. António é, na realidade, um dos melhores poetas líricos de quantos nasceram nesta terra e a têm cantado.”

[2] Como é fácil de perceber, uso aqui negritude no sentido lato, que deriva do conceito e não de uma escola literária situada.

[3] Trecho inserido numa carta de Ernesto Lara Filho a Inácio Rebelo de Andrade, provavelmente em 1961, e que este último me deixou ler. Inácio Rebelo de Andrade foi co-fundador, com Lara Filho, da Col. Bailundo e da amizade de ambos, bem como desse projeto editorial, nos deu conta em Saudades do Huambo: para uma evocação da Col. Bailundo e de Ernesto Lara Filho (Andrade, 1994).

[4] Penso que tal afirmação é válida ao nível em que o autor trata o problema da subjetividade mas, como veremos em seguida, é discutível se for aplicada, tal qual, aos estudos literários. Confrontando com dados e teorias oriundos da Filosofia e da Psicologia a sua afirmação anterior (“ora esta «subjetividade», em nosso entender, quer a definamos em fenomenologia, quer em psicologia, como se verá, não é senão a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem”) torna-se pelo menos polémica. Leia-se, por exemplo, La construction du réel chez l’enfant (Piaget, 1937), resumida num capítulo («A construção do real») de A psicologia da criança (Piaget, et al., 1968), ou ainda Biologia e conhecimento (Piaget, 1978), do mesmo autor – para o campo da Psicologia; ou Linguagem e ser, de José Enes (Enes, 1983), e Sínteses activas, de Edmund Husserl (Husserl, 2005), para a Filosofia. As sugestões de Benveniste, para passarem da linguística aos estudos literários, imporão – como veremos – a interferência de conceitos operatórios e de referências não previstas no seu estudo, apesar de ele conter algumas passagens mais moderadas (cf. por exemplo p. 263: “a instalação da «subjetividade» na linguagem cria, na linguagem e, cremos nós, fora da linguagem também, a categoria da pessoa”). O seu conceito de não-pessoa e de terceira pessoa, para focar apenas um caso, se contraposto aos de Ricoeur em «Indivíduo e identidade pessoal» (Ricoeur, [1988] pp. 77-78), construído a partir de instâncias narrativas, exige essa interferência.

[5] Uso a palavra no sentido de “experiência total” dos objetos (Lefebve, 1980 p. 160). «Motivo» será tomado no sentido de “aquilo que suscita as referências” (por imitação da vida real, onde a percepção sensorial dos mais variados objectos e, por arrastamento, esses objectos suscitam motivações que privilegiamos). Um motivo recorrente é um tópico, ou lugar-comum. É nesse sentido que Jung importa para a psicanálise a noção de “motivo”, quando fala em “motivos oníricos-tipo” (Jung, 1975 p. 257).

[6] Os termos “reflexivamente” e “raciocinadamente” são retirados à terminologia de Piaget (Piaget, 1978 p. 159).

[7] A projeção é o “ato ou efeito de arremessar”. O caráter projetivo, na conceção da criação da obra poética, surge quando se imagina que essa obra é a projeção de um sujeito público, civil, pessoal, que se atira para dentro do texto, que o escreve para nos dizer o que ele é e o que está a sentir na interação com os acontecimentos.

[8] Citação de um artigo incluído na badana de Poemas e canto miúdo.

[9] No sentido kantiano da palavra. Sobre a colocação filosófica do problema leia-se o artigo elucidativo de Apel (-, 1988). Quanto à situação e função dos deíticos ela vem já exposta no artigo de Benveniste que citei: “são os indicadores da deixis, demonstrativos, advérbios, adjectivos, que organizam as relações espaciais e temporais em torno do «sujeito» tomado como referência [...]. Eles têm em comum este traço de se definirem somente em relação à instância do discurso onde são produzidos, quer dizer sob a dependência do eu que aí se enuncia” (Benveniste, 1971 p. 262).

[10] Benveniste: “ela [a subjetividade] define-se, não pelo sentimento que cada um experimenta de ser ele mesmo [este sentimento não é mais que um reflexo], mas como a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que ela reúne, e que assegura a permanência da consciência” (Benveniste, 1971 pp. 259-260; Benveniste, 1976 pp. 59-60). A inclinação psico-linguística do capítulo deve-se ao facto de ele ter sido inicialmente publicado numa revista de Psicologia (Benveniste, 1958). Daí também derivará a intensidade com que o autor afirma a natureza linguística da categoria «eu»; a instância psico-linguística a que Benveniste faz apelo – como se pode verificar pela citação alongada que apus ao início desta nota – visa evitar uma categorização exclusivamente psicológica (o sentimento de si mesmo), contrapondo-lhe uma categoria que se verifica pela recorrência do «eu» na linguagem. A concessão da linguística à psico-linguística é, no entanto, contrariada em outras partes do artigo, como por exemplo quando se afirma que “é em e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque a só linguagem funda em realidade, na sua realidade que é aquela do ser, o conceito de «ego»” (Benveniste, 1971 p. 259).

[11] Estudada na dupla vertente da motivação e da cognição (AAVV, 1993). Na definição clássica a personalidade é determinada pelo conjunto de traços recorrentes com que o indivíduo responde ao meio (Leyens, 1985).

[12] A afirmação saiu numa revista em 1946 (Wimsatt, et al., 1946) e, revisto, em 1954 (Wimsatt, et al., 1954). Os autores estão citados por M. F. Martins em Matéria Negra (Martins, 1993 p. 134). Note-se que Wimsatt e Beardsley não hipostasiam o texto literário como “uma entidade sem autor”, mas o autor “real” como uma entidade ausente do quadro de leitura e que, por isso, não serve para valorizar a obra. Numa tentativa de reação equilibrada à polémica provocada pelo texto apostou Paul Ricoeur (Ricoeur, 1987 p. 42), onde nos parece que um pensamento simétrico terá levado o filósofo francês a exagerar na interpretação daquilo a que chama a “falácia do texto absoluto” – e que, de qualquer modo, convém conferir também com outras obras suas (Ricoeur, 1991 pp. 118-122).

[13] A Crítica neo-realista, pp. 8-9.

[14] Uso o verbo “duplicar” conotando-o com a teoria de Luria (Luria, 1987), segundo a qual a aquisição da linguagem corresponde, no processo de desenvolvimento da criança, à duplicação do mundo (cf. (Sobre o lugar da linguagem na constituição da criança, 1993 p. 11)(AAVV, 1986 p. 40). García Berrio, na sua Teoria da literatura (Berrio, 1989), faz um largo uso de tal acepção para o campo literário (sobretudo no cp. III). No entanto, aqui radico a duplicação no leitor e não no autor (não quer dizer que pense que ela não se dá no autor; o que penso também é que não posso deixar de me colocar na minha posição real: a de leitor).

[15] Observe-se o conceito de autor em Lejeune: “um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica” ( (Lejeune, 1989 p. 11).

[16] A ideia é recuperada em Soi-même comme un autre (Ricoeur, 1990). Também Ricoeur nos alerta para a falácia de uma indeterminação absoluta, tanto quanto para a de um texto absoluto e fechado.

[17] O carácter prospetivo de tais desenhos é equiparável ainda ao que Jung aponta para os sonhos dos adultos, na linha do que Freud fez também – o que vem a ser utilizado nos testes da Antropologia Cultural para detectar os traços de uma “personalidade colectiva”  (Titiev, 1979 p. 271).

[18] O tipo de operação mental aqui referido apresenta um grau de parentesco significativo com a distinção que Ricoeur  (Ricoeur, 1987 p. 37ss) faz entre fala e escrita: a escrita aumentaria indefinidamente o poder que tal processo traz à criança, desmultiplicando-o também. Nessa medida, o germe da fala já traz em si o germe da escrita; a “descoberta” que nos levou a falar há-de aplicar-se e duplicar-se depois na construção da escrita. Significa isso que pode haver uma escrita meramente mental. Ou seja, que as tradições orais, em certas circunstâncias e na perspetiva de Ricoeur, são tradições escritas (Ricoeur, 1987 p. 45).

[19] Cf., de Ricoeur, os prefácios a As Culturas e o Tempo (Ricoeur, 1975) e a Le Temps et les Philosophies (Ricoeur, 1978). Na primeira antologia, v. também o texto de Kagamé (Kagamé, 1975 pp. 102-135). V., ainda, os dois textos iniciais de Coseriu em O Homem e a sua Linguagem (Coseriu, 1982). Na perspetiva espiritualista de Eduardo de Soveral, a palavra é vista como “a forma mais direta e originária de que o Espírito dispõe para se expressar, e que, no plano intersubjetivo que é o da cultura, seja por seu intermédio que ele institua as matrizes de um universo significativo, ou seja, revele, para si mesmo, uma perspetiva compreensiva unitária” (Soveral, 1993 pp. 64-65).

[20] Todo o capítulo é elucidativo desta análise do desdobramento enquanto patologia que falseia necessariamente a relação do ser com a consciência do ser. O facto de as regras do “jogo” literário serem outras transforma o que podia ser para o autor um sinal “esquizóide” (p. 68) num artifício através do qual se introduz a liberdade e a genialidade artística – permitindo “criar” uma realidade alternativa e propô-la como autêntica.

[21] Ideia retomada, como já vimos, por Claude Hagège.

[22] Trata-se de uma interpretação de Aristóteles por S. Tomás de Aquino, traduzida por José Enes (Enes, 1982 p. 8). Compare-se a ideia com a visão que Staiger tem do processo poético e que citaremos adiante.

[23] O autor reconhece que a noção era ainda vaga nesse tempo.

[24] Esta noção substitui a de um centro: “é de salientar […] que não se trata de um centro, mas de um conjunto de áreas” agindo numa “rede de interconexões” (Damásio, 1995 p. 114).

[25] Formando uma “maquinaria neural complexa de perceção, memória e raciocínio” (Damásio, 1995 p. 113), onde a noção de representações disposicionais é fundamental. Estas, para além de potenciais e variáveis, “incluem tanto o conhecimento inato como o conhecimento adquirido através de experiência” (Damásio, 1995 p. 118). Mas o “conhecimento inato” não chega, geralmente, a possuir “imagens na mente” (Damásio, 1995 p. 121). São as representações do conhecimento adquirido que se usam para o raciocínio e a criatividade, o que será importante para a minha reflexão mais à frente. A aprendizagem das “representações disposicionais” é feita pela sua composição momentânea “sob o comando de padrões neurais que foram adquiridos noutro local do cérebro” (Damásio, 1995 p. 118).

[26] Damásio refere “representações disposicionais” armazenadas, “em estado de dormência e em suspenso” (Damásio, 1995 p. 110), “num estado potencial, sujeito a ativação” (Damásio, 1995 p. 120).

[27] A experiência é simples: se olharmos longamente para um conjunto de traços começamos a desarticulá-los (“desconstruí-los”) e a reorganizá-los em novos conjuntos, parecendo-nos que se trata de outra coisa. É a mesma base de certas fotografias que, a partir de qualquer incidência ocasional de luz e sombra, nos fazem parecer que, por exemplo, certas manchas na neve são traços do rosto de Cristo. 

[28] O que não implica a inexistência de quaisquer estruturas inatas lineares, como a “segregação sensorial primitiva” (que se pode exemplificar no facto de as crianças terem tendência para fixar pontos luminosos). Isso, no entanto, fica longe da noção de formas a priori e próximo de reações que se prendem com o que, por comodidade, chamamos instinto de sobrevivência, revelado pela capacidade de reconhecer o que se destaca – Osgood escrevia o “contraste” (Osgood, 1973 p. 269), ou o que é diferente (e “certos mecanismos de atenção”). Trata-se, aí, de aspetos da organização percetiva e não de formas.

[29] Diria, em temos mais latos, a comparação de que essa similaridade resulta – pois também se conhecem as coisas por diferenciação e o processo é basicamente o mesmo, um processo de comparação.

[30] “A recordação de imagens visuais ativa os córtices visuais iniciais, entre outras áreas” (Damásio, 1995 p. 117).

[31] Um caso típico de salto expressivista pode ser visto em Metamorfoses do real, de Pedro Barbosa (o título indica, desde logo, uma visão mimética da literatura), tese de doutoramento apresentada à Universidade de Lisboa (Barbosa, 1996).

[32] Abrangendo, claro, a noção (“jogo de possíveis”) a configuração do autor, aspeto que Aristóteles nunca aponta, pois reflete sobre as obras enquanto realizações e não como autoria.

[33] Que Fernando Belo tentou fundar na Poética (Belo, 1994). Sobre a teorização de Batteux v. a Introdução ao arquitexto de Genette (Genette, 1986).

[34] A mesma coletânea de ensaios onde se encontra o texto de Krysinski é elucidativa desse tipo de trabalhos. No panorama cultural português, v., por ex., a recuperação teórica e prática da hermenêutica de Dante em Eleanor na serra de Pascoaes, de António Cândido Franco – trabalho crítico onde a recuperação da hermenêutica segue, como sucede com outros autores, a par de uma apropriação da psicanálise (Franco, 1992).

[35] O livro de Beaujour é rico em passagens onde se chama a atenção para o facto de o «eu» ser sempre construído e ser sempre uma ficção.

[36] “Nunca se deve portanto esquecer, quando da leitura de um diário íntimo, que ele preenche uma função. De modo nenhum relevo passivo e desinteressado da atualidade pessoal, de modo nenhum testemunho, mas ator. De onde o caráter quase sempre parcial e parcelar do diário, na medida em que, antes que a realidade completa do homem, ele apresenta uma influência, um imperativo ou um vocativo, um optativo, um condicional, em vez de um indicativo puro e simples” (Gusdorf, 1948 p. 111).

[37] Leia-se, particularmente, o texto de Vicente Ferreira da Silva, nas Obras completas, sobre a natureza da arte, onde a conceção lúdica é fortemente criticada.

[38] As regras constitutivas dizem que um dado gesto, ou uma dada prática, “valem como”.

[39] É pertinente estudar as respostas publicadas no volume para observar como elas desenvolvem estratégias várias de comunicação que visam cativar o editor Lejeune, que acabará por reconhecer também o exibicionismo dos seus correspondentes.

[40] A relação, no entanto, não tem que ser de direta projeção desses traços civilizacionais sobre o trabalho do conteúdo. Se o fosse, estaríamos ainda a ser expressivistas. Mais adiante formularemos uma hipótese diferente sobre o tipo de relação entre esses traços e a criação artística, dado que os códigos culturais também não são exatamente os mesmos para todas as pessoas de uma comunidade, pois cada pessoa terá deles uma – ou várias – leituras próprias.

[41] V. a crítica de Ricoeur à hermenêutica de Dilthey (Ricoeur, 1991 pp. 83, 89s, 95).

[42] “Desfiguração” traduz aqui o termo inglês “Defacement”.

[43] O que, no entanto, é consequência de uma generalização.

[44] Sobre tal perspetiva se funda o relativismo de Nietzche: “as distinções entre «sujeito», «objeto» e «atributo» são, portanto, invenções que se impõem de forma esquemática sobre fatos manifestos. A observação fundamentalmente falsa é aquela segundo a qual é um mesmo o que faz algo, o que sofre, o que possui algo ou tem uma qualidade determinada” (AAVV, 1991 p. 123). Estas citações são extraídas de colaborações de Sprinker nas duas antologias citadas. Na mesma linha de raciocínio comentam-se ainda as reflexões de Kierkegaard sobre a relação de autoridade que mantinha ou não com o que diziam os narradores dos seus livros.

[45] Esta informação foi-me confirmada por Maria José de Almeida e Sousa, viúva do poeta. Isto não significa, obviamente, que Mário António não apreciasse a pintura de Vieira da Silva. A “deslocação literária”, aqui, incide somente sobre os “brancos” de Arpad.

[46] G. Vico usava as palavras “curso” e “recurso” aplicando-as a uma visão elíptica da História (AAVV, 1991 p. 121)

[47] Como Krysinski reconhece numa tradição expressivista que cita (a da psicanálise), ou assumindo “a instabilidade das relações entre o observador e o sujeito” (Krysinski, 1989 p. 238). Nem ele, nem essa tradição tiraram, porém, do facto as consequentes conclusões epistemológicas: se o sujeito é múltiplo, de uma multiplicidade que possibilita combinações até ao infinito, como podemos reconhecer a sua projeção em todos os textos que escreveu? Como podemos falar numa interdiscursividade que, no caso concreto de um autor, o definiria univocamente?

[48] Baseia-se Ramos Rosa, nesse passo, em Bachelard, La poétique de l’espace (Bachelard, 1988). As referências a Bachelard e as ideias básicas do autor vinham já de ensaios anteriores, como «A experiência poética» (Rosa, 1960), e as mesmas ideias irão continuar a desenvolver-se em múltiplos textos posteriores, como «Algumas considerações sobre poesia e arte modernas» (Rosa, 1963)

[49] Hernadi refer a reedição da obra de Hamburger em 1968, que “elimina alguna incoherencias, aunque retiene los rasgos más importantes del argumento básico del qual me he ocupado (Hernadi, 1978 p. 41). Genette referencia também a edição de 1957 e atribui-lhe diretamente a dependência face ao par subjetividade-objetividade tal como definido pelos românticos (Genette, 1986 p. 73ss). A posição de Yvancos, guiada pela pragmática, parece querer salvaguardar o trabalho de Kate Hamburger do expressivismo tal como o concebi (Yvancos, 1992 p. 221).

[50] Cf. Aguiar e Silva (Silva, 1990 p. 193), que tira a mesma citação da edição parisiense, de 1944, da Estética de Hegel, sem diferenças significativas. Para o filósofo alemão, de facto, o lírico definia-se sempre e acima de tudo por se representar a si mesmo (a insistência no termo representação indicia uma reminiscência aristotélica, recordando Batteux (Genette, 1986)).

[51] Por esse motivo não considera Butor um “autoretratista”.

[52] Uso aqui “estados ou actos que objectiva” no sentido – algo kantiano – que foi dado à expressão por Eduardo de Soveral ( (Soveral, 1993 p. 18).

[53] V., sob essa perspetiva, a «Justificação» dos 100 poemas que na segunda parte deste capítulo comentarei.

[55]  E está linguisticamente unido, se com Benveniste nos lembrarmos de que o «eu» só se define em interlocução. Quanto à importância da mulher na definição do homem, veja-se esta observação de Francisco Romero em Filosofia De La Persona: “Perdemos, pois, algo ou muito, quando nos roubam o céu azul da nossa infância ou os rostos femininos da nossa adolescência” (p. 51).

[56] Verso de «PoetaAlimentei-me de Conceitos».

[57] Cf. Jornal de Angola, 31-05-1961 e A Província de Angola, 16-07-1961.

[58] Cf. Foucault, O que é um Autor?, Lisboa, Vega.

[59] Cf. Fernando Belo, Epistemologia do Sentido – I, p. 355 (cita Aristóteles nesse lugar).

[60] Cf. Lejeune, On Autobiography, pp. 10-11. Também Paul de Man: «  prosopopeia é o tropo da autobiografia e, por sua mediação, um nome, como no poema de Milton, torna-se tão inteligível e memorável quanto um rosto” (Anthropos, p. 116).

[61] V. por exemplo o poema publicado em Rumos, Lisboa, 1946.

[62] O verso final, a seguir citado, pode ler-se Marés de sangue e lua, desejada (“desejada” referindo-se a “lua” ou à “palavra”), ou Marés de sangue, e Lua desejada (como a pausa proposta pelo «e» e a palavra grafada com maiúscula parecem sugerir).

[63] O Estudante, n.º 63, ano XV, Outubro de 1950, p. 4).

[64] Recordem-se os poemas idênticos da antologia do abc, «Chuva» e «Chuva sobre a Infância», ambos de 1953. A palavra “chuva” ocorre 21 vezes, para além destas, nos 100 poemas, sofrendo predicações variadas.

[65] V., por ex., Anthropos, nomeadamente os anrtigos de Angel G. Loureiro, Georges Gusdorf, Karl Weintraub, James Olney, Philippe Lejeune, Elizabeth Bruss, Paul John Eakin, Michael Sprinker).

[66] «Élements por une theorie de l’interpretation du recit mythique», p. 38.

[67] É-o em Rosto de Europa mas já não em Coração transplantado.

[68] Diário de notícias, 13-3-1964. Segundo informação prestada por amigos do poeta, é pela mão de Natércia Freire que M. António irá colaborar no Diário de notícias.

[69] Flama, 27-2-1964. Recorde-se que José Blanc de Portugal, segundo testemunhos de amigos do poeta, foi chefe de M. António nos serviços de meteorologia de Luanda, contribuindo para a sua vinda para Portugal.

[70] Voices from an Empire, p. 121.

[71] «Lisboa, Centro do Mundo», José Esteves.

[72] “Se queres saber quem sou / Se queres que te ensine o que sei / Deixa um pouco de ser o que és / E esquece o que sabes”, diz um velho peul a Amadou Hampaté Ba, segundo Carlos Medeiros, que cita de História Geral da África, I, São Paulo, Ática; Unesco, 1982.

[73] Anterior à própria identidade (“Antes de mim / O sangue em minhas veias”), «Manhã-Europa», p. 27.

[74] “Seus olhos mulatos” em «Natal», p. 37.

[75] Reconstruída a partir de motivos quotidianos como o riso ou a cerveja («Ninguém se Ri como Nós», p. 34), ou projectada sobre a figura pública e histórica de D. José («Monumento a D. José, Lisboa», p. 44).

[76] Traços físicos, como a “carapinha curta”, de «Manhã-Europa», ou etnográficos (por exemplo a transposição dos termos da medicina tradicional para um quadro típico da medicina moderna («O Escolhido», p. 50).

[77] «Aqui, antes de mim, Chegaram», p. 32. Essa projecção, no entanto, parece explicar a definição de Lisboa e do reinado de D. José nos quais se sublinha a mistura de elementos (pp. 41-45).

[78] Sogra do poeta, segundo testemunhos de Tomás Vieira da Cruz, da viúva Maria José de Almeida e Sousa e de Carolina Terra.

[79] Para além dos testemunhos pessoais em que me baseei, principalmente o de Maria José de Almeida e Sousa, testemunhos segundo os quais o poeta foi estudar quimbundo para Londres, segui o curriculum vitae que o próprio apresentou em 1985 à Universidade Nova de Lisboa, para efeitos de obtenção do grau de Doutor (agradeço ao poeta José Manuel Capelo a cedência do documento).

[80] Facto confirmado igualmente no curriculum. Para o ano de 1966, entre outras coisas, aponta-se: “encarregado da regência, como estagiário, no Instituto de Línguas Africanas e Orientais, da disciplina de Língua Africana – Quimbundo” (p. 3).

[81] Gusdorf refere um caso idêntico, de divergência aparente entre a biografia pública e a biografia textual, mas que se inscreve no espaço, não na pessoa. Trata-se do poema «La Vigne et la Rose», de Lamartine, onde ele idealiza uma “grinalda de madressilvas” na fachada de uma casa que não havia lá no tempo que o poeta nos dá como referência (Anthropos, p. 15).

[82] Em vários textos já. Por exemplo «A Dimensão da Sabedoria», sobre a lírica do poeta português Albano Martins (Letras & Letras, n.º 62, 1-1-1992); «Artes Adivinhatórias», Vértice, Lisboa, 2000; «Comparação e Criação: uma perspetiva multIdisciplinar», Episteme, n.º 5-6, ano II, 2ª série, Lisboa, UTL, 2001. Os textos de M. António que tenho em mente estão na antologia de ensaios Reler África.

[83] Onde me parecem nomes mais salientes os de António Nobre e Manuel Bandeira.

[84] V., por exemplo, o poema «Labirinto», de Mário de Sá-Carneiro.

[85] «Caminho do Mato» (Poemas, Lisboa, 1961).

[86] V. Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa, Paris, Pierre-Jean Oswald, 1958.

[87] Ricoeur, Soi-même comme un autre, p. 176.

[88] Ritual que serve de confirmação à leitura, que lhe marca o final – como antes o faziam as narrativas tradicionais africanas, embora por processos elementares (v. a introdução de Chatelain aos Contos Populares de Angola) – e que pode funcionar como sinal de autoria neste contexto (cf. Júlia Dristeva, Semiótica do Romance, p. 65).

[89] Sob este nome é publicado um poema no «Suplemento de Domingo» de A Província de Angola de 15-4-1963.

[90] «A construção do amor», primeiro poema de 1956.

[91] «Carta do afogado», poema de 1960.

[92] P. 27, 3 ocorrências.

[93] António Ramos Rosa, Poesia, Liberdade Livre, pp. 111-124. As características de indeterminação, suspensão, presença viva do passado, “unidade pela fusão ou dispersão no cosmos”, são igualmente imputáveis à lírica de M. António, como temos visto.

[94] O que se nota pelas referências à “kalashnikov”, aos “Catorze anos na mata” (tão reivindicados e reinventados após a independência), à tatuagem no braço e às “missões diplomáticas” – traços afinal de uma biografia oposta à que o texto constrói como sendo a do autor textual.

[95] “Bernard Buffet” (p. 5), “Arpad” (p. 7), “Sophia”, “Ingrid Stromboli” (p. 10), “Lesbos” (p. 12), “Camões” (pp. 13, 14), “Penélope” (p. 13), os Vieiras adiante referidos e D. Dinis (p. 15).

[96] O interseccionismo linguístico é também dado por Bernabé, Chamoiseau e Confiant, no Éloge de la Créolité¸ como recurso a explorar por uma estética própria da crioulidade (cf. pp. 43 e 48-50). Avança-se aí com o conceito oportuno de «interlecto», que sibstituiria com vantagem o de «interlíngua» (p. 48). O uso fecundo do «interlecto» permitiria manter a crioulidade no âmbito da sua “complexidade fundamental” (p. 50).

[97] Nas palavras de Wordsworth e Paul de Man (v. Anthropos, pp. 116-117).

[98] Por vezes ao modo aforístico, ou temático, na acepção de Hernadi (“A cidadania constrói-se sobre cartões de crédito”, p. 25), outras vezes ao modo típico da descrição (É infindo o terminal do aeroporto: /Dos viadutos e pontes para as avenidas, / Junto às torres de vidro”). Para a análise da descrição utilizei a obra de Hamon, Introduction à l’Analyse du Descriptif.

[99] Sempre narrações curtas, muitas vezes de sentido irónico: “A rainha dos Kwakyutl / Vai passear / Com o primeiro comandante da guerrilha” (p. 25), ou: “Os grandes automóveis / Conduzem jovens grandes / Dos supermercados para os televisores” (id.).

[100] V. Fernando Guimarães, Poética do Saudosismo, p. 44.

[101] Último verso da composição (p. 18 da 2.ª ed.). A figura central aí é Aníbal Arquimedes Fernandes de Oliveira e a passagem foi já comentada antes. O irmão do poeta ajudou-o na recolha de elementos para o ensaio sobre as colaborações angolanas no Almanach de Lembranças (inserido em Reler África, onde se agradece a ajuda a pp. 207). Aníbal Arquimedes, topógrafo, estudava no entanto no Instituto Superior Técnico em Lisboa na altura em que fez a recolha (informação de Tomás Jorge Vieira da Cruz).

[102] O poema que refere este último, «Memória de Gonzaga», vem a pp. 18 da 2.ª ed. da obra e não fazia parte da primeira, o que dava um significado de conjunto diferente do que assim veio a ter, justificando a 2.ª ed., feita logo no ano seguinte.

[103] Reporto-me a Alberto Caeiro: «O Tejo é mais Belo que o Rio que Corre pela minha Aldeia», Poemas, 7.ª ed., Lisboa, Ática, 1979, p. 44.

[104] V. Denis Bertrand, «A Justeza», Comunicação e Linguagens, n.º 20, pp. 109ss.

[105] Op. cit., p. 111.

[106] Em «As Misturas de Raças», em Raça e Ciência, p. 127.

[107] Eduardo dos Santos, Ultramar, n.º 21, p. 132.

[108] Isabel Caldeira, «A Construção Social e Simbólica do Racismo nos Estados Unidos», p. 37.

[109] Cf. nota inicial, p. 7 (dos 50 Anos 50 Poemas).

[110] A limitação dos 50 poemas é apresentada como sugestão do autor, apresentada a Maria José de Almeida e Sousa em 1982 (cf. errata). No entanto, o editor da obra – só publicada à beira da morte – fala no desejo que Mário António tinha de incluir mais poemas, o que não foi possível por questões orçamentais.

[111] O desfazer ou esbater dessa ficção do nome «M. António» é reforçado quando sob o primeiro poema da antologia se escreve «Mário António», preenchendo-se o vazio habitualmente deixado pela inicial apenas.

[112] Reporto-me à disposição cronológica dos 100 poemas, no que diz respeito à distribuição narrativa, que não deixa de assomar em Era, tempo de poesia, na primeira parte do livro.

[113] Augé et alii, A Construção do Mundo, p. 23.

[114] Greimas, «As Aquisições e os Projectos», p. 30.

[115] Id., p. 34.

[116] Id., pp. 23-24, 27.

[117] Id., p. 22.

[118] Id., p. 24.

[119] Id., p. 27.

[120] Cf. Todorov, «Le Croisementdes Cultures», Communications, n.º 43, p. 22: “é indispensável, num primeiro tempo, identificar-se ao outro para melhor o compreender”.

[121] Id., ib., p. 20.

[122] Os três níveis estão enumerados no já citado artigo de Todorov (p. 20).

[123] “Numa zona de repetidos encontros culturais é a homogeneidade absoluta que resulta ilusória” (Alfred Arteaga, «Bestie e Slabbratti Colpi di Colore», Baldus, pp. 95-96.

[124] A Águia, II série, n.º 9.

[125] Cf. Y. K. Centeno, «Fragmentação e Totalidade em «Chuva Oblíqua» de Fernando Pessoa», 5 Aproximações, pp. 71-92.

[126] Loc. cit., p. 96.

[127] V. o artigo de E. A. Funes, «Pacoval, Memórias de um Mocambo na Amazónia. História vivida e história contada», Imaginário, São Paulo, Jan.º 1995, pp. 123-136.

[128] Igualmente privilegiada pelo saudosismo e por Leonardo Coimbra (em O Pensamento Criacionista). Cf. o trabalho de Fernando Guimarães intitulado Poética do Saudosismo, p. 43: a referencialidade “desenvolver-se-ia mediante o recurso a imagens relacionadas com a própria presença da Natureza [...] que sofrerão, depois, alguns desvios devido àquele tratamento analógico ou alegórico que tanto pesa na poesia dos saudosistas”. Esta característica, tendo sido mais tarde revalorizada pelo surealismo português (p. 44), manter-se-ia portanto numa linha de actualidade – facto que seria estimulante, também, das opções estéticas de M. António.

[129] Cf. Salvato Trigo, «A Alteridade das Literaturas Africanas em Língua Portuguesa», Ensaios de Literatura Comparada Luso-Afro-Brasileira, pp. 61-76.

[130] Cf. António Ramos Rosa, Poesia, Liberdade Livre, p. 12: “a imagem poética moderna restabelece a unidade na multiplicidade”. Mais adiante (p. 13) cita oportunamente este verso, que faz a ligação com a imagem da crioulidade: “le mot créole tout en liège sur du satin”. Digo “de uma forma muito própria” porque no Modernismo – como no interseccionismo pessoano – se trata de integrar as várias significações de uma percepção original, enquanto aqui se trata de várias percepções que se conjugam a uma significação principal: a de ser a realidade uma confluência, não necessariamente “de contrários”, como diz A. Ramos Rosa.

[131] Sobre as datas, v. a errata no final do livro. Agradeço mais uma vez as informações fornecidas pela antologiadora e pelo editor.

[132] «Dois Paradigmas da Poética», Poétique, pp. 89-90. Shapiro termina o artigo defendendo “uma teoria em que o valor semiótico deve tomar uma posição central (p. 90).

[133] Éloge de la Créolité, p. 29.

[134] Cf. Andrea Smorti, Il Pensiero Narrativo, cp. I.

[135] Laurent Jenny, «Poesia e Narrativa», Poétique, n.º 28, p. 109.

[136] Na “Marginália” de Coração Transplantado (o artigo aí transcrito saíra na revista Flama, de 27-12-64).

[137] Éloge de la Créolitéanexo.

[138] Cf. Boulègue, Les Luso-Africains de Sénégambie.

[139] Jorge Dias, «Algumas Considerações Sobre Áreas Culturais», p. 8.

[140] V., a esse título, as narrativas de crítica ao poder pós-independência feitas por escritores exilados de gerações diferentes, como é o caso de Manuel dos Santos Lima e José Sousa Jamba.

[141] “pois não faltam / Os que te erguem bandeiras desfraldadas / Tu como herói – guias, eles, no entanto / Da tua condição (primeira estrofe).

[142] Sigo, também aqui, principalmente, o já citado artigo da Communications.

[143] Transformações da Saudade em Teixeira de Pascoaesde António Cândido Franco, p. 22.

[144] Por Ramón Piñeiro associado à morriña, ou melancolia, precisamente como desvirtuamento da saudade (Filosofía da Saudadep. 50).

[145] No sentido hegeliano definido no Cp. I.

[146] Acordando-se também à tradição saudosista e à lição que dela tirou Pessoa.

[147] Por isso também foi um “tema” que acabou “por dominar a poesia dos saudosis­tas” (Fernando Guerreiro, op. cit., p. 49).

[148] «Algumas Considerações sobre Áreas Culturais», p. 8.

[149] Quer pela “maneira intimista”, quer pela própria declaração de M. António como “influência” por escritores dos anos 80. Isso é patente na entrevista concedida pelos jovens escritores a J. C. Venâncio, e transcrita no final de Literatura e Poder na África LusófonaV, aí, sobretudo as intervenções de L. Feijoo: à pergunta sobre quem o terá influenciado, da «geração de 40», responde: “Sei lá... Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alexandre Dáskalos... também o Mário António” (p. 101); à pergunta sobre o “primeiro romance”, responde, entre outras coisas: “preciso interiorizar mais a vida social do país” (p. 103). Sobre a literatura empenhada, é sintomática a resposta de Luís Kandjimbo (um crítico do ensaísta Mário António): “as vozes que fazem referência direta à situação política, verificamos isso no nosso país, são nada mais, nada menos, que reproduções do discurso... não literário, e das palavras de ordem” (p. 102).



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