Cisão e saudade
Mais pensamento que existência foi
Tua vida de infante, pobre herói!
(«Acalanto para o Amigo»)
*
“O estilo deve entender-se aqui não somente
como uma regra da escrita, mas como
uma linha da vida”
(Georges Gusdorf, «Condições e Limites da Autobiografia»)
A definição de crioulo africano e os 100 poemas
Fiz até aqui o levantamento da identificação do sujeito-locutor nos 100 poemas. A conclusão principal que pude fixar foi a de que o seu retrato é o de um elemento da camada intermédia da população – assumindo o termo “intermédia” um sentido psicológico, ‘racial’, social e cultural. Quer dizer: os 100 poemas apresentam, no lugar de sujeito dos seus versos, um crioulo mestiço de Luanda.
Acrescento “mestiço” a “crioulo”, pois, como veremos a seguir, “crioulo” não implica necessariamente a mistura biológica de ‘raças’ definidas pela cor da pele ou o tipo de sangue. Ainda que aceite que “entre nós, crioulo tem uma conotação sentimental que não podemos pôr de lado: denota, porventura, o tipo melhor acabado da amálgama biossocial que os portugueses realizaram nos trópicos”, “mestiço” é um termo de menor alcance, que designa estritamente indivíduos que são filhos de pai e mãe (ou de antepassados paternos e maternos) de cores de pele diferentes.
Na lírica de M. António, o crioulo não se concebe enquanto criação dos portugueses, mas como realidade que, resultando de um cruzamento, possui uma história e uma génese que podem ser vistas pela outra das vertentes do cruzamento que não a colonial. O que está em diferença com algumas afirmações do ensaísta Mário António F. de Oliveira.
Devemos estudar agora, antes de aprofundarmos a pesquisa das “condições da crioulidade” no texto, as conceituações que podem conduzir ao termo [crioulo] que temos vindo a utilizar.
Como lembra Mário António Fernandes de Oliveira na sua tese de doutoramento, a palavra começa por aplicar-se nas Américas espanholas àqueles que – sendo brancos ou filhos de brancos – eram nascidos nas colónias, por oposição aos que vinham “do Reino”, chamados “reinóis”. Generalizou-se depois com tal significado por outras regiões, podendo podendo mesmo designar um povo-nação (Cabo Verde, Antilhas). Mas havia, naturalmente, realidades locais diversas que obrigavam a uma climatização do conceito. A distinção entre os crioulos da América hispânica e os falantes de outras línguas europeias na América, feita por Gilberto Freyre, é elucidativa dessas divergências.
Em O Luso e os Trópicos, o conhecido sociólogo brasileiro faz a diferenciação do sistema escravocrático luso-tropical em face de outros sistemas, europeus (sobretudo não hispânicos e oriundos de países protestantes). Aí, radica o processo de criação de um “terceiro tipo de cultura ou civilização” na política do Infante D. Henrique, “ao procurar dar sentido amplamente cristão às primeiras relações entre cristãos e não-cristãos, entre europeus e não-europeus – e não apenas entre senhores e escravos – na África ocupada pelos Portugueses e entre os Portugueses que acolheram nas suas casas patriarcais os primeiros cativos vindos da África” (p. 298). Por sua vez a política do Infante se radicaria mais longinquamente no tipo familiar do sistema escravocrático maometano (p. 300).
O sistema do tipo familiar adoptado contribui fortemente para que seja também generalizada a utilização do termo crioulo para os, ou pelos, filhos dos escravos (igualmente filiando-se numa genealogia transcontinental). O termo designava, portanto, seres humanos que, descendendendo de genealogias transcontinentais, eram nascidos no lugar, eram já filhos da nova terra onde viviam. Isso implica, para eles, uma formação diferente da dos seus antepassados, transculturante – e, noutros tempos, dadas as morosidades no transporte e comunicações, mal informada em relação aos países de origem das genealogias exógenas. A menção à mestiçagem biológica não era obrigatória e talvez, num momento inicial, não existisse ainda ligada ao conceito de crioulo, visto ele se aplicar a princípio aos filhos dos «reinóis», que podiam ser brancos ou mestiços. Daí que o conceito de crioulo tenha uma definição básica que passa pela noção de cruzamento linguístico e cultural, remetendo-se o cruzamento biológico à palavra «mestiço».
Mesmo hoje, os intelectuais antilhanos definem o processo de crioulização como o contacto de populações culturalmente diferentes, fugindo a mencionar a miscigenação ‘racial’ ainda quando possam tê-la também em mente. Centrando a definição no caso americano, referem um duplo processo: “a adaptação dos Europeus, dos Africanos e dos Asiáticos ao Novo Mundo; a confrontação cultural entre estes povos no seio de um mesmo espaço, conduzindo à criação de uma cultura sincrética dita crioula”.
Transpondo para a África Ocidental, teríamos apenas que retirar o termo «novo mundo» – geralmente aceite como designativo de América. A tónica do conceito mantém-se, portanto, ao nível cultural, embora as componentes da miscigenação também mudem, pelo menor significado ali da palavra “asiáticos”, e pelo facto de haver crioulos a participar da colonização ou da crioulização.
A participação de crioulos na colonização vem ilustrada, como veremos, nos 100 poemas, pela referência aos “verdianos” e aos “emigrados das ilhas”, e torna o resultado da miscigenação numa das suas componentes, facilitando assim a identificação do «filho da terra», como também veremos na análise da saudade na antologia do abc, que adiante vou elaborar e fixar. Trata-se de um facto conhecido, para o qual chama documentada e perspicazmente a atenção António Carreira, bem como Boulègue, no que se refere ao comércio (sobretudo de escravaria) no norte da costa africana ocidental e desde o século XVI.
Mas António Carreira propõe que a miscigenação “de sangue” e a cultural vieram a par, tornando-se a língua (crioula) “o grande expoente” da mistura de culturas. A afirmação – breve e inserida, por assim dizer, “a talho de foice” – parece-me redutora e simplista, mais que não seja porque pode sempre haver miscigenação cultural sem haver miscigenação biológica.
Mário António Fernandes de Oliveira, nesse aspecto, e talvez influenciado por alguma bibliografia dos EUA, foi mais longe ainda do que António Carreira, ao aceitar que a mestiçagem biológica vem primeiro que a cultural. Ainda que faça a ressalva de que “a mestiçagem biológica, aumenta o número e intimidade dos contactos sociais, promove a fusão de heranças culturais”, aspecto ao qual a sua fonte (E. B. Reuter) não dera atenção, ainda assim ele aceita a ideia de uma progressão da biologia para a cultura, quando ele próprio conhecia certamente casos em que, não havendo mestiçagem biológica, tinha havido mestiçagem cultural. De resto, no prefácio que fez à novela Nga Mutúri, de Alfredo Troni – um português de ascendência italiana, cuja família manteve laços íntimos com a Maçonaria coimbrã – Mário António reconhece que “o modelo que acho apto ao entendimento dos produtos culturais do referido intercurso (relações euro-africanas) é o crioulo, na acepção que me parece ser-lhe a devida, de estruturação, a diversos níveis, com vária proporção das culturas originárias, de formas de equilíbrio de matriz ecológica, não eliminando o dinamismo que lhes esteve na origem, que antes prossegue”. Ou seja, também ele chegara a definir o crioulo sem qualquer menção ao mestiço ou à mistura biológica, numa definição entretanto completa a nosso ver, incluindo o conceito de harmonização do homem com a circunstância, que o sintagma “equilíbrio de matriz ecológica” pressupõe, e que se articula perfeitamente à psicologia de Piaget, assente na noção de instrumentos de troca com o meio.
No âmbito da Antropologia Cultural, Mischa Titiev, embora aborde a hibridação numa perspetiva bio-cultural, admite que “todas as vezes que se dá a mistura biológica da raça, também é provável que ocorra um grau de mistura cultural”; mas, logo a seguir, dá vários exemplos de importação cultural sem referência a misturas biológicas, exemplos que desmentem a crença implícita na primeira afirmação.
Para além dos exemplos de Titiev, e de outros que podíamos individualizar em Angola (o do cronista e poeta branco Ernesto Lara Filho seria um, o de certas escritoras de narrativas curtas de ficção outro), a crioulização começa por ser reconhecida por alguns dos seus agentes como um processo típico dos filhos brancos das colónias americanas, ou dos brancos nelas criados, como indica a origem da palavra. Quer dizer que, no início, o termo indica um processo cultural e não um processo de fusão biológica ou racial. E isso acorda-se à equiparação – feita por Mário António – do conceito de «ilha crioula» ao de «ilha cultural», que, segundo E. Williams, nomeia a “cultura local que difere fundamentalmente da cultura mais ampla de que está rodeada”.
É claro, no entanto, que, numa situação de relativo isolamento face às «metrópoles» de origem (e recebendo muitas vezes viajantes da mais diversa proveniência), a pequena primeira comunidade colonial ia mesclar, não apenas os costumes, mas também o seu corpo com os de outros povos – ao mesmo tempo que mantinha por referência costumes e princípios caídos em desuso nas capitais dos reinos. Isso é notável, em África, na história dos auto-proclamados “portugueses” da “Senegâmbia”, comunidades crioulas que em muitos aspetos serão similares às de concentrações urbanas como Luanda e Benguela na fase inicial do seu povoamento. Como, com o tempo, os «criollos» acabavam por contrair casamentos com pessoas de cores de pele, sangues e genealogias diferentes, estendeu-se geralmente a semântica do termo, de forma a incluir no conceito de crioulo a menção à mestiçagem biológica. Só depois da generalização podemos ver como correcta a definição final, que Mário António Fernandes de Oliveira nos dá, da «ilha crioula» de Luanda, como sendo o resultado de um fenómeno “de adaptação ecológica, e de viva consociação de elementos étnica e culturalmente diferentes”.
Este facto é concordante na lírica de M. António e nas sociedades de referência.
Nos que chamo “livros de itinerância” há, pelo menos, duas ocorrências em que “mulato” e crioulo se aproximam semanticamente. A primeira vem no Rosto de Europa (p. 37): “Seus olhos mulatos / Se apertam ao frio” (onde a adjectivação, predicada a “olhos”, leva a pensar numa visão mulata e, por isso, numa definição cultural para que seria mais própria a palavra “crioulos”). A segunda ocorrência vem em Afonso, o Africano (p. 26): “A mobilidade interna das sociedades imóveis”, reportada pelos “seus fluxos produtores de crioulidade”, evoca bem mais os “rios de sangue e esperma a produzir-me”, dos 100 poemas, que uma definição cultural.
Por seu lado, e para as sociedades de referência (sobretudo a angolana, que mais nos interessa aqui), a relação entre “o desenvolvimento da miscigenação no mundo tropical”, a intensificação de uma cultura crioula e “a importância das regiões para o mercado internacional”, demonstra como a evolução, mas não a emergência, da mistura racial contribui para a solidificação das sínteses culturais.
A generalização semântica do termo, ao incluir uma vertente linguística, uma vertente histórica, tendências cultuais e datas rituais, caminhou igualmente para a etnicização do conceito. O segmento crioulo, etnicamente concebido, instala-se mesmo como resistência à força absorvente da globalização que, de início, o gera a partir de uma “economia-mundo”. Porque a necessidade de tal economia não era propriamente a de etnicizar uma camada intermédia, dado que a etnicização dos segmentos intermédios, e a sua multiplicação, podem criar dificuldades à funcionalidade do sistema (tornando-o, por exemplo, mais lento e mais oneroso). Complementarmente, no aspecto cultural, a progressão de uma personalidade auto-regulada, que garante a etnicização, cria um espaço cada vez maior de imprecisões e possíveis fugas ao imaginário que acompanha o desenvolvimento transcontinental de uma “economia-mundo”.
Para conceber o crioulo neste conceito generalizado e etnicizante, foi necessário levar em conta o outro com o qual se cruza o descendente de europeus. Na África Ocidental ao sul do Saara, isso é determinante de diferenças psicológicas e culturais que não permitem a transplantação pura e simples do termo, com a sua semântica original. Aí, a “outra componente” de que fala Mário António nos seus ensaios sobre literatura angolana – maioritariamente banto – nunca saiu da terra, não tem uma genealogia transcontinental (como no caso do Brasil), ou transterritorial (como no caso de Cabo Verde).
Esta “componente” crioulizou-se também para que surgissem seres humanos miscigenados biologicamente, ou mesmo só culturalmente. A miscigenação definida só pela cultura, para a zona da Guiné, foi evocada no livro de Boulègue já citado, e também no de Carreira: “(...) a minoria dita cristã, ou cristianizada, mais conhecida por Grumete, ou seja o núcleo que voluntariamente havia adoptado hábitos, costumes e comportamentos copiados dos brancos”. O crioulo somente cultural é, pois, tanto branco ou mestiço quanto negro, e tanto herdeiro de uma transcontinentalidade quanto continuador de uma linhagem testificada localmente.
A história do crioulo da África ocidental tem pois que ser contada ao mesmo tempo na perspetiva dos filhos da terra, não só na que parte dos “reinóis” ou de outro sítio. O sujeito-locutor dos 100 poemas é um crioulo mestiço construído por uma informação genealógica onde não há, precisamente, referência direta a origens exógenas (por exemplo, a um avô ou uma avó brancos); ou seja: é um crioulo mestiço visto a partir dos que nunca saíram do lugar. Veremos como depois da antologia tal facto se torna amplamente funcional, na medida em que o “autor” passará a ser figurado como esse crioulo mestiço fora do lugar onde se forma como tal.
A organização “unilateral” (mas indiferenciada) da filiação do sujeito-locutor, arrimando-se à componente dos «filhos da terra» (no sentido mais amplo da palavra) acorda-se à última fase da história da teorização da identidade crioula, que só muitos anos depois da saída da antologia viria a ter lugar.
Efectivamente, na sequência da gestação e proliferação da negritude em países antilhanos, recusou-se a influência do olhar europeu que provocava uma expressão “mimética” toda ela exterior, através da qual o crioulo olhava para si próprio. A recusa trazida pelo negritudinismo expulsou a figura do branco da constituição imaginária do crioulo, ou remeteu-a a um papel negativo, demonizou-a. Ao fazê-lo, amputou parte da realidade crioula por influência de uma segunda exteriorização: aquela imposta pela visão ou idealização do negro, que levava o crioulo a construir uma imagem de si próxima (ou em função) do retrato modelizado que a negritude fazia do africano “puro”. Foi isso que sucedeu, largamente, com a sociedade crioula angolana, sob a influência da Negritude, nos anos 50 e seguintes. Em consequência dessa segunda exteriorização é que a poesia de M. António, como vimos através do exemplo de António Cardoso, foi depreciada por outros poetas.
Quando os intelectuais crioulos das Antilhas se apercebem do erro e partem para a recomposição do quadro crioulo em si próprio, sem cedências a qualquer tipo de imitação ou exteriorização, o seu ponto de partida é o trabalho feito por negritudinistas, que recusavam o enfoque europeísta. A recusa dos dois «desvios», das duas exteriorizações, e a recomposição de um retrato autêntico pela revalorização estética e ética do “íntimo” e do cruzamento, constituem um ponto de chegada para esses intelectuais e escritores, um ponto de chegada cujo ponto de partida fora a recusa do branqueamento cultural.
Quando M. António publica os 100 poemas – e praticamente a partir do início da sua vida pública enquanto poeta – o trabalho de revalorização do negro estava ainda em voga (e vinha sendo feito desde a Mensagem de Luanda, que o lançou na capital). A atenção que deu, como investigador, à teorização e à história de um mundo crioulo atlântico ter-lhe-á permitido reconstituir um retrato que, marcado eventualmente ou estrategicamente pela negritude, se inicia pela componente local (excluindo o branco da sua genealogia) para chegar, como mais tarde os antilhanos, ao mestiço e ao crioulo despidos da idealização do africano “puro”.
É uma explicação plausível, e que se acorda à visão do ato poético tal como a desenvolvi no Cp. I, ou seja, aceitando apenas a lição que nos traga o estudo do sujeito público enquanto ele se tomar por “modelo” e “fonte de informação” do sujeito poético. No entanto, como adiante veremos, há uma outra razão para não ser aqui descrito o “avô branco”, ou seja, a vertente colonial ou exógena da crioulização: precisamente porque ele se criouliza a partir de fora e, nessa medida, não serve para explicar a crioulização a partir de dentro, que é a dos filhos do lugar – e, portanto, a do locutor.
O facto de a genealogia do locutor dos 100 poemas estar assim organizada não põe, por consequência, em causa a definição básica e generalizada que nos fala de um cruzamento, mas obriga-nos a olhar para esse cruzamento de outra maneira.
O português vê-se obrigado a viver em condições climáticas diferentes e sob um regime alimentar alterado – por essas condições e por outras culturas – fisicamente distanciado face ao seu território de origem; contrariamente, a avó negra ainda prepara os “mimos da nossa terra”, porque não saiu dela. O português sente-se, portanto, numa espécie de exílio que a lírica dos colonos acentuou, e onde se vê constrangido a modificar-se para sobreviver. Ele terá de adoptar o que os estudiosos e teóricos que se debruçaram sobre o conceito de raça intitulam «adaptação indireta». Como diz L. C. Dun, as ‘raças’ que já têm, há muito tempo, o mesmo «habitat», parecem estar particularmente aptas a viver nessa região. A sedentarização teria provocado o que se pode chamar uma “adaptação direta”, que se contrapõe à “indireta” promovida a partir da aprendizagem e da reflexão realizadas sobre o meio.
Neste particular, nas Américas, a situação é obrigatoriamente outra, uma vez que o elemento negro ou o oriental se encontram, eles também, “desterritorializados”. Em África os investigadores têm de levar muito mais em conta o elemento territorializado do que no Brasil.
Neste aspecto é por isso conveniente a comparação com a já citada obra de Boulègue sobre os “luso-africanos” da Senegâmbia. Ele classifica em três os tipos de adaptação dos estrangeiros, conforme o isolamento a que teriam sido submetidos: o primeiro é o da assimilação total (citando-se exemplos de pessoas que já mal recordavam a sua língua de origem – que, no caso, podia ser o crioulo de Cabo Verde); o segundo é o de uma assimilação mínima, seguida pelo regresso ao país natal; o terceiro (aplicável ao exemplo por ele estudado) é o da permanência ou inserção em pequenos grupos de assimilação parcial com os habitantes locais – tendo como consequência depois o que chamamos transculturação. Esse é, a nosso ver, o mais próprio para descrever o que poderíamos chamar a “sociedade central” angolana (Venâncio) e a inserção do português nela.
Dentro de tal quadro, o filho da terra sente uma contrapolar mudança psicológica e cultural, provocada pelo contacto com o outro, pela tendência para a diferenciação face aos que o rodeiam, e pela pressão exercida pelo outro; mas ele está no ovo geográfico onde se reconheceu pela primeira vez, nos seus momentos identificadores iniciais. Já não se pensa igual aos antepassados (ou ao que foi) – perdendo-se a similaridade no tempo – mas persiste e subsiste no mesmo espaço que eles e no mesmo espaço que ocupava quando era novo.
A noção de continuidade, alicerçando-se numa verificação tópica, espacial, assegura ao filho da terra um tipo de miscigenação, em certo sentido (o do relacionamento com a anterioridade identificadora), oposto ao do colonizador. Este, perdida a sua ipseidade espacial, procura manter a similaridade com o passado ao nível da cultura estruturante do seu «ego», tornada fundamental e assegurada por traços civilizacionais como instrumentos tecnológicos ou instituições típicas (o Estado, a Igreja, o Colégio); aquele, perdida a similaridade psicológica e cultural com o passado, acentuará a sua ipseidade no espaço, reforçando os laços que o ligam à terra e aos “da terra” onde se conheceu, laços elementares (que passam por elementos e não necessariamente por estruturas). Pela importância do espaço na rememoração, de que fala Beaujour, a identidade dos que permanecem não é sentida em perigo, havendo por isso uma abertura maior ao novo, ao diferente, ao cruzamento cultural e cultual.
O colono é quem se pode conceber como o mesmo porque se lembra de si ao longo de um tempo em que desfilam espaços e elementos diversos. Ao longo do tempo, ele manteve-se fiel ao que julgou inicialmente definidor; através da figura da recordação (vivificada pela saudade ou pela nostalgia), o colono compara-se a si próprio e encontra características comuns e evoluções “na continuidade” – ou seja, mudanças que não chegam a afectar a estrutura básica. A recordação assegura-lhe a verificação de símiles (nos traços fundamentais do carácter e na estrutura cultural a que persiste agarrado), bem como da permanência no tempo. Numa passagem de Coração transplantado deparamo-nos com a configuração desse processo: ao ligar a televisão, previsivelmente em Londres, e reparar nos “dedos de fuligem”, o locutor recorda-se de si na sua infância e explicita a “mesmidade” que o ancora: “Sou, concerteza, o mesmo”.
Em contrapartida ao que está longe ou veio de longe, o “filho da terra” mantém a ideia de permanência pela noção de espaço e não pela de tempo, visto que mudou o seu carácter, ou adoptou programas narrativos diferentes daqueles que a tradição onde se inseria por nascimento previra para a sua biografia. Ele não dirá ser o mesmo, mas estar no mesmo (espaço), ou na mesma (situação). Quando procura objectivar-se ao longo de um percurso temporal, ele é aquele que já pensou de determinada forma e que pensa agora de outra forma, ou seja, ele configura-se como aquele que mudou na sua estrutura básica, assumindo sem complexos nem limitações que tal estrutura é dinâmica e visa regular o melhor possível a relação com o meio (portanto muda quando há mudanças significativas nesse meio). O filho da terra é na medida em que já não é o mesmo que se via naquele espaço que se mantém essencialmente igual. Na medida em que “evoluiu”.
Do colono ou do estrangeiro se pode, pois, afirmar que a errância no espaço o conduz à mesmidade no tempo; do “filho da terra”, que a cisão psicológica inscrita no tempo o conduz à mesmidade do espaço. O que os dois têm em comum é, apenas, o facto de em qualquer deles a abertura não ser absoluta: nem o «filho da terra» apropria inteiramente a cultura estranha, nem o elemento exógeno se integra inteiramente no novo espaço.
Isto, que podemos afirmar a partir de verdades históricas basilares e generalizadas, é amplamente confirmado – no que concerne à construção da identidade vista através dos “filhos da terra” - pela antologia de que estou a tratar. A figura da cisão emerge no carácter do sujeito (“eu é que sou outro” ou no do tempo (“os tempos são bem outros e mudados”), mas o lugar permanece (basicamente a cidade-berço de Luanda). Teremos posteriormente oportunidade de ver como, a partir dos 100 poemas, o “romance” da construção do sujeito lírico ancorado à figura pública de M. António prossegue o «Drama» de identidade – que o universaliza – na dependência da radicação do enunciador num espaço diferente.
Pudemos portanto observar que a genealogia sugerida para o sujeito-locutor da antologia é retratada como constituindo-se através de constantes cisões face ao que nos é dado como o seu ninho cultural e psíquico: a avó negra rompe com as velhas tradições, a mãe acentua o processo de desculturação por já não possuir a sabedoria das antepassadas, e o filho dela procura romper com o processo desculturante encarnado pela mãe, sendo no entanto instruído no ensino público e tendo amado, segundo a maneira que inicialmente supusera africana, mas também já de acordo com a tradição literária europeia. Tudo isso acontece sem se figurar uma viagem, uma deslocação no espaço que justificasse a mudança de hábitos ou a adopção, ainda que parcial, de outra cultura. O facto de a genealogia evoluir por cisões confirma a nossa ideia de que o “filho da terra” pode miscigenar a cultura estruturante, de origem ou de referência (e fá-lo de facto), porque não abandona o território onde se visualizou desde que se lembra de si.
Pela sua permanência no espaço, a partir da “primeira geração” (a da avó negra, no nosso caso), os crioulos são também já os descendentes, tanto da origem negra banto, quanto da origem branca portuguesa: o que deles se diz tanto vale para brancos quanto para negros, desde que formados no lugar. Tornando visível a configuração da crioulidade, a obra concebe os elementos de segunda e terceira geração como também miscigenados biologicamente, confirmando uma das técnicas apontadas à lírica do autor público dos 100 poemas, que é a de fornecer em simultâneo à leitura o corpóreo e o etéreo, o concreto e o abstracto (uma técnica, aliás, apontada igualmente para os “auto-retratos” por Beaujour). Dado explicar-se como recurso literário esse facto, podemos deduzir que, no texto, não se concebe a crioulidade obrigatoriamente como mestiçagem. No entanto, como vimos atrás, a definição do «eu» como crioulo é feita pela destrinça entre as várias cores de pele, e não somente pelas diferenças culturais. O contorno do crioulo processa-se liricamente no aspecto cultural, psicológico e racial. Só depois de garantida ou definida a sua identidade o texto irá suspendendo ou harmonizando a coloração, ao mesmo tempo que sublinha a culturalidade do conceito. O que aponta para dois momentos: um primeiro, em que a diferença determinada pela história se inscreve “na carne”; e um segundo momento, em que essa diferença emerge apenas no comportamento, com menor peso do corpo (isso acontece sobretudo a partir dos últimos dos 100 poemas).
Retomando o fio anterior dos raciocínios, os crioulos e os elementos da primeira geração mantêm – como “filhos da terra” – um processo identificador e aculturante idêntico, desaparecendo o percurso de assimilação tipicamente realizado por colonos, que não abandonam a cultura estruturante de origem porque já trazem a identidade posta em risco na sequência da deslocação espacial e suas consequências imediatas. Isso permite-nos equiparar a expressão «filhos da terra» e o termo «crioulo», na medida em que o crioulo só aparece retratado enquanto filho do lugar. Isso permite compreender igualmente – agora à luz de uma razão intrínseca ao macro-texto que a antologia constitui – porque nesta composição da filiação do «poeta» não surge a figura do antepassado colonial (na medida em que nenhum antecedente é designado como colono): dadas as divergências profundas nos respectivos processos identificadores, ela não explicaria a construção da identidade centralizadora das referências – que, sendo centralizadora, subordina a presença de outros à definição de si; portanto, é dispensada pela economia de significação da obra, e não por qualquer espécie de prurido negritudinista.
A lei da economia da significação é, neste âmbito, muito respeitada em toda a lírica de que nos estamos a ocupar. A relação identificadora com o espaço, ou através da permanência no espaço, somada ao facto de na antologia se narrar o processo de formação da personalidade do sujeito, justifica igualmente que só depois dos 100 poemas as obras passem a ser estruturadas em função da ancoragem enunciativa a outros espaços, extra-africanos e extra-angolanos – ficando de permeio um livro que, previsivelmente construindo uma referência luandense, descontextualiza-a ao ponto de parecer anulado – na maioria dos poemas – aquilo a que poderíamos chamar o espaço civil, ou circunstancial. Uma vez fixada a identidade, a personalidade do sujeito enquanto figuração da responsabilidade original do criador dos textos, a continuidade no espaço torna-se dispensável e o sujeito poderá deslocar-se. A sua especial caracterização como crioulo determinará então uma forma específica de relacionamento com novos lugares, ou de presença em novos “mundos”. Mais do que isso, uma vez que a identidade foi estabelecida em função do espaço, já nada mais se escreve para referir o mesmo espaço, pois a identidade já foi retratada, e por isso apenas encontramos “livros de itinerância”, livros que desenham referências espaciais completamente novas. O espaço inicial é dispensado, enquanto motivo “inspirador” de todo um livro, por desnecessário, quando, sendo-se adulto, não se está noutro. Mas, se se estiver em outro, logo o cenário da infância é solicitado a depor a garantia de sermos ainda os mesmos – que são os poemas.
A engenharia de significação desta obra funciona, como se pode ver pelos dois exemplos que acabo de citar, na dependência do retrato do locutor. Mesmo quando faz a destrinça entre a “nossa saudade” (dos crioulos) e a dos outros (nostálgica) – o que estudaremos no terceiro ponto do presente capítulo – o texto restringe a nomeação da alteridade à filiação do sujeito e a dois versos de um poema. A tendência é, pois, a de excluir ou condicionar à realidade do locutor e à sua explicação toda a referência alheia – o que vai de acordo com os ditames dos escritos intimistas, com a “maneira interiorizada” de configurar “realidades objectivas”, como dizia Hamilton.
A concentração do retrato na figura do «autor» não é, no entanto, alienante em face de uma realidade crioula valorizada e localizada em Angola; ela permitirá também conjugar traços oriundos de tradições tidas e lidas como díspares – e, nessa medida, irá corporizar também a ideia de cruzamento.
Em primeiro lugar, porque o egocentrismo das figurações respeita, como disse atrás, a lei da economia de significação, necessária à oralidade mas também à escrita lírica; em segundo lugar, porque a figuração autocêntrica apresenta-se-nos como um traço definidor dos escritos autobiográficos e, mais genericamente, dos escritos intimistas europeus; em terceiro lugar porque a escolha do intimismo e da concentração em si facilita a sugestão de autenticidade, que o griot procura garantir através dos gestos. E é aqui que encontramos novamente uma reunião de tópicos de origem diversa.
Sobre a “autenticidade” está fundada a credibilidade do texto lírico – já o vimos nos dois capítulos iniciais. Mas o tópico da interioridade, associado por igual ao da autenticidade, anima também a expressão de uma realidade própria, crioula, que (por ser fruto de um cruzamento em aberto) não se fixa exclusivamente em qualquer modelo que lhe advenha de outros, ainda quando esses outros são os seus antecedentes de outra raça ou etnia. O intimismo modelar do texto permite assim religar uma tradição literária de origem europeia (a autobiográfica) e uma figuração própria aos “filhos da terra”, ancorada num retrato do sujeito-locutor e do seu meio original que, tal como vão caracterizados nos poemas, podiam ser vistos por outros como opostos à tradição literária europeia a que se religam genologicamente.
Inseparável, também, da ideia de intimidade identificadora, o sujeito-locutor concebe-se e assume-se mestiço, malfaçon des mulatresses, completando assim um retrato psicológico com um retrato físico. O retrato físico, enquanto imagem exterior, alonga-se depois no retrato social do sujeito-locutor, na definição de como os outros podem reconhecer a sua intimidade. Nessa medida, a composição do crioulo nos 100 poemas ultrapassa a proposta estética intimista, substituindo a negação da exterioridade, normalmente atribuída a esse tipo de escritos, pela construção de uma imagem exterior própria e de uma forma própria de dialogar com o exterior. Ou seja, a lírica de M. António acrescenta-se em sociabilidade ao retiro íntimo dos diários: ela destina-se explicitamente a torná-lo conhecido, a construi-lo socialmente.
Mas o que o texto possui de mais inovador, na conceituação ou estruturação de um sujeito crioulo e de uma obra centrada na figura do seu locutor, não é essa simultânea imagem bipolar (física e psíquica, exterior e interior), recordando-nos a possível conjugação, em aberto, dos diversos elementos ou das diversas categorias que habitualmente cindem uma “consciência de si”. O que o texto apresenta, a meu ver, de mais inovador, está relacionado com as constantes cisões a que acima aludi e que não são redutíveis às diferenças entre a infância e a idade adulta, mesmo por coincidirem com elas.
Como disse já, a formação genealógica do crioulo é, no texto dos 100 poemas, impensável sem referência às cisões face ao “ovo” de origem, funcionando estas como uma espécie de mola psicológica para o profundo processo aculturador corporizado pela mestiçagem. Para além das cisões acima enumeradas, o «eu» – no qual estão centralizadas as referências instituídas pelo texto como identificadoras – vai ele próprio cindir-se do seu “ovo” original e daquele que explicita haver sido nesse ambiente – como já viramos ao falar acerca da relação pai-filho e da relação mãe-filho no capítulo anterior.
Estudemos agora com mais atenção teórica esse advento da cisão no sujeito.
A cisão no sujeito lírico dos 100 poemas
O momento e simultaneamente o motivo da cisão no sujeito são-nos fornecidos logo no poema «Drama», embora ela viesse já fermentando na primeira estrofe de «Poesia de Amor». É por uma imposição do meio, pela instrumentalização da necessidade que o faz ir mendigando na rua “protecções” e reconhecer as regras que regem a sobrevivência na “sua” cidade – necessidade criada ou facilitada pelo “afastamento” do pai – que o poeta colocará entre si e o seu passado uma descontinuidade absoluta, visto que lá se fixaram os valores e os programas narrativos que definiriam cognitiva e afectivamente um percurso de vida, cuja valorização por sua vez o identificara num primeiro (e decisivo) momento.
O testemunho da existência de uma descontinuidade absoluta entre os dois tempos corre a par da expressão de lamento pela infância, e gera um sentimento de queda e perda do sujeito em relação a si próprio, parecendo conectar-se à “desqualificação da vida quotidiana” (possibilitada ou promovida pelas figuras femininas mais próximas e típica de escritos intimistas), bem como à correspondente mudança radical que a transferência de uma para outra fase acarreta. Ao apresentar-se marcado ao mesmo tempo pelo seu passado e pela cisão entre anterioridade e actualidade – apesar de ela ser imposta pelas regras de sobrevivência do mundo que o envolve – o locutor inevitavelmente irá relacionar a perda parcial de si próprio com a separação face ao “ovo” de origem.
Associar-se-á, cumulativamente, a essa espécie de berço o sema da permanência, ficando o da mudança colado a si. A permanência do lugar pode ser conotada com a figura feminina que objectivou o sentimento amoroso do adolescente, ou diretamente nomeada, como acontece em «Chuva sobre a Infância», de 1953: “Aí estais vós / Reais, presentes: / Eu é que sou outro”.
Só por duas vezes o sentimento de perda parece que se projecta sobre o lugar, como se o mundo houvesse mudado com o sujeito e não apenas ele. Mas, nos dois poemas em apreço, e apesar do sentimento de mudança e perda se projectar sobre motivos exteriores (a comemoração e a chuva – também ela antes comemorada) o locutor escreve somente sobre a sua tristeza, elidindo a referência ao estado posterior dos outros que eram alegres quando ele o terá sido. O lugar é, pois, aí, mero objecto para a projecção do sujeito – sendo a projecção do sujeito um processo literário recorrente que mais tarde se ampliará, nas obras posteriores, bem como um tópico dos escritos intimistas.
Fica, portanto, nesses poemas, apenas confirmada a ideia de que o sujeito mudou face ao “ovo” de origem, inserindo-se noutro ou descobrindo que esse que imaginara era outro. Tal mudança, determinada como está por uma adaptação às regras de sobrevivência criadas pela economia do tempo (colonial) na cidade-berço, exerce também a função de reforçar a desculturação do «eu».
A emergência da cisão no percurso do locutor – derivada, como foi, da percepção de regras sociais – impõe-nos por essa via a ideia de que, apesar de nomeado como o mesmo, o mundo da infância já não funciona para o sujeito, já não o envolve ou não o protege, justificando-se por isso o verso final de «Para Luanda», de 1958: “De mim, filho de quem esqueceste o choro”. Estilhaçado ou desfuncionalizado fica, pois, o condicionador inicial. Por consequência, a sua invisibilidade “orgânica” provoca a negação da identidade que a tal ambiente correspondia como sendo a do protagonista, dada a função da visibilidade na identificação, que fixei na terceira hipótese e que se conjuga aqui a um processo de desfuncionalização já citado – para o caso de Chiquinho – por Alberto Carvalho (veremos adiante porque permanece nomeado o meio inicial como o mesmo quando somos obrigados a reconhecer que se transformou a envolvência do sujeito).
Se a imitação de uma auto-consciência se formou (como vimos no capítulo anterior, confirmando a nossa segunda hipótese) a partir do reconhecimento da inserção num mundo inicial tal como ele fora primeiramente apercebido – mundo esse que então fatalmente lhe servirá de suporte – e se o meio envolvente deixou de o ser ou se revelou à percepção do sujeito estruturado por regras ou características diferentes das que o identificavam, então a identidade daquele que se apresentava como parte do mundo inicial fica em suspenso, ilhada em face das novas circunstâncias ou de uma nova determinação das anteriores circunstâncias. A sugestão de ilhamento é fornecida ao longo da obra de formas diversas: pela transformação do quarto num castelo, onde ficam fechados os poemas (numa ressonância literária europeia muito conhecida); pela afirmação da diferença no sujeito e da permanência nos outros; pela insensibilidade dos outros (referida, por exemplo, em «Quinze de Agosto» e «Chuva»). Tal sugestão acompanha o crescimento e a enculturação do locutor, o que não deixará de ser significativo neste contexto.
Consequentemente, se a imitação da identidade do sujeito continua a conceber-se e formular-se na dependência (embora parcial) da relação (que o referencia) com o ambiente visível, forçoso é que ele também mude, mesmo permanecendo ilhado – e, portanto, que a cisão de que falo não seja apenas um processo desculturador face ao mundo inicial, mas o seja por igual em face da própria identidade com que o locutor se concebeu.
A cisão entre o «eu» inicial e o que dele se recorda gera, mais tarde, uma situação de conflito de identidades, em que o sujeito se reconhece outro com o qual não se assemelha – pondo em causa a sua “mesmidade”. Enquanto, cognitivamente, ele percebe a mudança – e por isso distribui os seus interesses entre os seres do passado (que o identificam) e os do presente (que lhe permitem sobreviver) – no campo afectivo irá manter os sentimentos inter-pessoais, de que fala Piaget, no seio do mundo infantil ou adolescente, como uma criança que ao crescer não quisesse deixar de dormir no berço. Daí uma primeira explicação para a recorrência das recordações de figuras femininas por quem inicialmente se apaixonara – e que diz ter reencontrado (atente-se em títulos e poemas como «Do Amor Reencontrado») – ou da mãe, do pai, da avó, da rua, do bairro – enfim, dos seus identificadores iniciais.
O advento da cisão no sujeito, provocando a disjunção entre os sentimentos inter-pessoais (presos ao passado) e os interesses individuais (localizados no presente), terá como correspondência formal o cruzamento ou intersecção das referências aos dois tempos, quando não explicitamente um discurso projetivo das imagens do passado sobre as do presente. Mesmo o advento da cisão no locutor é-nos dado já por uma projecção de uma imagem anterior sobre a sua imagem presente.
Ao se descrever como personalidade que se nega na identificação por se ter cindido em si e face ao mundo que o originara, o sujeito-locutor constitui-se a si próprio como uma ampliação de um processo que foi o que primeiro nos contou – o que se passara com a avó negra (que, se pudesse, reviveria as velhas tradições); essa mesma avó na qual é procurada por ele a função – no ambiente familiar imediato – de principal enculturador. Ou seja, a crise de identidade porque passa o «eu» do texto evoca aquela em quem primeiro ele buscou a sabedoria, quer dizer, aquela a quem se deve o despoletar do processo de miscigenação cultural e biológica da genealogia.
No entanto, uma diferença fundamental os separa: a sabedoria que a geração intermédia (a das “vossas filhas de hoje”) perdeu, dificultando ou bloqueando assim o percurso narrativo inicialmente idealizado. Consequente à influência dessa característica materna sobre o percurso narrativo do filho, há uma outra diferença fundamental: a crioulização da avó pode ser vista como cisão com o meio por efeito de um processo pessoal de desenvolvimento e de conhecimento auto-regulado ou auto-regulador (daí que, no seu caso, eu falasse em transculturação); a confirmação do protagonista da antologia como crioulo deriva de uma cisão no interior de si próprio e de uma situação de aprendizagem que mistura o despersonalizante sistema de controlo imperativo imposto pela mãe com a sobrevivência de um processo auto-regulado – que nos caberá neste capítulo estudar melhor, mas, como já vimos, se efectiva pela construção poética onde se consuma a evocação saudosa dos “sonhos”, ou seja, dos programas narrativos iniciais.
Instituída – tal como o sujeito a sofreu – por uma ruptura que instaura a descontinuidade cultural e psicológica no tempo, a figura da cisão garante paradoxalmente uma continuidade que salvaguarda a permanência da identificação inicial (com os que se cindiram do “ovo” originário) e a continuação de uma linhagem crioula (a dos que se transculturaram, por sabedoria própria ou na ausência dela). Daí que a primeira “recordação” (o primeiro poema) se dirija emblematicamente a uma personalidade consanguínea e cindida (do seu “ovo” de origem) que iniciara todo o processo.
Entre o processo a que se resume a biografia augural da avó e o que caracteriza o roteiro do sujeito na sua fase de formação há também, portanto, várias coisas em comum – dado o papel modelar e fundador reservado para aquela personagem. Recapitulando-as, a primeira é a cisão face ao mundo original; a segunda é o percurso de miscigenação cultural de que resultará a personalidade que define cada um; a terceira, ainda não nomeada, é a presença da saudade, motivo recorrente nos textos da antologia e que funciona também como identificador, visto que se concebe tal sentimento herdado simultaneamente de brancos marinheiros e de escravos negros.
A presença da saudade como identificador na obra coloca-nos no entanto um problema – se a confrontarmos com a terceira hipótese de estudo – que é o problema da sua visibilidade, ou ocularidade. Se o identificador é seleccionado por ser visível, a saudade – como sentimento, ainda por cima vago, talvez indefinível – aproxima-se da esfera das coisas invisíveis – e, portanto, indizíveis.
Convém, por isso, precisarmos esse terceiro elemento comum, a saudade, e estudarmos a pertinência da sua presença na obra para verificarmos depois a relação – se alguma houver – que ela mantém com a visibilidade ou ocularidade dos identificadores.
A saudade
A recorrência do vocábulo saudade nesta obra, e a importância que lhe atribuí, podem parecer factos estranhos ou forçados.
Quanto à estranheza, ela é compensada, em certos críticos, por explicações que apontam para uma espécie de nostalgia do paraíso perdido, inevitavelmente reduzido à “infância”, como faz Alfredo Margarido na marginália dos 100 poemas. A substituição de “saudade” por “nostalgia do paraíso perdido” sustenta mais facilmente uma leitura partidária, na medida em que o paraíso perdido da infância é o mundo anterior à última fase (a mais agressiva) do capitalismo colonial português, e por isso, como sucede nas narrativas de Luandino Vieira, ele serve ainda para denunciar o regime.
Parece-me que tais explicações estão baseadas apenas numa postura “empenhada” que rejeita liminarmente, ou não pode compreender, o fenómeno da saudade em toda a sua amplidão, como vem a ser abordado nesta lírica. No fundo, o desvio de leitura não é mais que uma solução de recurso para não ter que se assumir aquilo que o condicionamento ideológico impermeabilizava à leitura. Ainda que possamos obviamente ser compreensivos com uma época determinada pelas lutas nacionalistas, em que o escamotear a presença pura da saudade na literatura angolana era ainda uma forma de esconder ao leitor os traços oriundos do país colonial e que se irmanavam na personalidade angolana, entendo que, mesmo assim, estávamos perante uma atitude primária, que nem sequer teve o cuidado de relacionar o sentimento da saudade e o da nostalgia com o banzo, que é ao mesmo tempo saudade, nostalgia e pensamento em várias línguas bantos – e é, precisamente, a forma de saudade dos escravos negros.
Baseando-me numa leitura atenta, pormenorizada e sistemática dos versos da antologia, fui pelo contrário levado a pensar que nada é mais natural neste livro do que a saudade.
Em primeiro lugar, porque se trata de um sentimento que responde à consciência da partida, à existência de um apartamento ou de uma cisão face a seres amados – e aqui deparamo-nos com uma dupla cisão: a do sujeito face ao meio e a do sujeito perante si próprio.
Se a cisão do sujeito com o meio se inscreve na linha da enunciação lírica dominada pela relação do «eu» com a referência “externa”, na primeira forma de “consciência de si” exposta por Hegel para os textos líricos, a cisão do sujeito consigo mesmo inscreve-se na linha do segundo tipo “hegeliano” de enunciação lírica, espécie textual em que a “consciência de si” resulta de um olhar retroflectido sobre aquele ser que nos é apresentado como focalizando os objectos e os conjugando uns com os outros.
Também a teoria da saudade, como foi concretizada pelo filósofo galego Ramón Piñeiro, inclui dois tipos similares a esta classificação: uma saudade que se gera pelo estabelecimento de interesses e relações com objectos e seres do mundo “exterior” (a saudade “añorativa”, “nostálgica”, ou “arelante”) e outra, a “saudade pura”, “autêntica”, “ontológica”, que resulta de o homem, ser singular, se sentir “a si mesmo”, exilado e isolado, mas pensando a sua mais profunda razão de viver. Ora, nestes versos, dado o tipo de lírica e de subjetividade em que se inscrevem, encontramo-nos perante as mais variadas configurações desse sentir-se a si mesmo enquanto ser singular, sentir no qual a saudade mais funda nasce.
Portanto, logo pelas opções genológicas do autor, inserido no mundo de língua portuguesa (esse que ele chamará “lusíada”), onde o sentimento saudoso ganha uma tonalidade mais intensa, era co-natural ao desenho semântico da obra a emergência da saudade com o significado, a importância e as características que apresenta. Ela demonstra que a ausência de considerações sobre tal sentimento na crítica literária angolana, e na crítica lusófona voltada para Angola, ainda que se possa justificar por um anti-colonialismo situado, não deixa de constituir uma falha que impermeabiliza uma parte importante da poesia sobre que se debruça, condenando-a a uma exterioridade que não a configurou.
O levantamento que passo a fazer – de como se tecem os fios semânticos onde a palavra saudade se definirá – permitir-nos-á confirmar isso mesmo, no que à obra de M. António diz respeito.
A definição portuguesa de «saudade»
O esclarecimento de um conceito começa muitas vezes por uma reflexão feita sobre a etimologia do termo-chave que temos para o referir – ou sobre a metáfora constituída pelo trajecto semântico desse termo entre a sua origem e a actualidade.
No caso de saudade, como diz Pinharanda Gomes, as “tentativas de análise etimológica da palavra não têm satisfeito à amplitude eidética e à elaboração formal que dela se desprendem”. Pelo que nos vemos na contingência de analisar diretamente as várias conceitualizações do termo, começando por isolá-lo de outros cujo campo semântico possui afinidades com ele.
A primeira diferença a fazer – porque resulta de uma confusão generalizada – é entre saudade e nostalgia – e veremos adiante como ela se torna produtiva na obra de M. António.
Trata-se de concepções muitas vezes recordadas sem que se observe que o sentimento saudoso é provocado por uma especial relação com o tempo, que levou António Quadros a trazer à cena o conceito de ucronia, aparentado ao de utopia, mais ligado este à optimização do espaço e, por tanto, à nostalgia. Como disse Pinharanda Gomes no seu Dicionário de Filosofia Portuguesa, englobando com a nostalgia mais duas palavras, os “substantivos nostalgia, heimweh e lonxedade exprimem a interioridade psicológica de lugar, de espaço, mas ainda de distanciamento, com referência puramente exterior”.
Já antes dele Duarte Nunes de Leão, na Origem da Língua Portuguesa, distinguira saudade de outra palavra, esta latina, desiderium ou desejo. Para Duarte Nunes de Leão, a diferença entre desiderium e saudade reside na abrangência desta, que não se referiria só a pessoas mas também a terras e momentos bons.
Outros termos afins comparados por Pinharanda Gomes à saudade foram os de anyoransa ou añoranza (que indicariam a “consciência sensível de distância no tempo”), morriña (que se acharia “mais perto do existencial náusea, ou mesmo do estado de agonia, ou de incerteza e de instabilidade”, e sehnsucht (“conceito mais intenso”, por oposto ao de saudade, que seria “mais extenso”).
O processo de isolamento semântico da saudade levado a cabo por Pinharanda Gomes condu-lo, no entanto, a concebê-la “como a síntese das noções de cisão e de unição no tempo, no espaço, no sentimento e no pensamento, surgindo como a unidade que integra todos aqueles mencionados conceitos e os transforma em si mesma, como se a saudade fosse o ser que devora a existência. A imagem ocorre, aliás, em escrito de Pascoaes”.
Eis uma semântica útil à proposta de uma espécie de “super-conceito” que nos permita operar simultaneamente com vários outros; ela precisa no entanto de ser averiguada, apesar da sugestividade que suscita se desde já a ligarmos à leitura dos 100 poemas.
Se nos debruçássemos sobre a génese de tal sentimento a partir do “super-conceito” de Pinharanda Gomes, concluiríamos que se constitui uma espécie de somatório de todos os outros sentimentos afins, o que pressupõe uma consciência e vivência de todos eles e posterior processo de síntese. Parece uma operação demasiado abstracta para um “sentido do coração que vem da sensualidade e não da razão”, se usarmos os termos de D. Duarte, mesmo na interpretação “racionalizante” que o autor do Dicionário faz deles e que pode estar profundamente correcta. Por algum motivo o saudosismo foi um “movimento religioso, anti-intelectual, antimecanicista e saudoso”]. Como recordam Afonso Botelho e António Braz Teixeira, “saudade é apenas um sentimento, quando muito, a consciência reflectida desse sentimento (...)”. Esta posição, aliás, fora já assumida por Fidelino de Figueiredo no texto «Saudosismo e Integralismo», integrado no vol. II da recolha Lições de Literatura; aí, o grande crítico português defende que a saudade não passa de um estado de alma (interessante seria também auscultar as razões que nos levam a falar em “estado de alma” ou em “sentimento”).
Cremos que segue no mesmo sentido o texto de D. Duarte, que aborda a saudade comparando-a à tristeza, ao nojo, ao desprazer e ao avorrecimento. Ele marca bem que “a suidade não descende de cada uma destas partes (.../...) porquanto suidade, propriamente é sentido que o coração filha por se achar partido da presença de alguma pessoa, ou pessoas que muito por afeição ama, ou o espera cedo de se ir”.
Mas a definição de saudade em D. Duarte é complexa. Nunca deixando de ser um “sentido” do coração, ela não implica necessariamente o desejo de reviver o tempo: se implicar é dolorosa (como parece ser nos 100 poemas e como é no banzo); se não implicar leva o homem saudoso a recordar-se com alegria de outro tempo sem deixar de sentir alegria naquele em que recorda. Tal facto permite-nos compreender como se podem conjurar, nos “livros de itinerância” que no próximo capítulo analisaremos, a saudade e o “pasmo” com que se figura o tipo de abordagem que o locutor faz das novas realidades. Ele, de facto, não lamenta conhecê-las, ou estar ali – excepto pelo isolamento que por vezes sente e cujo sentir é uma das condições para a emergência da saudade, conforme recorda Ramón Piñeiro. Mas, não lamentando conhecê-las, igualmente recorda a sua primeira identidade.
Esta passagem do texto de D. Duarte foi diluída pela maioria dos que teorizaram sobre o assunto – apesar de ser fundamental para esclarecer o conceito que venho farejando. Num ensaio, muito pertinente a este título, Afonso Botelho é o único dos autores recolhidos na Filosofia da Saudade que anota o facto, explicando-nos que a confusão entre a causa e a manifestação dela terá conduzido à redução da ideia de saudade a uma das suas concretizações – a dolorosa.
Se, atentos à análise de Afonso Botelho, clarificarmos agora o campo semântico da palavra em causa, concluiremos que ele indica o sentimento que temos de alguém ou de algo, que amamos, na sua ausência real ou pressentida, ou o estado de alma em que ficamos quando isso acontece. Mas tal sentimento só é doloroso se for acompanhado do desejo de rever a pessoa ou de reviver o lugar recordados, desejo que nos confronta com o presente.
Olhando para as distinções feitas depois de D. Duarte entre a saudade e outros sentimentos ou termos afins, observamos que nenhuma delas leva em conta que os outros sentimentos referidos pressupõem uma dor provocada pelo desejo de reviver que se confronta com a consciência da impossibilidade de o fazer. A meu ver é, porém, daí que deriva a angústia que geram tais estados ou “sentidos”, a qual pode não existir no estado saudoso, distinto dos outros por isso mesmo, por poder subsistir sem dor, ou sem desejo, ainda que nele seja sempre amorosa a recordação, pois a saudade só surge em relação a seres, espaços e coisas amados.
A saudade é, pois, uma espécie de manifestação do amor na ausência do que é amado – daí que o sentir-se só, ilhado, seja fundamental, uma vez que nos leva a sentir com maior amplitude a ausência. O sentido da distância e a propensão unitiva do amor explicam porque transita e recorre constantemente entre tudo e tudo quem está saudoso de algo. Reportando-me de novo à entrada de Pinharanda Gomes no seu Dicionário, penso que isso explica também aquela parte da sua definição que refere o trânsito e recurso entre a anterioridade e a actualidade, o eu e o tu, a pluralidade e a unidade. Tal ideia sintetiza-se numa frase do próprio pensador, que transcrevo: “a saudade conhece, transitando ora do subjetivo para o objectivo, ora do objectivo para o subjetivo: interioriza e exterioriza, talvez mais ao ritmo cordial do que ao mando capital, mas constitui-se plataforma de encontro da ausência e da presença”. Nessa linha compreendo igualmente que a saudade seja ao mesmo tempo “uma unidade mas (...) também uma ipseidade”.
A saudade em Mário António pode ser interpretada assim, como causa do trânsito e recurso que no capítulo seguinte iremos estudar e como procura da unidade e construção da ipseidade do sujeito lírico no qual, por metonímia, se simboliza a comunidade em que nasceu. É o que iremos começar a ver aplicando à leitura dos 100 poemas o método prospectivo de Joaquim de Carvalho.
Estudo do método
Numa conferência intitulada “Problemática da Saudade”, Joaquim de Carvalho dá-nos ao mesmo tempo um método para abordar a problemática e uma indicação que permite situar o papel da saudade na estruturação da consciência.
Dado que a preocupação final do texto é a de pensar o significado da “consciência saudosa, como manifestação do sentido de estar no Mundo”, interessa-nos particularmente o modus operandi do autor ao clarificar uma ideia cuja definição me parece muito próxima da que na antologia se constrói.
“A presença espiritual da ausência” desentranha – como a construção do «eu» nos poemas – alguns problemas entre os quais “o da realidade vital do Tempo, o da realidade da mudança e da alteração e o da existência da multiplicidade irredutível dos seres e das consciências”. Ora, tratando-se de construir na antologia uma personagem central que se caracteriza por uma noção de crioulidade enquanto resultante de cisões psicológicas determinadas no tempo em função de alterações diversas, que transportam para o interior da própria personalidade “a multiplicidade irredutível dos seres e das consciências” – e a consciência dela – torna-se inevitável compararmos o que diz o filósofo sobre tal assunto ao modo como a poesia lírica põe aqui em jogo as mesmas variantes e os mesmos tópicos. Corroborando o interesse estabelecido por estas proximidades há em comum, entre os dois textos, uma organização dos seus componentes pelo critério da identidade que eles permitem configurar.
Procuro, por isso, ver com clareza os passos do método, para experimentar a sua aplicabilidade à crítica dos 100 poemas.
O método apontado por Joaquim de Carvalho aconselha-nos a inquirirmos os “problemas” seguintes: o de “índole histórico-sociológica” (“quando e porque se verificou o aparecimento do vocábulo”); o do “regionalismo da palavra” (no sentido de sabermos se ela expressa um “estado psíquico ou uma ideia ou atitude mental peculiares a luso-galaicos”); o que “consiste em isolar a saudade do que lhe é afim, em ordem ao estabelecimento de uma descrição precisa, e, podendo ser, de uma definição exacta” (problema que se desdobra no metodológico e no histórico-filosófico.
“Do conjunto destas considerações resulta, finalmente, o problema central e totalizante da significação metafísica da saudade, ou talvez mais propriamente, a importância da saudade como dado para uma interpretação metafísica da existência” [64].
Aplicações
A condição da saudade
Para o primeiro problema afirma-se a importância, a par da celtização, dos “factores históricos que motivaram que Entre Douro e Minho, mais do que em qualquer outra região do território português, se tivesse operado a mutação do sentimento terrantês em sentimento nacional”.
Isso, porém, pouco nos ajuda – ainda que pudéssemos comparar a “mutação do sentimento terrantês em sentimento nacional”, operada Entre Douro e Minho, à transformação da consciência intermédia e “insular” das comunidades crioulas do litoral em sentimento de angolanidade (cf. Venâncio). Mas a transposição de método que procuramos fazer é para o estudo de uma obra poética e não para o estudo de uma sociedade (ainda que tal sociedade seja referida por essa obra e investigada pelo seu autor civil). A transposição pretendida obriga-nos, pois, a interrogar o contexto, o momento e a razão em que e porque surge o vocábulo na obra.
A primeira emergência do termo faz-se logo no primeiro poema do autor, e com significativa razão. O primeiro poema escrito – dos que foram publicados posteriormente em livro – é aquele que tem, como vimos por diversas vezes, por motivo central a “avó negra”, que representa a sabedoria a buscar ao longo do percurso narrativo (ao longo da biografia) do locutor. Os versos repetem em dois momentos a palavra “saudade”.
Na primeira das ocorrências (“E da tua mocidade / Só te ficou a saudade / E um colar de missangas”), o sentimento é referido à mocidade da avó (tal como o será mais tarde em relação à infância e adolescência do sujeito-locutor), mas não diretamente às tradições a que na sua adolescência ela esteve ligada. Só as alusões anteriores à biografia da personagem (“Rompeste com a velha tradição”, “Não xinguilas no óbito”, “Já não sabes xinguilar”) nos podem fazer desconfiar de que a saudade sentida será também relativa a todo o mundo tradicional de que ela fazia parte e não apenas à infância pessoal da “avó negra”.
É a segunda ocorrência da palavra, já no plural, que liga diretamente a tradição e o sentimento em causa: “Avòzinha, às vezes, / Ouço vozes / Que te segredam saudades / Da tua velha sanzala / Da cubata onde nasceste / Das algazarras dos óbitos / Das tentadoras mentiras do quimbanda / Dos sonhos do alembamento / Que supunhas merecer”.
Como que lembrando aquela primeira ocorrência, mais pessoal, o texto cuidadosamente começa por relacionar “as saudades” com a biografia da personagem (“tua velha sanzala”, “cubata onde nasceste”), só depois alargando o alcance da referência aos costumes e ritos aí praticados, para finalizar religando as duas coisas (os costumes, ilustrados pelos sonhos de alembamento, e o merecimento que a protagonista esperava ver reconhecido, representando a componente pessoal).
O alargamento da visualização saudosa, da infância da avó para o mundo em que essa infância decorreu, confirma-se explicitamente na estrofe seguinte, com a qual a composição finaliza: “E penso que / Se pudesses / Talvez revivesses / As velhas tradições!”. Trata-se de um alargamento similar ao que se verifica nas evocações que o locutor faz da sua infância – e, portanto, de um processo que, sendo gerado pela saudade, lhe dá a função de unir o que está separado (o indivíduo e o “berço”, a avó (que morreu) e o neto (que busca a sua sabedoria), a pessoa da avó e as velhas tradições).
Por isso não nos parece viável uma leitura negritudinista do poema, uma compreensão que lhe faria uma paráfrase do tipo “a avó, distanciada da sua sanzala natal, tem saudades, e o sujeito poético esforça-se por ouvir as vozes que segredam os velhos valores”. Porque a avó tem saudades, sim, mas da sua adolescência – e não propriamente das tradições em si, que são nomeadas como elementos do seu tempo, seja qual for a radicação que tenham.
De igual forma, quando o poema sublinha a distância entre a adolescência e a actualidade, fá-lo para configurar a causa da saudade: um afastamento de si para si, independentemente de se sentir alegria ou tristeza pelo rumo que se tomou.
Nessa última estrofe da composição se deixa por isso também uma marca de pessimismo: a saudade que a avó sente, aquele desejo que subtilmente se lhe aponta de reviver o que tinha deixado por uma decisão inicial, nada disso lhe permitirá ressuscitar nas tradições, transpor a irreversibilidade do tempo tal como ele está concebido nos 100 poemas. A estrofe diz isso explicitamente quando condiciona o significado de todo o período que constitui ao do segundo verso (“se pudesses”).
Há, portanto, um abismo que não permitirá transpor o que é próprio de um tempo para o outro, justificando assim a adjectivação de inútil feita sobre a saudade – que no entanto vem reunir, no poema, o presente e o irrecuperável do passado. Apesar dessa reunião pela saudade, obtém-se a noção de que algo se perdeu para sempre, como em 1959 o poeta expressará em «Donas do outro Tempo», com uma tocante melancolia, mas referindo-se já a um segundo momento do processo – aquele que corresponde ao da geração à qual a mãe (e eventualmente a mulher), segundo a nossa leitura, pertence.
A noção de perda irreversível no tempo é um tópico mais que liga a caracterização da avó e a do locutor.
Com efeito, a cisão e a transculturação a que nos temos vindo a referir são ambas caracterizadas na sua decorrência textual pelo traço da irreversibilidade, responsável pelo sentimento de perda e queda: não só a avó negra reviveria as velhas tradições se pudesse; a infância ou adolescência do neto constituem também um passado “inutilmente belo / inutilmente cheio de saudade”; as suas lágrimas são inúteis face à recordação das “auroras” e à “frescura da tua mocidade”. O passar do tempo caracteriza-se por ser acompanhado por um sentimento de perda, colando-se à relação entre anterioridade e posterioridade o peso tumular do irreversível. De facto, esse é um dos tópicos recorrentes na lírica da antologia, como se pode facilmente verificar através da leitura de outros poemas ainda, para além dos que citei nas notas.
Em «Avó Negra», este abismo separa dois tempos socialmente definidos e dois tempos individualmente definidos – num movimento contrabalançado pela saudade como sentimento unitivo (ou reunificador). Os dois tempos socialmente definidos são o das tradições e o da transculturação; os dois tempos individualmente definidos são o do rompimento com as tradições e o da saudade das tradições.
Considerando o primeiro dos tempos individualmente definidos, ao romper com as tradições a avó negra separa-se da sua adolescência. Estamos mais habituados a ouvir falar em infância nestes casos. Mas o capítulo biográfico a que na maioria dos exemplos se reportam os poemas de M. António é o da adolescência. A avó negra não teria sonhos de alembamento na infância e também não chinguilaria nesse período da sua existência; da mesma forma, nos poemas em que o sujeito fala de si próprio, reporta-se a namoros, à escola, às farras, ou seja, a um tempo que corresponde à sua iniciação no mundo dos mais velhos (quando fala no presente refere o casamento e a filha). Ainda que M. António fale em infância quando por vezes narra casos da adolescência, nós entenderemos por isso que ele se refere à adolescência.
É o que fazia parte da adolescência de que se separou que a avó reviveria se pudesse. Todos os poemas assinados por M. António e marcados ou estruturados pela saudade parecem gerar-se no mesmo sentimento ou na mesma revivescência das emoções e do mundo do qual o poeta adolescente se separou – ou foi separado, sejam quais forem os motivos que os levaram a tal.
A principal condição que temos, pois, para a emergência da saudade no texto, é a da referência a uma cisão entre o sujeito e o mundo da sua adolescência, cisão que separa dois tempos irremediavelmente e por isso provoca o sentimento de perda já acima levantado.
Visto ser a cisão a principal condição para a emergência da saudade no sujeito poético, fica explicado porque cisão e saudade andam a par, caracterizando a avó e o neto simultaneamente.
A apropriação da saudade
Continuando a verificar a aplicabilidade do método de Joaquim de Carvalho ao nosso «corpus», é necessário decidir agora se a saudade expressa um “estado psíquico ou uma ideia ou atitude mental peculiares (...)”– não a luso-galaicos, mas aos poemas da antologia e, neles, ao locutor e às personagens com que o texto o identifica.
Poucos são os versos onde explicitamente se diferencie a referência à saudade sentida pelo locutor da referência aos “estados psíquicos” ou à “atitude mental” peculiar de outros povos ou segmentos sociais que não aquele onde se integra.
Na primeira ocorrência em que a saudade é transposta para outro grupo étnico ela não é dada como diferente (“cantai nossa saudade bela e nua”) – a um nível explícito. Antes de passar à análise das implicações provocadas por tal ocorrência retenhamos, porém, que, nela, a saudade aparece associada à beleza (como em «Rua da Maianga») e à nudez, que serve de conotador de autenticidade em «Fuga para a Infância». A saudade surge assim reforçada no seu papel identificador, pela dupla via da associação com a beleza, através da composição da qual o poeta se sente homem, e da associação com a autenticidade, que é o objecto formal explícito do desejo do poeta firmado na justificação inicial do livro.
O grupo que sente a “nossa saudade” é o dos cabo-verdianos, uma das origens possíveis dos “emigrados das ilhas”. Há várias referências à sua presença no ambiente próximo da infância do locutor e, para além disso, eles são aproximados também racialmente: “Cara de lua ao céu, cara de lua” – onde a lua indica uma tonalidade oposta à da palidez que a caracteriza na tradição lírica europeia, mas também à noite na qual se destaca.
O possessivo “nossa” designa, portanto, um grupo étnico sobre o qual o locutor pode projectar a identidade que o texto lhe constrói, alicerçando-se no reconhecimento das analogias e da afectividade que os aproxima. Ao fazê-lo, ele conduz-nos também a pensar que a crioulidade com que se identifica não está resumida ao torrão natal – ainda que possa ter nele uma definição particular.
A concretização do reconhecimento do carácter abrangente do conceito de crioulo através da designação da saudade como “nossa”, acumulada à sua posterior especificação como “bela e nua”, logicamente implica a existência de uma outra saudade que não é “nossa”, nem “bela e nua”. Outra saudade que também não é nomeada na composição. Portanto, o poema – não o fazendo explicitamente – implicitamente faz a distinção entre a saudade comum (ao autor e aos cabo-verdianos) e outra.
A segunda ocorrência distintiva, de entre as menções à saudade, começa por falar em “Calar / Esta saudade velha”. Tal facto podia fazer-nos supor que o locutor se referiria agora ao outro sentimento saudoso, dado que por “velha” podíamos entender desfuncionalizada e, portanto, vista como menos autêntica – daí que fosse pertinente calá-la. Mas o especificador “Esta” remete-nos obrigatoriamente para a primeira pessoa da enunciação e, de facto, há referências à saudade centradas no «eu» dos poemas em momentos que definem diversas situações desse «eu», pelo que “Esta saudade velha” é velha porque há muito sentida mas não porque deixe de fazer sentido para a construção do «eu» – como não o faz para o «tu», a mulher amada, confirmando a disjunção “eu / tu”, alongada na distinção “masculino / feminino”, ambas identificadoras do sujeito por um processo diacrítico.
Os versos escritos a seguir (“E a nostalgia herdada / De brancos marinheiros / E de escravos negros”) é que nomeia outro “estado de alma” que se pode comparar à saudade, logo pela sequência em que estão inseridos os versos, logo pelo facto de a “nostalgia” surgir associada a pessoas afastadas do seu ambiente de origem (os marinheiros e os escravos, ambos em diáspora num navio negreiro).
Se nos lembrarmos da diferença entre a crioulização no lugar e longe dele – que distinguiria os escravos negros e os reinóis dos filhos da terra – percebemos como aqui se torna sintomática a referência à mudança no espaço que gera a “dor da terra” designada por nostalgia, e que parece fortemente associada ao banzo nestes versos. Mas essa mudança provoca, de qualquer modo, um mesmo sentimento de cisão que vai tornar-se inseparável da concepção de saudade nos 100 poemas.
Trata-se então de um sentimento ou “estado de alma” que cumpre a mesma regra básica condicionadora da emergência da saudade nas personagens dos textos. Tal como os cabo-verdianos estão apartados da sua terra, os brancos marinheiros e os escravos “De noite sonhando Lua / Nos porões antigos dos negreiros”, assim também a avó negra e o sujeito-locutor estão apartados do seu ambiente de infância pelo processo de crioulização que realizaram.
Levando em conta este facto, podemos avançar com a hipótese de a palavra “nostalgia” substituir aí a palavra “saudade”, por motivos de estilo (para evitar uma repetição deselegante e acentuar, ao nível do discurso, uma diferença mais subtil, de problemática determinação).
A conjunção da “saudade velha” do poeta com a “nostalgia” de marinheiros e escravos, feita por “e”, implica igualmente o reconhecimento dessa diferença entre duas realidades próximas – pois de outro modo a frase podia seguir sem referir a nostalgia: “Esta saudade velha / Herdada / De brancos marinheiros (...)”. Cremos, pois, ter identificado a outra saudade, que não é “nossa”, nem “bela e nua” ao mesmo tempo.
A outra saudade é atribuída simultaneamente aos dois grupos constituintes da miscigenação racial em causa: os brancos e os negros. A conotação racial da saudade no texto é reforçada pelo facto de haver uma que é comum a cabo-verdianos (crioulos) e ao locutor (também crioulo). Há, pois, uma “saudade crioula”, bela e nua, e uma saudade nostálgica sentida pelas raças originantes da crioulidade, pelos seus afluentes, quando longe das terras de origem. Segundo o filósofo galego Ramón Piñeiro, trata-se de uma saudade “da Terra lonxana, do eido nativo” – precisamente aquilo que sentem marinheiros e escravos em viagem marítima para muito longe.
Convém aprofundarmos agora as diferenças entre as duas “saudades”. Trata-se de um aprofundamento que se resume a dois aspetos:
Em primeiro lugar, conjuntando as passagens analisadas, há uma oposição entre a “nudez” de uma e o sonho da lua no porão do negreiro.
A palavra “sonho” não tem aqui a conotação que tinha quando se associava ao pai e aos poemas. Não se trata de um programa narrativo ingénuo face às condições em que surge, mas de imaginar algo já conhecido. Há, pois, nesta segunda acepção de «sonho», algo próximo daquilo que alguns psicanalistas, na esteira de Jung, chamariam a função compensadora. Há o banzo dos escravos retidos em noites de madeira e aço.
A “nudez” e a beleza da saudade crioula opõem-se ao “sonho dantesco”, que na expressão de Castro Alves e Costa Alegre era a escravatura, e na de M. António é a compensação do escravizado. A alma banzada, nesse sentido, não é “nua”, é povoada de imagens e anseios de reintegração no cosmos e na liberdade originais.
Vendo pela outra “raça”, a “nudez” crioula opõe-se à saudade dos marinheiros. O substantivo [nudez] sempre adjectivou a África, ou os trópicos, por oposição ao fechamento ou encobrimento que caracterizava climas mais frios e os hábitos herdados pelos habitantes desses climas. A saudade portuguesa é frequentemente associada ao sebastianismo, ao encoberto, ao vago, à lua, à noite onde a “saudade do sol” desponta, ora minguante, ora crescente. O vestuário português é também – como o seu vocabulário saudoso – mais encobridor do que o africano. Por isso é possível que a saudade nua dos crioulos o seja também por oposição “claridosa” ao sentimento nebuloso normalmente atribuído ao povo colonizador.
A primeira destrinça entre as duas saudades remete-nos pois para o cultivo da beleza e para a semântica da autenticidade e da visualidade. Isso pode explicar porque, numa poesia onde o “estado de alma” é tão intenso, a visibilidade condiciona a textualização dos identificadores. Não se trata apenas, quando se repete a “regra da ocularidade”, como seríamos levados a pensar pelo contexto literário da época, de uma “sombra” do realismo dominante sobre um artifício (o da saudade) que surge por distanciamento face a ele. Trata-se também de reclamar os direitos do concreto e nú sobre os deveres do escondido e coberto, mesmo e sobretudo quando o sentimento de si é saudoso.
O segundo aspecto (a semântica da autenticidade) prende-se com a identificação pela saudade.
Como vimos atrás, a expressão “afastamento face ao ovo de origem” não seria suficientemente precisa para justificar a emergência da saudade, porque há distinções a fazer em relação ao tipo de afastamento em causa. Entre os transcontinentais há um afastamento físico (o que permite explicar o recurso ao termo “nostalgia”); quanto aos «filhos da terra», há uma cisão psicológica entre o sujeito e a cultura de origem - cisão que, proposta pelo texto como típica da crioulidade, lhe permite generalizar para o caso de Cabo Verde o mesmo sentimento (radicado, aí, não em escravos e senhores, mas nos filhos deles).
Neste segundo caso, a figura da cisão acentua-se por se dar ela também no interior do sujeito. Esse facto vai tornar o crioulo num ser singular, mais ainda do que qualquer outro – na medida em que ele é o que persiste porque se divide, ao passo que os outros são os que persistem porque se assemelham a si próprios e ao mundo onde se formaram. Portanto, a saudade “nossa”, “bela e nua”, emerge a partir de um afastamento de si para si, a partir de um mais intenso sentimento de si e da sua singularidade.
Se agora retomarmos os termos de Ramón Piñeiro, diríamos que a saudade crioula é, pela configuração do livro, mais a “saudade pura” do que qualquer outra; enquanto a dor dos marinheiros e o banzo dos escravos são “nostálgicos”, “melancólicos” ou “arelantes”. Aquela afirma-se pela relação da consciência do «eu» com a história descontínua do «eu»; esta retoma-se pela relação narrativizadora do «eu» com o mundo.
Saudade e consciência
As conclusões a que chegaríamos, se não levássemos em conta essas diferenças, seriam no entanto poucas para podermos descobrir se efectivamente havia uma saudade peculiar ao locutor da obra e ao que ela define como o seu grupo de pertença. Para completar a operação tive de conjugá-la com a que o método propõe a seguir e que é a que “consiste em isolar a saudade do que lhe é afim, em ordem ao estabelecimento de uma descrição precisa, e, podendo ser, de uma definição exacta”.
Uma vez que já demos esse passo podemos passar ao seguinte, que é o estudo da função da saudade na estruturação da consciência do escritor que pelos seus versos se configura.
O sujeito – que sente saudades da avó, que por sua vez se caracteriza por sentir saudades do que fora antes de se cindir do “berço” de origem – também ele sente saudades do que foi antes de se cindir de si próprio, do seu passado “inutilmente belo”, e, reflectindo-o, “Inutilmente cheio de saudade”, como vimos atrás.
O retorno à imagem da avó que se verifica ao longo da antologia é parte importante do retorno do locutor ao que apresenta como o seu mundo, onde ele é felizmente um entre outros. Essas recordações reiteram portanto uma identidade à qual o retrato actual do sujeito dá ou desejaria dar continuidade – o que vai de acordo com a explicação comum, no pensamento português, para a gestação de um sentimento saudoso.
Isso quer dizer que a função das recordações saudosas nestas obras é a de reidentificarem o sujeito, substituindo a ausência do mundo, que servia de suporte à sua auto-configuração, pela capacidade atribuída ao sentimento saudoso de tornar presentes (visíveis) as coisas, acontecimentos ou pessoas de que no tempo se ficou separado. Como significativamente o poeta firma na «Viagem à Terra Natal»: “Pobre, longa saudade! / Enganosa distância!”.
Mas, em se tratando do que Ramón Piñeiro chama uma “saudade pura”, não há aqui somente a recuperação de um mundo. Há a presentificação e recordação, mais que dos identificadores, da identidade anterior, do outro de que o locutor se cindiu.
Como as recordações não surgem sem uma cisão anterior e sem a saudade do estado inicial com que se reage ao sentimento de cisão, podemos postular a hipótese de ser função da saudade (e não das recordações vívidas que ela gera) a de devolver o sujeito a si próprio pela re-presentação do que ele fora e pela substituição da ausência do “colo” original. A saudade permitirá desse modo ao locutor estruturar a sua nova personalidade em função da anterior – e, dessa forma, neutralizar ou minorar os efeitos da cisão desculturante que lhe desmultiplicou o carácter crioulo.
O papel da saudade não afecta, ao reunir o que se tornara diverso, a crioulidade do locutor. Ele permite-lhe, pelo contrário, harmonizar a sua personalidade substituindo a cisão pelo cruzamento de referências e pela intersecção de planos temporais e espaciais, como largamente se verá naqueles que chamaremos os “livros de itinerância”.
A presentificação da adolescência intensifica, coincidentemente, um dos processos recomendados pelos escritores e intelectuais crioulos das Antilhas. Esse processo é o de retornar ao “olhar de infância” para reencontrar aí, não só uma verdade, mas também uma forma de questionar “mesmo as evidências”, possibilitando assim a emergência da “visão interior” e descondicionada face às aquisições trazidas tipicamente pela cultura escrita.
O tópico da adolescência na lírica dos 100 poemas (que irá rarear após a formação da personalidade, ou seja, nos livros seguintes) pode ser interpretado, pois, como articulando-se ao da afirmação e viabilização autêntica do crioulo, ao invés de se ver nele uma simples “fuga para a infância”, um refúgio psicanalítico, uma espécie de “paraíso perdido”, ou um modo de “acusação através de formas eufemísticas”, como queria Manuel Ferreira.
Cumulativamente à função ou papel exercido pela saudade, é na poesia que permanece a identidade anterior (como fixámos ao estudarmos a relação pai-filho), e aí ela permanece porque permanece tudo o que desaparecera, reconvertendo-se um instrumento escolar (a literatura ao serviço do ensino da língua) num instrumento pessoal redimensionado por um programa narrativo próprio.
A poesia está, portanto, sustentada sobre a re-cordação, ao mesmo tempo em que se tornou possível porque foi aprendida (enquanto escrita, facto que se compõe pelas referências aos “ruídos” de “dactilografia”). Ora a recordação é viabilizada e optimizada pela saudade que, então, reavivando o mundo e o sujeito original, estrutura a recriação da personalidade do «eu» na poesia, e estrutura a própria poesia, que de presentificações se tece. Daí que a saudade recorrentemente surja associada ao sema da beleza. Ela é a mãe e o (de)leite do poema.
A poesia escrita nos 100 poemas parece, pois, estruturar-se pela saudade, mais concretamente por aquilo a que o locutor chamaria a “saudade da infância”. Esta, vindo pela via pessoal radicada fora do ambiente escolar, vindo por via do projecto narrativo do locutor, ao determinar a estruturação poética, permite-lhe condicionar o que é próprio do programa oposto, e imposto pela mãe, ao que é por si desejado. A saudade é, portanto, ao mesmo tempo sinal da autenticidade pessoal e garante do controlo que o sujeito readquire sobre o seu processo formador e de identificação.
Não queria, no entanto, afirmá-lo sem antes deixar verificada a hipótese anterior, que a menor visibilidade do sentimento saudoso colocaria em causa.
Recordemos: tínhamos estabelecido a visibilidade como critério do sujeito-locutor para a escolha dos elementos identificadores. A avó negra, os pais, os amigos, a rua, as primeiras namoradas, o bairro, tudo era visível e, exceptuando o pai e a avó, os elementos eram reiteráveis a partir da sua visualização dada como presente nos reencontros de que se tecem alguns dos poemas da antologia – que são ao mesmo tempo reencontros do texto consigo próprio. Mesmo no caso do pai e da avó, como pudemos então ver, eles são referidos apenas quando há um “motivo” visual (uma fotografia, em ambas as situações).
Mas a saudade é, desde o início da sua teorização, vista como capaz de tornar presentes (por isso, visíveis) as coisas ausentes (que deixaram de ser vistas).
Isso leva muitas vezes os filósofos portugueses a conceberem a saudade como “operação sui generis da memória”, que teria “sempre origem numa recordação”, ficando, “na base da tonalidade afectiva da recordação saudosa”, “o facto de essa recordação se apresentar como síntese daquilo que houve de agradável e amado, na real experiência passada a que corresponde”. Na primeira teorização feita sobre a saudade, o D. Duarte fala por igual em recordação, mas principalmente estatui como condição de emergência de tal sentimento o partir, o sentir-se apartado de, a cisão de algo que estava unido. D. Francisco Manuel de Melo, na sua “teórica das saudades”, subtiliza num aspecto fundamental a análise de D. Duarte, alargando simultaneamente o seu âmbito para o “apetite da união de todas as coisas amáveis e semelhantes” (o que fica amplamente de acordo com a função da saudade acima definida por nós). A acuidade com que o ser saudoso ressente a partida leva-o a tal “apetite”. Daí salta o fidalgo português para a visualização do sentimento saudoso como sinal nos seres humanos de um vislumbre de transcendência: “legítimo argumento da imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir; sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se disséssemos: um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ouvido, e temporalmente, o que está de nós remoto e incerto”.
O sentimento saudoso pode, portanto, presentificar tudo o que não é visto, mesmo aquilo que nunca o foi. É nesse sentido que por vezes se diz que temos saudades do futuro, ou que as sentimos antes ainda de nos apartarmos dos outros, ou de certo lugar (só pela simples imaginação do que sentiremos longe). Quer isso dizer que a saudade não radica propriamente na memória mas no sentimento da ausência e da distância, na consciência sentida da “falta, que da divisão dessas tais coisas [amáveis e semelhantes] procede”, como diz D. Duarte.
Como à saudade é igualmente atribuída uma potência criativa – que lhe permite recriar o ausente, tornando-o presença espiritual na ausência ou da ausência, mas presença dinâmica – estamos em condições de explicar como recriação saudosa mesmo os textos em que o narrado é desmentido pela coerência de significação do conjunto.
A caracterização criativa da saudade acorda-se assim à tripartição da memória feita por Vico. Ela incluiria a recordação de coisas (primeiro tipo), a imaginação que altera ou imita o recordado (segundo tipo), e a “invenção quando lhes dá uma figuração nova ou as coloca numa disposição e relação apropriadas”. Ora, é este último tipo que, precisamente, encontramos concretizado em «Fuga para a Infância», poema que torna visível um desejo (imagina a plena realização de um desejo que pelo conjunto percebemos não se ter realizado) e não somente um acontecimento passado.
No texto fica feito o símile de um sujeito-locutor que, tendo ficado preso quando cresceu, ao ouvir de regresso as vozes dos companheiros da infância se solta dessa prisão e parte com eles ... no passado. Ou seja, ele constrói um passado novo que o liberta do presente em que se encontra (porque, se se libertou no passado, manteve-se o mesmo – e isso lhe permite afirmar-se hoje o mesmo que fora, libertando-se da prisão do outro que lhe impuseram que fosse). Nessa medida, a diegese do poema constitui uma alegoria breve do processo de reidentificação promovido pelo poder criador e evocador reconhecido à semântica da saudade nas redes de significação em que tentamos reconstruir alguns dos sentidos que ligam os poemas da antologia. Pela saudade se torna visualizável então o próprio processo poético (artificial) através do qual se assegura a permanência da identidade primeira da personagem.
Como em Teixeira de Pascoaes, também aqui “a separação do ser individual do seu espaço primeiro, com a consequente criação duma angustiosa consciência do tempo, é superada (...) por um processo de memorização, desejo e idealização desse espaço primeiro, em que o ausente passa a ser vivido demiurgicamente como presente, pela imagem recriadora”.
Portanto, a saudade não é em si visível mas é uma condição da visibilidade do que foi apagado pelas diversas alterações dos programas narrativos iniciais, incluindo os sonhos e os desejos cuja realização ficou interrompida pelo curso narrativo imposto posteriormente. O sentimento saudoso é, pois, um elemento identificador seleccionado, não pela visibilidade mas como condição de visibilidade. Nessa medida, basta acrescentarmos à nossa terceira hipótese que os elementos identificadores são escolhidos por serem visíveis ou por tornarem visíveis outros elementos ocludidos entretanto.
A par da saudade, os sonhos e recordações são igualmente elementos não visíveis (pela natureza psíquica) mas visualizadores. A reformulação que fizemos da nossa hipótese permitirá integrá-los no mesmo grupo de identificadores, que se mantém, portanto, único.
Se classificarmos agora, dentro desse grupo, em elementos de cisão e elementos de união os identificadores do texto observamos que a mãe, a mulher, o meio social e económico determinado pelas regras do sistema colonial, bem como o tempo, assumem o papel de responsáveis ou de conotadores das cisões que se vão desenhando no sujeito; o pai, os sonhos, as recordações e a saudade funcionam como elementos que reúnem o que foi cindido, ao mesmo tempo que são menos visíveis.
Quer dizer que os elementos identificadores visualizantes são aqueles aos quais neste jogo está confiada a missão de redimirem a identidade cindida do sujeito, quer pela permanência das suas promessas no tempo (garantindo a ipseidade ou reiteração do locutor), quer pela reunião que promovem do que é dado como separado (garantindo poeticamente a similaridade de um carácter que se reconhece não permanecer igual quando posto em referência, “no mundo”).
Encontramos, pois, aqui uma razão particularmente significativa para que seja vincado o desaparecimento visual do pai: tal desaparecimento permite a sua reconfiguração no – e a sua adstrição ao – sonho, ou seja, a sua função de origem do processo reidentificador face às características cisões formadoras da mestiçagem associadas à figura materna.
Por sua vez, a crioulidade não pode já ser somente vista a partir da cisão. A saudade que responde à cisão, reunindo pelo seu poder figurador e presentificador o ser apartado de si próprio, de tão inseparável que fica dela torna-se igualmente definidora do crioulo, como explicitamente se assume no livro ao falar em “nossa saudade bela e nua”.
Revisto o processo de cruzamento cultural a partir da oposição filhos do lugar / transcontinentais, e teorizada a saudade como fruto da cisão no tempo e não no espaço, visto que os transcontinentais se apartaram do seu lugar de origem, é-lhes atribuída uma típica nostalgia, tornando-se mais próprio dos crioulos o sentimento que os portugueses reivindicam para si mesmos (em Portugal). Por aí também se concretiza a apropriação de um identificador inicialmente alheio às mais remotas tradições do lugar. Ou seja, por aí também se confirma a miscigenação característica do «eu».
Tempos de poesia
Figuras de suspensão
Podia parecer estranho defender eu que o estudo literário deve começar por ser intrínseco e esquecer-me de notar as características estritamente poéticas da lírica antologiada por M. António, ou deixá-las para um segundo momento.
Se me fizessem uma tal crítica, podia argumentar em minha defesa que, ao estudarmos sobretudo o que o senso comum chamaria de “conteúdo”, não deixamos de começar esse estudo intrinsecamente, ou seja, a partir da organização dos significados na obra.
Tal organização não deixa de constituir também uma configuração do mundo criado pelos versos – e, portanto, uma formalização (a “forma do conteúdo” de que falava Hjelmslev, ou a modelização secundária de Lotman). Estudá-la é, portanto, estudar intrinsecamente uma obra literária, um sistema modelizante secundário.
O argumento não me dispensa, porém, da comparação entre as conclusões a que chegamos ao nível do “conteúdo” e a técnica utilizada pelo poeta para construir os seus versos. No mínimo teremos que ver se a relação entre o conteúdo e a técnica existe. No máximo teremos que determinar o cariz dessa relação.
Se, no que diz respeito à figuração da personagem central que é o locutor, podemos encontrar duas fases (aquela em que ele se forma e aquela em que se sente cindido de si próprio), também na maneira de escrever os poemas encontraremos duas fases.
As duas fases do “conteúdo” são construídas a partir de poemas que se entrelaçam e distribuem dispersivamente no tempo, quer dizer, nas secções cronologicamente organizadas do livro. Apesar disso, há um núcleo inicial onde predominam composições que referem a fase de formação do locutor, como se pode ver nos do ano de 1951 com títulos como «Fuga para a Infância», «Não Quero mais Estudar», «Noites de Luar no Morro da Maianga», «Poema para Benguela», «Planalto», «Mar», «Rua da Maianga».
Podemos dizer que, quanto à maneira de compor os versos, ela possui uma distribuição simétrica à que acabo de apontar para a “forma do conteúdo”. Simétrica na medida em que é mais fácil estabelecer uma fronteira entre os poemas de uma e outra das duas fases, mas, por outro lado, há poemas típicos da “primeira fase” que surgem no período áureo da segunda.
As duas fases que detecto na técnica versificatória dos 100 poemas prendem-se principalmente com um recurso conhecido pelo nome francês de «enjambement», que alguns portugueses traduzem por «encavalgamento». Esse recurso é recorrentemente completado por cortes rítmicos impostos no interior dos versos por “pausas lógicas”, do que passo a falar.
Não me parece uma tradução elegante a de “encavalgamento”, que recorda cavalgaduras porque tem uma bizarra morfologia, embora não deixe de ser expressiva, e de estar de acordo com a sua equivalente espanhola «encabalgamiento».
Amorim de Carvalho usa a fórmula «terminação falsa», complementar da de «corte rítmico» e essa me parece mais elegante. A definição das duas fórmulas passa pelas noções de “pausa rítmica” e “pausa lógica”. No que diz respeito à segunda, ela deve ser clarificada, mas o uso das duas parece-me, em termos gerais, preferível às acepções mais correntes de “unidade métrica” e “unidade sintáctica”. Como adiante veremos, não se poderá definir a «terminação falsa» nem o «corte rítmico» com base numa análise sintáctica e métrica, mas com base na comparação entre o ritmo (que não podemos confundir com a métrica) e a predicação lógica – a qual tem várias modalidades sintácticas e pode abarcar, ou vários tipos de unidades sintácticas, ou a mais pequena dessas unidades.
Seguindo a terminologia de Amorim de Carvalho, a «terminação falsa» resultaria da falta de coincidência entre a pausa rítmica do fim do verso e a pausa lógica das frases; o «corte rítmico» seria marcado por uma pausa lógica destruindo o “todo musical do verso”, ou seja, colocada no interior de um verso em desacordo com o ritmo, normalmente por utilização de vários tipos de hipérbato ou pela tmese. O corte rítmico pode ser exemplificado com esta passagem do último dos 100 poemas, em versos onde os cortes rítmicos se combinam com as terminações falsas:
Tomba ao poente, Sol. Cai, pressa
De olvido. Ilusão
De um final inda beleza.
Se a expressão “corte rítmico” me parece pacífica, quanto ao primeiro termo, antes de o exemplificar é oportuno questioná-lo. Porque penso que «terminação falsa» contém subjacente uma apreciação valorativa segundo a qual a terminação do verso só é verdadeira quando há pausa rítmica e pausa lógica. Nos casos em que não há pausa lógica no final do verso, a terminação não deixa a nosso ver a sua condição de verdade.
“Terminação falsa” é um termo que parece apenas apropriado a um tipo extremo de «enjambement», aquele em que uma palavra é cortada para se dividir entre dois versos, como sucede em «Primeiro Motivo de Conversa», de 1961: “(...) o que em mim é se- / creto viver de musgo”. Como em todo o «enjambement», também nesta ocorrência o corte provocado pelo fim do verso nos conduz à possibilidade de uma leitura inicial que se revela depois inviável («o que em mim é-se»), sugerindo uma ambiguidade que não se realiza. A terminação falsa justifica-se aí por se poder referir à palavra falsamente terminada.
Mas, nesse caso, mais do que não coincidência entre pausa lógica e pausa rítmica, não há coincidência entre ritmo e palavra, pelo que talvez não pudéssemos em rigor intitular o fenómeno de «enjambement» – o que é mais um argumento a favor de terminação falsa. Para os outros casos, de «enjambement» propriamente dito, aceitaríamos talvez designá-los por terminação parcial.
Ainda assim, porém, a expressão parece pouco satisfatória. Porque, sendo parcial, ela pressupõe que a “terminação completa” do verso só se define como pausa rítmica somada à pausa lógica – daí que esta seja parcial. Penso no entanto que é possível definir a “terminação completa” como apenas uma das realizações da terminação – que é sempre pausa rítmica mas não tem que ser pausa lógica, por que um verso está completo só com o ritmo. O ritmo não seria, nesse caso, a componente “mais importante para a sua definição” – como disse atrás – seria a única pausa necessária para terminar um verso.
Procurando outro termo, penso poder utilizar «transporte», que diretamente faz a síntese do que define tal processo: o transporte da predicação de um para outro verso (daí que Amorim de Carvalho fale em lógica – termo que não se pode aplicar, em rigor, à separação de uma palavra).
Teríamos, com “transporte”, a vantagem de designar desde logo de uma forma mais precisa o processo, não desvalorizando a coincidência «ritmo / terminação do verso», e economizando pela redução a uma palavra.
Para exemplificar o que proponho posso usar a primeira estrofe de «Rua da Maianga»:
Rua da Maianga
Que tem o nome
De um qualquer missionário
Mas para nós somente
Rua da Maianga.
Os três primeiros versos teriam transporte se fossem escritos, por exemplo, assim:
Rua da Maianga que tem
O nome de um qualquer
Missionário.
Ora, é isso o que se passa nos dois últimos versos. A colocação de «somente» no penúltimo torna ambígua a frase, que podemos desdobrar em duas: “Mas, para nós, somente Rua da Maianga” (caso em que há transporte na estrofe), ou “Mas, para nós somente, Rua da Maianga” (caso em que não há transporte).
Na ausência de transporte há, portanto, uma coincidência entre o fim de uma predicação e o final do verso, não se alterando a leitura do verso anterior pela do verso posterior; o transporte realiza-se por não se registar essa mesma coincidência, ou seja, por uma diferença entre ritmo e progressão semântica, que impõe a substituição de uma leitura inicial do verso anterior por outra feita após a descodificação dos dois versos envolvidos.
Na segunda fase da lírica em estudo a figura do transporte é, como disse atrás, realçada, por contraste com uma primeira fase em que a sua presença é mais discreta.
A intensificação desta figura leva a pensar no significado que ela pode adquirir no contexto dos 100 poemas. A sua importância para o autor enquanto artífice é denunciada por essa intensificação e pelas alterações dos poemas que podemos registar entre os livros incluídos na antologia e a própria antologia e essas modificações dão-nos pistas valiosas. As modificações dos poemas a nosso ver mais significativas são as que se prendem com a separação de versos antes reunidos num só. Elas ocorrem todas num período curto e inicial – a julgar pelas datas fornecidas ao longo dos livros em que foram sendo republicados os textos sobre que incidiram.
Só por uma vez, em todos os casos que vi, se deu a redução de dois versos para um, acumulando dois sintagmas.
A esmagadora maioria das modificações que se prendem com o corte dos versos é, pois, no sentido da sua fragmentação, o que sucede logo em «A História Triste», depois em «Mar», «Rua da Maianga», «Quinze de Agosto», «Férias no Mar», «Chuva sobre a Infância» e nos dois poemas iniciais de «O Amor e o Futuro».
Contrariamente ao que seríamos levados a supor, a fragmentação nestes casos ajuda a fixar um critério de composição que é oposto ao do “transporte” – na medida em que ela isola sintagmas e predicações e não os separa. Isso permite-nos dizer que se assiste, até essa data, à obediência a um cânone que, se concorda com os versos não modificados, não deixa de denunciar o carácter posterior dessa concordância. A composição de tal concordância é mesmo levada ao ponto de eliminar duas ocorrências de transporte, em «Tarde de Sábado».
No entanto, estas modificações dão já um sentido de pausa que o transporte virá depois acentuar. Acho que a marcação das pausas, apesar de coincidir ainda com um conjunto sintagmático e predicativo, não deixa em certos casos de dar uma impressão de “corte”, de suspensão de sentido.
Os versos “E a nostalgia herdada / De brancos marinheiros” podem exemplificar o que penso. O seu final não interrompe a predicação, mas o segundo verso acrescenta essa predicação, sugerindo que não estava dito por inteiro o que era para dizer quando se cortou a linha em dois. Neste sentido, a predicação teve de continuar por cima do final dos versos, transportar-se de um para outro, embora em termos estritos não tivesse sido interrompida (como sucederia se por exemplo separássemos “nostalgia” e “herdada”).
É neste sentido, de corte e de continuação, timidamente ainda realizado pelas modificações detectadas nos poemas escritos até 1953, que podemos indiciar a concordância, a um nível mais abstracto, da “forma do conteúdo” com a “forma da expressão”.
Com efeito, a imagem de corte que se vem a multiplicar a partir desse ano é conotável com a de cisão na personalidade autoral, se aceitarmos que a caracterização desta se projecta, amiúde, sobre a própria maneira de compor – o que mais adiante confirmaremos em pormenor, ao estudarmos os quatro livros que vão de Rosto de Europa até à antologia final. A cisão entre ritmo e semântica remete-nos, por isso, para a cisão na identidade do locutor – e principalmente quando a semântica impõe uma pausa fora do ritmo e dentro do verso, um corte rítmico que Amorim de Carvalho diz ser prosaico, e que desvaloriza como recurso estilístico. Na verdade, a figura do corte rítmico na lírica de M. António resulta esteticamente feliz por sugerir uma cisão que a “forma do conteúdo” ao mesmo tempo trabalha.
Mas não é só pelo corte rítmico que a progressão técnica se liga à “forma do conteúdo”. Um argumento contra a opção que fiz por «transporte» é o de que esse recurso tem sido por caracterizado principalmente como um corte semântico, ou uma cisão entre semântica e ritmo. Deveríamos, nesse caso, escolher um termo que designasse diretamente o facto, a cisão. Mas a escolha do nome «transporte» não é ingénua. Ao cindir a progressão semântica em função do ritmo, a figura leva o leitor a reparar na reunião dos significados anteriores aos do verso posterior, chamando assim a atenção para o nível do significado através de um critério que aparentemente consiste em só respeitar o significante.
Quer dizer que a figura retórica do transporte, ao mesmo tempo que separa (formalmente), leva a reunir (pela leitura), como se dando razão a José Marinho quando o filósofo afirma que não há movimento de cisão sem movimento unitivo, nem movimento unitivo sem cisão. Nessa medida, é uma figura mais completa, que tanto espelha a cisão quanto o movimento contrário que, ao nível da intriga, é possibilitado pelo sonho, pela saudade e pela poesia.
O transporte formaliza, portanto, a ideia transmitida pelo corte rítmico (a de cisão), mas também obriga a realizar a ideia contrária. Foi isso que vimos que sucedia com o sujeito-locutor: nele se concretizavam cisões inscritas no tempo, que depois levavam ao movimento que transportava por sobre elas os elementos que a cisão havia separado. E é esse processo que vamos também ver estruturar os livros seguintes.
Outras figurações
Não é só pelo transporte e pelo corte rítmico, nem pela emergência da cisão e da saudade, que há duas fases nos 100 poemas.
Outro aspecto, ainda não estudado, e que diz respeito ao que a Retórica chama a «elocutio», fornecerá igualmente critérios para detectarmos em maior amplitude as duas fases “técnicas” desta poesia.
Ao lermos «Herança Estética» deparamo-nos com opções retóricas fundamentais, que irão definir uma mudança importante na maneira de tratar as palavras ao longo da obra.
O título da composição, relacionando mais uma vez a poesia com a noção de continuidade, alerta-nos para o facto – já pressuposto no ponto anterior – de a “forma do conteúdo” nunca deixar de estar implicada nas opções mais estritamente “técnicas” ou “estéticas”. No poema em causa, é também pela abordagem do “conteúdo” que a opção estética, de quem se apresenta como poeta e autor dos versos, irá ser clarificada.
Há aí, essencialmente, dois comportamentos em juízo: um, o do “exagero do nu”; outro, o que fica representado na maneira colorida do jovem suburbano se vestir. A opção é-nos anunciada à maneira de uma profissão de fé: “Não cairei nunca / No exagero do nu / Não. // Serei como tu / Tu, meu irmão, / Que gostas de camisa de cor / Camisa sarapintada / Com variados desenhos, / Camisa fora das calças / E óculos vermelhos nos olhos”.
A alternativa do nu é caracterizada como traição à herança estética comum, desmentindo o preconceito segundo o qual a lírica africana é subsidiária de algumas “filosofias tradicionais [...] concretas, nominalistas, substantivas, não concebendo a palavra senão como presentificação mimética do real”. Essa característica, conjugada à interpretação de uma “vida quotidiana em África (...) virada para o exterior”, teria como consequência intelectual e estética a imposição de um “princípio de realidade não sofisticada”, contrário ao que seria “próprio de sociedades desenvolvidas”, e que afastaria “qualquer tendência melancólica, intimista, metafisicamente abstracta, existencialista”. A lírica de M. António não se limita a rejeitar liminarmente essas interpretações, às quais ainda subjaz um instinto paternalista (para além do propósito ideológico), portanto, uma atitude redutora do ser africano a modelos fixos, externos e superficiais. A lírica de M. António constrói para a sua decisão uma personagem ilustrativa típica do subúrbio luandense, desmontando no concreto o modelo do nu.
A coloração contraposta ao exagero do nu é garantida pelo enriquecimento retórico do texto, através de recursos analógicos (onde ressalta a metáfora), que por seu lado podem ser vistos como estando mais acordados a diversas tradições bantos de Angola, justificando a acusação feita aos neo-realistas (trair a herança comum).
A lírica dos 100 poemas, conforme cria a diferença entre o final do ritmo e o final da predicação no término dos versos com a figura do transporte, vai também evoluir para uma intensificação analógica (mais do que metafórica) e para uma prática de suspensão (frases onde faltam palavras – ou seja, onde surgem elisões, referentes de que só se dá um ou outro traço, muitas vezes “flutuante”).
Tal processo foi notado por Manuel Ferreira. No entanto, este autor e divulgador das literaturas africanas comete, quanto a nós, o erro de sugerir que a “segunda fase” da obra assinada por M. António começaria com Rosto de Europa, após a vinda do poeta para Portugal e o seu abandono do neo-realismo. Mas Mário António abandona o neo-realismo – como se vê por este poema – logo no início da sua carreira como sujeito público autor de poesia.
Isso mesmo é confirmado na entrevista que ele concedeu a Michel Laban e que vem anexada à recolha de ensaios Reler África. Aí ele cita o conhecimento de António Manuel Couto Viana como decisivo para a mudança; ora, tal conhecimento dá-se quando o poeta da Távola Redonda vai a Luanda, ainda em 1951, proferir algumas conferências sobre Teatro no então Liceu Nacional de Salvador Correia. Mário António é nessa altura redactor do jornal O Estudante, pertença dos alunos do Liceu, onde escreve um artigo entusiasmado sobre as referidas conferências. Portanto, ele acompanhou as conferências e entusiasmou-se com elas e com o seu autor, a quem dedica «À Procura de um Poema» – o terceiro da colectânea, escrito (a julgar pelas indicações da obra) ainda em 1951. A opção determinante do rumo posterior da lírica por ele assinada faz-se, pois, em 1951, no que foi praticamente o primeiro ano de produção datada e publicada em livro (de 1950 só temos «Avó Negra»). Isso explica que só até 1953 o autor se tenha preocupado com a coincidência entre ritmo e sintagma – coincidência que, facilitando a leitura, simplificando-a, remete para os pressupostos de Pires Laranjeira acima citados, sobre uma eventual “poética africana”. A partir daí, como veremos, M. António começa a intensificar a sua lírica, recorrendo preferencialmente, para o efeito, às figuras de suspensão – mas não só a elas, como é previsível. A própria figura da suspensão não reduz o seu campo de alcance à técnica do «transporte». Ela recorrerá também a outras técnicas, que podemos sintetizar no processo de descontextualização dos motivos.
O processo descontextualizador dos motivos é caracterizado por isolar, a referência aos motivos, da referência a elementos que apontem a circunstância “civil” em que eles ocorreram e se transformaram em tal (data, local, factos sociais de domínio público, traços que marcam tipicamente a personagem). Podemos exemplificá-lo pelo tratamento que foi dado no texto ao amor heterossexual, e que já antes estudámos.
Como então vimos, o tratamento do motivo da mulher começa por situá-la concretamente numa sociedade multiracial. Nessa sociedade específica, na mulher negra ou de sangue negro se representa a concretização de gestos e situações amorosos, por oposição à mulher branca, que representa um ideal inalcançável. Isso só é possível porque o texto nos indica a raça da “branca”, que “entre nós se veio pôr”, através de marcas típicas. Ao fazê-lo, designa por oposição a ‘raça’ da outra mulher (rosa, Vénus de cabelos desfrisados, aquela a quem se pede que ame como a terra-mãe africana), a qual diversos outros sinais denotam como tendo sangue negro.
Numa fase posterior, a mulher será retratada sem a cor da pele, sem a raça definida a partir da cor da pele e da linhagem. De tal modo que o leitor, habituado a um tratamento literário concedido à branca e a outro à mulher de sangue negro, sente-se surpreendido e desorientado perante o novo tratamento do motivo, procurando em vão composições onde a mulher tenha só sinais de um tipo rácico ou só do outro.
Liberto o motivo da circunstância, a sua analogização pode multiplicar-se com mais facilidade, chegando mesmo ao ponto de se ambiguizar enquanto signo. É o que sucede em Rosto de Europa, (por vezes com apoio na disposição das estrofes pela frente e pelo verso da página), onde se cria uma ilusão inicial de se estar a falar de uma mulher para nos levar à impressão final de se estar a falar da Europa (também mitológica), metonimizada em Lisboa.
É esse processo que, aplicado a vários motivos, veremos inteiramente concretizado na maioria das composições agrupadas como sendo as dos últimos anos – excepção feita para os poemas de reiteração biográfica, onde os recursos retóricos recordam – acordando-se ao processo efectivado ao nível do conteúdo – uma “poética” inicial e “nua”.
No entanto, mesmo em alguns desses poemas, o processo descontextualizador afecta a reidentificação do locutor. É o que se passa em «Viagem à Terra Natal», título sugestivo de um retorno que a ausência de marcas “civis”, circunstancializadoras, faz abortar. O próprio espaço identificador, nesses versos, é traçado em linhas “íntimas”, às quais são cortados os laços que as integram num ambiente, de modo que a “exacta realidade / Sobre o postal da infância” não se torna acessível à leitura (de acordo, aliás, com a matriz intimista dos escritos autobiográficos e dos auto-retratos). Ainda quando se refere a acção humana modificadora do quadro abstracto da paisagem, são vagos apontamentos narrativos que nos dão uma ideia nebulosa do que se terá passado, o que se pode verificar na derradeira estrofe do poema.
O processo descontextualizador segue, também aí, com a constante procura de analogização do que nos é sugerido como referente. O caso da última estrofe citada é exemplar por ser nela que, ao se falar na mudança produzida pela mão, mais se aproxima o texto de um extracto narrativo – o qual, por requisito normativo do género, convida a produzir uma contextualização específica e um reforço da denotação.
Contudo, só quatro versos em catorze cumprem o requisito (“A mão andou por aqui / Plantando, semeando, / Removendo o terreno, / Tirando e entregando”). Mesmo nesses versos, não se diz quem planta, quem tira e a quem entrega, quem semeia e recolhe, de quem é a mão e quem a conduz. Isso tudo, que numa narrativa o resto da história contextualizava, aqui fica suspenso. E, a par da suspensão da circunstância especificadora, civil, em todos os outros versos da estrofe o texto vai desenvolvendo eixos semânticos (primeiro opositivos, depois isotópicos) para construir uma analogia que faça a correspondência das acções, um círculo (“momento”, “orgão”) centrado no verbo continuar, que constitui sozinho o verso final da composição.
As duas fases dos 100 poemas
A simultaneidade de processos (intensificação do transporte, do corte rítmico e da abstracção dos motivos, a par da metaforização intensificada) confirma a hipótese de haver duas fases nos 100 poemas: uma primeira fortemente contextualizada, onde a predicação não é interrompida pelo ritmo nem o interrompe; uma segunda onde se ganha o sentido da suspensão e da analogia.
No entanto, não é fácil definir com precisão a data a partir da qual a locução se apresenta munida de “camisa de cor” e liberta da circunstância as referências por ela construídas, pois, como pudemos observar, muitas vezes os poemas reidentificadores utilizam processos próprios da primeira fase em pleno “apogeu” da segunda. A passagem de uma a outra fase nunca é completa, sendo lenta, quase imperceptível. Por esse motivo, só comparando o início com o fim da antologia temos a noção de haver dominantes diferentes em cada momento.
Pelo facto de as emendas estróficas assinaladas acima terem terminado em 1953, podíamos situar nesse ano a transição de uma dominância a outra. Recordemos que tais emendas canonizavam a coincidência entre a divisão versicular e a semântica, nunca afectando a continuidade gráfica de uma predicação. Mas o primeiro poema dominado pelas outras figuras da segunda fase, as de suspensão e descontextualização do motivo, é o soneto «Não Invoquei o Sonho para Amar-Te», de 1956. Ora, dois anos parece um tempo demasiado longo para se produzir a mudança de cânone, que viria por imitação – e, por isso, bruscamente.
Lembrando-nos de que os poemas de «O Amor e o Futuro» são os últimos de 1953 – estando um deles datado, num livro anterior, de 1954 – e recordando que em 1954 há só três poemas – um deles puxado, na antologia do abc, para 1955, ano em que não havia nenhum – a distância “poética” entre 1953 e 1956 fica notavelmente encurtada. Pelo que podemos dizer que é entre «O Amor e o Futuro» e «Não Invoquei o Sonho para Amar-Te» que fica a mudança de paradigma técnico na composição dos versos.
Para a segunda ocorrência, porém, podia ter contribuído o facto de se tratar de um soneto, rimado, tipo de composição em que o espartilho da forma convida a recorrer a técnicas como a do transporte e do corte rítmico. Assim, a mudança podia inicialmente ficar a dever-se à dificuldade do autor em escrever em consonância com uma espécie formal europeia, e, de entre as que essa cultura lhe fornecia, das mais estranhas à cultura tradicional banto. Essa hipótese é, no entanto, desmentida pela produção anterior.
«Não Invoquei o Sonho para Amar-Te» é o terceiro soneto da antologia, sendo antecedido – enquanto espécie – por «Nós, Rios Paralelos», de 1952, e «Retorno», de 1954. Em nenhum deles há transporte e só no segundo, por uma vez, ocorre um corte rítmico significativo: o verso “Como no céu a ave. Tu ficaste” sugere – a par da leitura de integração no conjunto – uma ambiguidade fornecida pela sua leitura isoladamente (“tu ficaste como no céu a ave”).
Mas «Retorno» é já de 1954, data que se apõe à sua ocorrência nos diversos livros. Se o corte rítmico é aí importante, isso pode representar uma primeira tentativa do que pouco depois advirá. Concordantemente, o único soneto composto na fase inicial é escrito como as outras composições da mesma fase, ou seja, sem “cortes rítmicos”, “transportes” ou “suspensões”. Nestas circunstâncias, nada nos permite afirmar que seja por causa de uma eventual inadequação entre o locutor (que se apresenta como crioulo) e a forma por ele usada (tipicamente europeia e estranha à cultura banto) que as composições passam a ser dominadas por figuras de suspensão.
A segunda ocorrência em que domina claramente a figura do transporte, acumulada com a da terminação falsa de uma palavra e a abertura de dois cortes rítmicos, é «Dizem-te Bela». Nela, a ambiguização do motivo (num processo que veremos repetido em Rosto de Europa), provoca igualmente a descontextualização que vemos acompanhar estas figuras. O motivo central pode ser feminino, mas pode igualmente ser a própria terra-mãe que o locutor dá como sua, e que vem nomeada em seguida («Para Luanda»), numa outra composição onde os mesmos recursos (transporte, corte rítmico e terminação falsa) desempenham um papel de relevo.
A partir daqui, as figuras de suspensão vão ser distribuídas ao longo dos poemas, mantendo-se recorrentes. Quer dizer que, entre os poemas assinalados para 1954 e os poemas assinalados para 1958 é que se dá a consolidação de outro paradigma técnico, oposto já definitivamente aos exageros do nu.
A descontextualização, no entanto, começa por dar sinais anteriormente, como se pode verificar pela progressão já considerada no tratamento do motivo da mulher – e que culmina em «Dizem-Te Bela». Há, pois, um ligeiro desfasamento entre descontextualização e técnica versicular, desfasamento que acentua a ideia de uma progressão vaga, lenta, que não permite balizas definidas, marcos bruscos na harmonia da “paisagem”.
Fica só, como atrás notámos, a comparação entre o início e o fim a denotar o nível profundo da mudança. E ficam certas composições a marcar a culminância no uso dos novos recursos técnicos e na descontextualização dos motivos. É essa diferença que nos permitirá situar, na obra lírica assinada por M. António, o lugar específico do livro Era, tempo de poesia.
Por outro lado, o levantamento das (lentas) modificações permite-nos definitivamente alterar o faseamento proposto para a obra do poeta em dois momentos, expressivamente considerados por outros estudiosos em relação a toda a sua actividade cultural (embora a divisão se fundamente apenas na leitura de versos).
Homem de fina sensibilidade, ficcionista com livros de apurado gosto e técnica, Manuel Ferreira, que nos propõe a bipartição da obra de M. António, reconhece que há também uma evolução qualitativa no sentido de um “maior rigor na construção poética”. O maior rigor passa pelo “tratamento elíptico” mais apurado, que se oporia aos textos da primeira fase. Embora as duas fases se definissem pela inserção no “real social”, com espírito “crítico e objectivo”, ou pela adesão aos “valores europeus”, “e «esquecidos» os valores africanos”.
Manuel Ferreira foi, portanto, sensível à progressão lírica no sentido do apuramento no uso de figuras de suspensão – aí sintetizadas na expressão “tratamento elíptico”. Mas os poemas que cita como representando a primeira fase são datados de 1958 e de 1960, ou seja, de um tempo em que as figuras de suspensão eram já características da produção poética do autor. Por outro lado, eles são menos descritivos do que faria supor o modelo neo-realista que pensamos ter em mente Manuel Ferreira quando fala na primeira fase. Quer isso dizer que a “primeira fase” – pese embora o facto de não se lhe poder definir uma data nítida para balizar-lhe o término – ter-se-á reduzido aos primeiros anos de escrita, sendo composições como «Até se Revoltarem os Escravos» uma excepção para o respectivo ano de inserção.
A coincidência de uma segunda fase com os “livros de itinerância”, também defendida por Manuel Ferreira, é proposta, no seu texto, pela citação de versos extraídos a Rosto de Europa, que a ilustrariam. A leitura subjacente é a de que a partida do sujeito civil Mário António Fernandes de Oliveira para Lisboa, com uma bolsa do governo colonial, o teria comprometido ideologicamente com os “valores europeus”, alienando-o em relação à realidade africana que antes cantara. A implicação de um comprometimento poético pela aceitação da bolsa do governo colonial está igualmente sugerida no trabalho já citado de R. G. Hamilton (p. 110), cuja edição original é de 1975. A ideia estava, pois, em fase de adiantada generalização quando Manuel Ferreira a veiculou. Há, por exemplo, uma conferência dada em Itália, por Costa Andrade, em que ele alude a casos como o de Mário António, focando o problema da mesma forma que mais tarde caracterizaria os estudos de M. Ferreira e R. Hamilton: “enquanto, por exemplo, Agostinho Neto ou António Jacinto continuaram expressão do contexto, a coerência dele e sua afirmação, outros justapuseram-se aos objectivos das massas, mesmo tendo coincidido até determinado momento. Quando o correcto seria continuar a ser parte, eles priorizaram a sua condição de ser eles apenas. Alienaram-se, o que explica que no plano político tenham sofrido uma inflexão colaboracionista”.
Mas, como vimos, a característica literária apontada por Manuel Ferreira à “segunda fase” emerge antes da partida do autor para Lisboa, antes de qualquer dado biográfico que possa ser tomado como sinal de “inflexão colaboracionista”, antes também de Mário António fundar o Partido Comunista de Angola. E ela marca já a parte substancial dos 100 poemas.
Esse facto foi também notado por Amândio César no «Posfácio» à antologia do abc, quando aponta, ao “segundo volume de M. António” (Poemas & Canto Miúdo), “uma condensação de poesia que adensa cada tema, tornando-o mais poético, embora, por vezes, mais hermético”. O neo-realista de direita que era Amândio César choca-se, como os neo-realistas de esquerda, com o carácter “hermético” desta poesia. No entanto, a figura da suspensão é notada pela forma interseccionista sob a qual os “temas” (os motivos) se desenvolvem: “alguns poemas poderão ser continuados de uma suspensão que ficou lá para trás. Mas o retomá-los valoriza-os e multiplica-lhes as facetas”. Exemplifica, depois, pelo caso de «Chuva sobre a Infância», de 1953: “Esta chuva de agora / sobre o quintal da infância / Esta saudade! / (Esta chuva é a mesma / eu é que sou outro)”.
Mesmo um crítico da poesia lírica de M. António, o conterrâneo (e também poeta) António Cardoso, apontava já em 1959 as preocupações “esteticistas e universalistas” do artífice, censurando-o por entender que ele estava “menos empenhado na reconquista duma personalidade africana e mais dado ao individualismo”, supremo pecado para a ortodoxia soviética ou sovietizante. Conhecendo nós a redutora linguagem convocada por António Cardoso, sabemos que o “esteticismo” aponta precisamente para os processos de depuração poética e lírica notados por homens de mais fina sensibilidade, como é o caso de Manuel Ferreira, ideologicamente camarada de António Cardoso. O artigo de Cardoso contribui, portanto (e involuntariamente), para desmontar a conotação entre um facto biográfico (a ida de Mário António para Portugal) e uma evolução estética reconhecidamente anterior à ocorrência desse facto.
Pelo contrário, se aceitarmos o processo poético para o qual Amândio César nos chama a atenção como uma figura de suspensão, e se o associarmos ao “forte poder evocativo” de outras composições iniciais (por exemplo «Poema para Benguela», de 1951), concluiremos que a característica principal da segunda fase da obra de M. António estava já presente nela desde o início.
Por sua vez, a circunstância biográfica, invocada pelo próprio sujeito público para justificar ou fundamentar a sua viragem estética, é reportada aos contactos com António Manuel Couto Viana e a Távola Redonda, onde colabora (com poemas típicos ainda da “primeira fase” (cf. Távola Rendonda, 13, 1959; Reler África, 1990, 529). A visita de Couto Viana, que terá despoletado o processo, dá-se em 1951, praticamente o primeiro ano de produção do autor, como acima apontei. Pelo que a interpretação dos poemas condicionada a uma suspeição “partidária” sobre a vinda do sujeito público (e real) para Lisboa não concorda, nem com uma leitura intrínseca, nem com outras leituras biográficas possíveis e sugeridas pelo próprio «autor» em outro livro seu, bem como subentendidas nas diversas recepções das obras iniciais.
Um segundo equívoco em que esta divisão em duas fases assenta reporta-se à díade “valores africanos / valores europeus”. O que mudará, ao passarmos para os “livros de itinerância” ou “diáspora”, é o referencial – não são os valores. Os valores são refuncionalizados – e não só perante a Europa, também face a outros continentes. E são valores africanos e europeus, ou já nem africanos nem europeus, porque são valores crioulos e se integram numa tendência para a universalização já notada igualmente por António Cardoso em 1959, por Alfredo Margarido, em 1960, e por Amândio César em 1961.
Confrontando a bipartição proposta por Manuel Ferreira com o nosso próprio estudo, parece-nos que há duas fases, sim, mas com balizas temporais diferentes conforme nos referimos a duas fases opostas pelo referencial montado ao longo dos poemas (Angola (portanto, África) / outros continentes), ou a duas fases contrapostas pela emergência e pela consolidação das figuras de suspensão e do esforço descontextualizador.
A diferença entre as duas fases referenciais atinge o seu cume a partir de Rosto de Europa, facto que recorda a bipartição de Manuel Ferreira. Mas elas são diferentes do que o autor da Hora di Bai propunha, na medida em que dizem apenas respeito à composição dos referentes, não possuindo uma direta correspondência estética ou axiológica.
Quanto às duas fases esteticamente definidas, elas são diferentes do que era antes proposto por se iniciarem muito mais cedo, como vimos.
Estudada a mutação estética, iniciaremos agora a confirmação da parte referencial da hipótese sobre as “duas fases” pelo estudo dos livros seguintes à publicação da antologia (100 poemas).
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